segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Flores Pisadas

"No gelo da indiferença ocultam-se as paixões
 Como no gelo frio do cume da montanha
 Se oculta a lava quente do seio dos vulcões..."


Renata era a garota mais bonita da turma. Tales estava apaixonado, e como era um sujeito romântico, descobriu com uma amiga o número do celular dela e ligou na mesma noite:
-Você tem que saber que eu te amo, Renata! Sua existência só será feliz ao meu lado!
-Sai dessa Tales! A gente nem se conhece direito!
-Como podes dizer isso depois de eu ter me declarado? Não sentes pena deste jovem coração? Olha que eu posso fazer uma loucura!
-Mas que? Olha Tales, parou por aqui, nem vem com esse papo de fazer  pressão com ameaça pra cima de mim! Ih, quer saber, vou desligar...
-PelamordeDeus, Rê, escuta! Lembra daqueles recadinhos que você vinha recebendo desde o começo do ano e achava que era daquele Mauricinho? Sabe quando você comentava que coisas lindas ele escrevia, e ficava mostrando os bilhetes às suas amigas? Pois é, eram todos meus! Agora sabes o quanto eu te amo, e eu sabia que tu me amavas também, vamos namorar, casar, amancebar, juntar, sei lá!
Silêncio do outro lado da linha. Durante alguns segundos em que não consegue falar por puro nervosismo, Tales escuta a suave respiração de sua amada, que tenta recuperar-se do susto para enfim declarar:
-Ouve só: como é que eu vou saber se os poemas eram mesmo teus?
-Ué, simples, lembra desse?
"Na ignominiosa existência celerada
 da solidão conspurcada que evito
 não há mais como negar este fato
 Porque sei que te amo Renata!"
-Pôxa, eu lembro desse, é lindo...
-Então vais me aceitar como teu homem? Ai, como vamos ser felizes! já posso imaginar nós dois construindo nossa vida juntos, a maturidade, as piadas, os passeios, o sexo... Ah sim, o sexo! Porque eu sempre sonho com a gente fo...
-Ei! Tá louco? Não disse que ia ficar contigo. Aliás, acho bom tu esqueceres toda essa bobagem. Olha, eu estou meio confusa, os poemas eram teus mas... Quer saber de uma coisa? Vou jogar aquelas porcarias no lixo, agora que sei que são tuas! Como pude pensar que eram do Maurício...
-Espera! Não faz isso com quem te ama, sei que você me ama também senão não tinha guardado meus poemas! Serei para sempre teu escravo, teu escudeiro, teu eunuco, quero dizer, meio eunuco, ou melhor...
-Tú já estás variando, Tales. Vai dormir que já está tarde e a gente conversa amanhã na aula. Tchau!
-Calma, peraí! Tenho certeza que tu vais me amar também, eu não ia me enganar desse jeito, não desliga ainda, eu não ia suportar! Acabo de me declarar e me tratas desse jeito, como se fosse só bobagem minha? Ah, mas tu me ama, só pode ser por isso que estás assim deste jeito, ficaste apaixonada também e me amas agora mais que tudo, não é? Não é? Alô? Alô?
"Click"
                                    ...

No dia seguinte, Renata estranhou. Como poderia Tales ter faltado a aula? Talvez envergonhado pelo que havia dito, mas que ideia! Só que ele continuou a faltar o restante da semana; e quando a preocupação levou-a a telefonar para a mãe dele e saber o que havia acontecido para ele ter parado de frequentar o cursinho; e para falar também daquilo que tinham conversado naquela noite, descobriu a tragédia ocorrida. Dona Morgada, a mãe, controlando o choro, é quem atende o celular do filho e dá de supetão a notícia:
-Ainda não soubeste? Meu filho partiu desta para melhor!
-Meu Deus, como assim? O Tales morreu?!?
-De jeito nenhum, vira essa boca pra lá! Eu quis dizer que ele partiu, viajou. Disse que ia morar com o pai e tentar vestibular lá mesmo pela capital, que nunca mais ia pôr os pés na nossa cidade. Como negar, Cristo, o menino tão bom...
E rompeu novamente o berreiro, que dava pena de assistir. Muito cedo para sentir saudades, pensou Renata. Não pruma mãe.
                                   ...
Ela se joga na cama, tenta esconder os olhos vermelhos com o travesseiro, não acredita no que acabou de ouvir antes de desligar o telefone. Como pôde, aquele?
       Raiva, ou melhor, um ódio novo, do orgulho ferido de quem é desmascarado é o que Renata sente dominá-la agora. Com o coração exposto daquela forma, um sentimento incontrolável que não sabe ainda dizer o que é, surge monstruoso. Renata não sabia, talvez apenas suspeitasse, receio de chegar e perguntar, dizer a ele pela manhã, só que assim desse jeito não dava! O que ele esperava de resposta? As palavras de Tales ficariam ainda por muito tempo incomodando em sua mente, e naquele momento tais pensamentos provocavam uma onda de soluços, revelando a verdade que escondera de todos mas não de si. Mordia os lábios, as lágrimas escorrendo e molhando o lençol, bufafa, gemia, rangia os dentes, encolerizada. Durante muito tempo, mesmo depois da viagem dele, o grande médico que se tornara. Desde aquele dia até o fim de sua vida, avó de muitos netos, persistia a dúvida residente nas últimas palavras do apaixonado, em seu apelo derradeiro ao amor que ela realmente sentia:
-"Mas como foi que aquele filho de uma égua descobriu?"

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