quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Rádio Invasão: O Julgamento Do Ano


"A Justiça não tarda, e falha."


Depois do empastelamento da Rádio Invasão Comunitária FM, que funcionava nos fundos de casa, sem o transmissor, a mesa de som e o resto dos equipamentos, fichados na polícia federal num artigo vagabundo desses qualquer, depois de quase um mês de ressaca mental, vem meu amigo em casa com uma notícia maravilhosa!
- Égua Gabriel! Chegou lá em casa a intimação pra depois de amanhã daquela onda na rádio! E a tua chegou também?
Fui buscar o papel timbrado e mostrei a ele. Os carimbos, a assinatura e tudo o mais tinham sido feitos pela mesma pessoa naquela mesma manhã.  Em menos de quarenta e oito horas a justiça ia ser feita: o juiz ia mandar devolver tudo o que levaram, mais uma indenização pelo incômodo e pelo abuso, e no final ainda apertaria nossas mãos e convidaria para tomar uma cerveja e assistir o jogo do Flamengo com ele.
- Vai sonhando!
Na sexta feira lá estavam os dois com a roupa domingueira, cabelo ensebado pro lado, cara raspada, tudo para causar a melhor impressão possível, mostrando pra sociedade que com um pouquinho de paciência a gente podia tomar jeito. Apagamos os cigarros e entramos no fórum fazendo o sinal-da-cruz, fosse o que Deus quisesse.
Ainda não eram dez horas e a sala me pareceu lotada, com uma dúzia de pessoas dentro dum cercado num canto que seriam os réus do dia, onde nos mandaram sentar e aguardar. Olhando em torno para os pobres-diabos que roubavam galinhas ou batiam na mulher ou matavam os outros ou traficavam ou faziam tudo isso junto, me pareceu que eu estava na feira, onde cada um tentava vender melhor o seu peixe, bem diferente de como ficaram momentos depois, assim que o juiz entrou.
O nosso caso foi o terceiro ou quatro, e o juiz era um cara novo, mais ou menos da minha idade, mas era autoridade ali e eu já tinha sacado a dele.
- Senhor Wálter Rosas Gatinho Pamplona.
Quase me espoquei de rir quando ouvi o nome inteiro do Wálter, que eu conheço a tanto tempo e não sabia como era. Mas ele nem prestou atenção, se levantou rápido e foi ficar de pé na frente do juiz, que começou a descrever o nosso crime, citando a Constituição, artigo tal, inciso tal, parágrafo tal e blá blá blá blá blá...
Perguntou depois se ele se sentia culpado, e pelo jeito meu amigo estava se achando pior que o capeta no inferno, pois baixou a cabeça e disse que 'sim' com um remorso tão pungente na voz que deixou meu coração tocado. O doutor disse então que réu primário e essas coisas têm direito a uma comutação na pena, ou você prefere passar dois anos na prisão? E como o exército brasileiro não sei por quê motivo tinha haver com rádios comunitárias, meu amigo foi condenado a doar um motor de rabeta novo pra eles. Que por sinal devem estar passando maus bocados em suas rabetas, tendo que remar na forte correnteza dos rios da Amazônia.
- Senhor Gabriel Jackson Nascimento dos Anjos.
Parei na frente do homem do martelo com uma cara que eu supunha de inocente, enquanto o meretíssimo desfiava a mesma ladainha anterior, e para resumir ele perguntou:
- O senhor se considera culpado dos crimes que acabei de descrever?
Foi a minha ruína. Olhei para o Wálter e ele me devolveu um olhar de 'não faz isso', mas não teve jeito. Levantei a cabeça e comecei a falar:
- Sua excelência, me perdoe o atrevimento mas eu não me acho culpado de nada não! Acho que foi feita sim uma grande injustiça comigo e com meu amigo, pois invadiram a minha casa, me trataram como um marginal, levaram meus equipamentos, e ainda tenho de  vir até aqui numa sexta de manhã para dizer que o errado sou eu? Discordo completamente! Espero que vossa excelência avalie bem a situação e tome medidas para corrigir essa situação!
- Ah, pois sim! Então temos um engraçadinho aqui hoje, não é senhor Gabriel? Vamos ver se eu entendi bem...
Um conselho: no banco dos réus, nunca dê uma de engraçadinho. O que o togado falou não estava no gibi: começou a citar todo o código Penal, Civil, Processual, de Hamurábi, Súmulas vinculantes, desvinculantes e afins. Só faltou citar o que a avó dele falava quando ele era criança. Em outras palavras, gastou uns bons quinze minutos me passando sermão e destilando toda sua sabedoria e erudição para o auditório embasbacado. Para no final das contas dizer o seguinte:
- Então me diga, senhor Gabriel, o que você prefere? Três doações para o Hemopa ou dois anos na cadeia?
Pode não parecer, mas as duas coisas eram péssimas. Tenho um trauma de infância fortíssimo contra agulhas; quando era pequeno tinham de me amarrar para dar as vacinas. Olhei novamente para o meu amigo, que dessa vez passava a impressão de quem estava vendo o pai prestes a ser enforcado. E tomei minha decisão pelo que me pareceu ser o menos doloroso...
Durante o prazo de um ano, vou ter de fazer as tais doações de sangue, caso não queira retornar para novo julgamento e tomar uma multa. Ruim mesmo foi o pessoal na saída do fórum apontando para mim e para o Wálter, tirando sarro na maior:
- Olha aquele um ali, vai ter que dar a rabeta dele pro exército inteiro! Ha Ha Ha Ha Ha Ha Ha Ha Ha Ha Ha Ha Ha Ha Ha Ha Ha Ha...

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