O barco navegara já doze horas seguidas, a maioria dos nove tripulantes estava dormindo, se protegendo como podia da maresia e do sol. Mas três deles permaneciam acordados: Betinho, o comandante; Geraldo, o braço direito e o pé esquerdo, que todos conheciam como Geral; e Jonas, que tinha sete fôlegos e não dispensava serviço tanto no mar quanto em terra firme.
As ondas jogavam sem parar, o vento constante era forte o suficiente pra fazê-las subir bem mais de um metro, fazendo o barco balançar bastante. Estavam contornando naquele momento a costa de Marajó, na direção da Ilha de Mexiana, mas parariam bem depois, num pedaço que apenas quem já estivera lá saberia chegar: o Capitão e o Geral. Ficava não muito longe da costa, mar aberto, mas onde em menos de três dias seria-lhes possível carregar os porões com as sete toneladas de lastro. Pescadas, Douradas, Corvinas, e mais alguns outros peixes com bom valor de venda que desse para tirar algum lucro no final.
Quem ficava com o grosso do dinheiro era o patrão, que afinal de contas era quem investia alto na empreitada, cujos riscos eram baixos mas existiam. Podia-se passar às vezes mais de duas semanas no mar, quando a maré não estava boa ou quando quebrava alguma peça do motor.
O capitão Betinho pensava nisso e noutras coisas. No quanto passaria a economizar se desse certo esta segunda viagem que fazia para o ponto que ele e Geral haviam descoberto nas proximidades de uma tal Ilha do Afonso, que não constava dos mapas. Ali pegaram tantos peixes, Filhotes, Dourados, Anchovas, que tiveram de parar para comprar mais gelo. A linha d'água do barco nesse dia ficou rente como nunca antes havia ficado. E foi ali no entreposto do gelo, que o dono do comércio explicou para eles que aquela ilha era encantada:
" Uns vinte anos atrás, e tu podes ver que eu já tenho ha muito tempo esse comércio aqui, tinha um homem que era conhecido em todo Araraquara por beber muito. Mas esse homem bebia tanto, que toda vez ele vinha aqui comigo no fim da tarde, começava a beber com o pessoal aí, e só quando todo mundo ia embora ele levantava também e ainda pedia mais duas corotes dessas pra levar pra casa. Mas até aí tudo bem. Só que teve um dia em que ele tinha recebido uma ponta graúda e tava bebendo mais do que o de costume. Ficou tão doido, que mal anoiteceu, bateu nele uma cisma e ele quis ir embora. Pediu pra levar uma caixa fechada com seis purinhas, botou na montaria dele e foi-se como se tivesse o diabo atrás, todo mundo falando pro Afonso ficar porque era noite já, e ele não tinha levado lamparina.
Sei que quando eu tava pra fechar veio a mulher do Afonso. Falou que tava preocupada porque ele tinha ido receber um dinheiro e prometido que voltaria pra casa assim que baixasse o sol. Então eu e os cinco que ainda estavam por aqui pegamos cada um seu casco, e saímos procurando, mas àquela hora era impossível.
No dia seguinte a gente arrumou um barco maior, procuramos e achamos só a canoa dele. Então fomos olhar pelas praias, até que naquela ilha lá perto de onde vocês pescaram a gente achou o cú do Afonso. Não ri não, foi isso mesmo! É porque os peixes comeram ele todo, mas como ele tava usando bermuda, a parte do cú nem as piranhas conseguiram comer. E o mais incrível é que as garrafas de cachaça estavam ali na areia do lado dele, fechadinhas na caixa, e a gente aproveitou para beber as seis enquanto fazia o enterro, e no final em homenagem demos o nome da ilha de Ilha do Cú do Afonso."
...
Finalmente chegaram no ponto exato onde a pescaria tinha sido tão boa na vez anterior. Betinho e Geraldo olharam para uma ilha lá fora, um ponto muito distante sobre o verde contra o azul do céu, e Jonas imediatamente compreendeu. O capitão mandou-o desligar o motor, e quando ele desceu lá e girou a chave, tudo ficou no mais perfeito silêncio. Os outros seis pescadores dormiam, ainda demoraria até preparar as redes para começar a lançar. Mas ao olharem para fora, os três foram pegar suas linhas e anzóis; Geral rapidamente cortou uma sardinha pra servir como isca; Jonas sentou-se na mureta com os pés quase tocando a água; Betinho apenas sorria.
O mar abaixo deles, muito transparente, fervilhava com enormes peixes de todas as espécies.
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