Ele esperava o almoço ficar pronto sentado no sofá, folheando o jornal que havia pegado mais cedo na repartição, onde não precisaria mais voltar naquele dia, pois tinha dito para um colega bater o ponto dele de tarde. Lia com mais atenção a parte dos crimes, talvez porque no fundo todo dia esperava encontrar ali algum conhecido, o que não raro acontecia.
A mulher que abrira a porta recebera-lhe com um beijo rápido, estava cuidando do almoço, e enquanto falava sobre as coisas de sua vida, procurava não se desocupar da cozinha, cortando temperos e colocando na panela do feijão. O cheiro da comida era bom, toda vez que ele ligava avisando que ia almoçar, ela se esforçava um pouco mais para melhorar o gosto do trivial, feijão com arroz, salada e bife, que costumava preparar mecanicamente, da mesma forma que comia.
Os crimes acabaram. Ele agora folheava a parte de esportes, colhendo a opinião dos comentaristas sobre o seu time que havia sido derrotado no dia anterior, conforme ele acompanhara pela televisão, contra um frágil adversário dos cafundós. A mulher permanecia falando e batendo panelas para dar a impressão de que estava ocupada, mostrando potes, abrindo a geladeira, vez ou outra parando para olhar para ele e perguntando qualquer coisa sem o menor objetivo, pois ante o seu mutismo era sempre ela mesma quem respondia.
Na mesa enquanto comiam, ele tentava olhar para ela e ficava procurando naquele rosto traços que reavivassem em seu interior alguma coisa da pessoa que ele fora, do tempo em que achava aquela mulher linda e se apaixonara. Tinham vivido juntos durante um bom tempo e tido um filho. Mas enfim não estavam mais juntos, ela havia conseguido se arranjar com outro cara, que tinha topado cuidar também do filho dele, que afinal precisava de uma presença masculina em sua vida, para um bom desenvolvimento psicológico e sei lá o que mais. "Além do que a Gláucia tem razão, o Alfredo é muito boa gente..."
- E o júnior?
- Não ouviu eu dizendo que a van daqui a pouco vem trazendo ele da escola?
- E o teu marido?
- Trabalhando, né? Tu sabes que ele nunca vem pra almoçar, fica o dia todo na empresa, ainda mais agora que ele vai estar comandando uma equipe pra desenvolver um projeto que...
Ele continuou mastigando e olhando para a cara da ex-mulher, e não saberia dizer por que continuava a encontrá-la. Se bem que ultimamente só tivesse ido para filar um almoço, pois também não gostava que seu filho visse só ele e a mãe ali. Quem diria que a menos de dez anos eles não poderiam estar juntos um segundo sequer, que procuravam logo um lugar em que pudessem transar e se satisfazer, tamanho o fogo dos dois na época, tão intenso que eles imaginavam pudesse ser eterno.
Ela continuava falando do trabalho do marido, coisa que adorava fazer, para que ele pudesse comparar o quanto ela tinha feito a escolha certa largando um fracassado e ficando com um cara bem-sucedido, abandonando até quem sabe aquele que teria sido seu grande amor, em prol do filho que ela esperava fosse gostar cada vez mais no futuro, já que ele não seria capaz de sustentar nem a ele mesmo, caso ela exigisse na justiça o que era de direito dela, igual sabia que uma outra tinha feito...
Ela finalmente se calou e ficou olhando para ele, tentando parecer apreensiva, mas ele fingiu que não ligou e continuava calado, olhando pro jornal na mesa ao lado do prato. Terminou de mastigar, engoliu o copo de suco, e foi se levantando, pedindo desculpas que não ia demorar mais porque o júnior ia chegar:
- Mas tu demoras tanto pra vir aqui, porque não esperas ele pelo menos dessa vez?
Ele sentiu uma contração ruim no estômago, ou um pouco mais embaixo, como se só agora percebesse a bexiga cheia e precisasse urgentemente urinar. Aquele era o tipo de comentário que ela fazia justamente para que ele se sentisse mal, como naquele momento.
- Tu sabes muito bem por que eu não posso.
- Não podes ou não queres?
Novamente a pontada ruim no ventre, novamente o incômodo que dava vontade de urinar, mas ele não queria entrar numa discussão por tão pouco. Lembrou-se então da época em que ainda viviam juntos, quando a paixão, porém, já tinha acabado. Então haviam pego o hábito de tripudiar nas cinzas que sobraram um do outro, até que não houvesse mais nada a ser feito, além da separação.
- Obrigado pelo almoço, minha nega.
- Desculpa, nego. Olha, mas eu te ligo assim que ele viajar pelo trabalho, aí tu vens dormir de novo aqui comigo, não vens meu amor?
Ele faz que sim com a cabeça, então se despedem com outro beijo rápido, que nem de longe lembrava os beijos de antanho, tornando esse momento especialmente doloroso para ambos.Nessas horas vinha-lhes sempre a lembrança da época em que costumavam passar as tardes brincado com a língua na boca um do outro, quando aquilo costumava dar-lhes um prazer indescritível.
O bom do conto é que vc faz uma leitura rápida e já sabe o fim da história. Mas eu acho sempre que é muito mais difícil escrevê-los. Gostei dos teu textos. Virei mais vezes! Beijinhos.
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