sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Três Vezes

     
         Como ele estivesse feliz e aquele dia tivesse sido especialmente bom, porquê foi um dia em que ele não morreu, e portanto continuou vivo. Nenhum parente ou amigo seu morreu também, e embora durante rigorosas 24 horas nada tenha acontecido e ele tenha ido ir dormir entediado, foi gratificante saber que o mundo inteiro continuava funcionando, e dele dependia somente na medida em que é possível percebê-lo:
  -Como o sol está bonito agora! Avermelhado, refletindo nos objetos ao redor como se eles de bronze fossem. E as pessoas e os animais, e a areia no chão e as nuvens no céu, mais do que pardas ou negras ou brancas ou azuis ou vermelho como um pôr-do sol, é o que temos. O que vejo quando olho para cima não é o mesmo céu que vês, se é que também tens o hábito de olhar pra cima, embora vivendo nesta porcaria de prisão de muros gigantescos, que são os prédios cinzentos de fuligem da cidade que nos cerca...
-Deus te abençoe e te dê uma vida longa. Que seja tranquila pois assim é possível produzir. Que seja certa por linhas tortas, pois assim conhecerás o necessário para fazer o que é correto ou não. Que te dê tantos amigos quanto inimigos, para que te conserves longe da hipocrisia dos canalhas, que tentarão se aproveitar da tua fraqueza. Que sejas tão filha-da-puta ou mais do que acham que tu és, pois pela inteligência ou pela força é que se angaria respeito, nunca pela submissão.
-Mas eu não suporto quem como eu não dá a cara a tapa, então como superar esta aversão? Como posso desaprender o que conheci para assim poder conviver com as pessoas de minha época?
                                                                        ...
Vínhamos vencendo todas as dificuldades daquela caminhada, e mesmo após quase um mês de frio e exaustão, ainda poderíamos caminhar por mais um mês. Até que nosso alimento, que já vinha sendo racionado desde o começo, finalmente acabou. Não prevíramos aquilo, com certeza já teríamos chegado à estação se nosso companheiro Tom não tivesse machucado o tornozelo, e tivesse agora de ser puxado pelos dois únicos cães que haviam sobrado da expedição até a geleira inóspita:
-Nós vamos morrer.
Escutávamos apenas aquilo que Tom já sabia desde o momento em que, após a tempestade de neve, afundara por entre o gelo fino, torcera o tornozelo, e acabara perdendo o movimento das pernas congeladas. Ele queria ser deixado ali, e para nós dois aquilo era mais doloroso do que conduzi-lo pela planície branca, onde afinal os cachorros conseguiam correr livres, conosco trotando ao lado,e aonde até agora não encontráramos obstáculo algum.
Embora os três já tivéssemos aceitado a morte, com o corpo moído e exausto, nenhum de nós tinha coragem de desistir e descansar ao menos um pouco, antes de largarr um amigo ou morrer congelado.
                                                                        ...
Chegara finalmente ao fim. Não ao fim da jornada, mas a escassez de forças não permitia que continuasse adiante. Olhou para os lados, e era com saudades que recordava os amigos que haviam perecido, e que um deles havia morrido por sua culpa. Queria recordá-los de verdade, mas o cansaço impedia-lhe  os pensamentos mais simples, quando já não era possível saber ao menos onde se encontrava.
Sabia que estava sentado, e foi com esforço que percebeu um papel em branco à sua frente e um lápis em sua mão. Uma força estranha vinha-lhe pelo lado esquerdo, sentiu engulhos e virou a cabeça para vomitar. E foi como se tivesse vomitado o cérebro, pois nem mais a confusão, nem mais a hipocrisia, nem mais o frio, nada disso incomodava agora. Apenas queria saber quem era seu interlocutor:
-Sou um anjo, me chamo Ezequiel!
-Isso significa que eu estou morto?
O papel, o lápis, um sentimento baixo e vil, o gosto do vômito na boca, a dor de saber que existia e a existência da dor. Tudo isto num passe de mágica sumiu, enquanto aquele corpo afogado rolava entre os elementos da natureza como se deles fizesse parte, até encalhar na areia e cobrir-se da neve que caía, brincando ao vento feito espumas na arrebentação.

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