quarta-feira, 31 de agosto de 2011

A Invasão

          O Henrique olhava lá pra fora debruçado na janela, enquanto eu e o lobão  estávamos sentados no chão, escolhendo alguns dos vinis da coleção dele para rodar. A geladeira estava abastecida de cervejas, ainda não eram seis da tarde, então aquele domingo certamente prometia. Não imaginava o quanto.
- Ei Lobão, Ícaro, chega rápido aí galera que cês tem que ver isso daqui!
Da janela ele apontou para longe, onde havia um brilho distante no horizonte, muito forte pra ser um avião ou satélite, até porque se movia mais rápido que qualquer aparelho conhecido.  O apê do Henrique ficava no décimo andar, então tínhamos uma boa visão do ponto de luz que se aproximava com uma velocidade incrível, e tão rapidamente quanto chegou, parou, mantendo-se atravessado no espaço entre a região das ilhas e a cidade. Um gigantesco artefato, parecendo como que saído de um filme de ficção, que se eu pudesse comparar com alguma coisa conhecida, seria com um porta aviões colossal flutuante, pois pelo que podíamos ver aquilo  não tinha asas.
Olhamos por um momento um na cara do outro, e nós três imaginamos exatamente a mesma coisa, mas ninguém teve coragem de dizer uma palavra. Estava com a sensação mais estranha que já havia sentido, como se estivéssemos presenciando uma invasão alienígena do mundo ou o começo de uma guerra. Senti medo naquele instante, pois vi que repentinamente,  de cima e debaixo e pelos lados, começaram a cair inúmeros objetos menores do principal, pequenas bolas negras dentro da baía do Guajará, por sobre onde se encontrava aquilo que eu agora começava a perceber que era uma espécie de nave mãe, mas completamente imóvel e sem fazer qualquer ruído.
Pairava no ar aparentemente sem qualquer esforço, pois não se ouvia barulho de motores ou turbinas, nem qualquer outro som que a nave produzisse.
- Olha só o quanto de gente está se juntado lá embaixo! Vamos lá perguntar se alguém sabe o que é isso que está acontecendo...
Muito confusos, fomos descendo as escadas junto com vários outros moradores, que tinham acabado de ver  a mesma coisa e estavam apavorados, saindo de suas casas e se aglomerando nas esquinas para ficar apontando pra cima, sem mais o que fazer. Os dois elevadores tinham parado de funcionar, mas ninguém ao menos se lembrava disso.
Fizemos, sem saber que estávamos naquele momento nos despedindo, um acordo de não nos separarmos de jeito nenhum, até que aquela confusão terminasse. Demos as mãos um ao outro, pois em todo lugar se via gente e carros parados, podíamos facilmente nos perder. Todos aqueles que moravam no bairro ou estavam ali por qualquer outro motivo, haviam resolvido se postar imóveis na rua, olhando para cima e cutucando e comentando uns com os outros, pois embora todos estivessem vendo, ninguém queria acreditar. Permaneciam todos parados junto com os carros, motos e ônibus, que também se quedavam inertes, como se estivessem vendo anjos no céu.
Os objetos pretos que caíram no rio Guamá, lá no fundo ficaram, e quinze minutos haviam passado sem que mais nada acontecesse com a nave gigantesca, que estava como quando havia chegado, imóvel e sem ruídos. Apenas o chão, mas podia ser impressão minha, vibrava imperceptivelmente como se um terremoto se aproximasse, e se fosse possível sentir com os pés um terremoto se aproximando.
Perguntei então do Lobão e do Henrique, e eles também estavam sentindo a mesma coisa. Olhei na direção do fim da rua, onde várias pessoas estavam juntas olhando o rio, na escadinha do cais do porto, e chamei a atenção de meus amigos. As pessoas ali estavam se afastando rapidamente, algumas até começavam a correr.
O Lobão largou minha mão primeiro e saiu correndo também. O Henrique olhou pra mim, eu queria falar para ele correr se quisesse, porque era o que eu queria fazer, mas ele esticou o braço e pontou para frente: de dentro da água vi várias formas negras emergindo e esmagando com pisadas as pessoas. Robôs de forma vagamente humana, com cerca de seis ou sete metros de altura, movendo-se muito mais velozmente do que qualquer humano seria capaz, matando  vários dos que ali se encontravam, utilizando agora raios mortíferos que partiam do que seria provavelmente seus braços.
No meio da confusão acabei perdendo o Henrique de vista. Desesperado também, corri pelo meio da praça na tentativa de salvar minha vida. Muita gente caída ao chão, alguns  entravam em pânico e começavam a gritar. Outros ficavam parados, catatônicos, esperando a morte certa. Houve os que tentaram ligar seus carros e não conseguiram sair do lugar, mesmo porque era inútil qualquer veículo naquele momento, tamanho o caos formado, que atravancava a debandada de tantos desesperados em salvar a própria vida.
Os robôs eram muitos e avançavam a passos largos, subindo pela rua e matando quantos pudessem no caminho. Um grupo de loucos apareceu de uma rua transversal, deu para escutar o que gritava, que aquilo era o apocalipse, o fim do mundo descrito na bíblia, antes de serem instantaneamente pulverizados pelo raio de uma daquelas máquinas genocidas.
Não havia jeito de escapar. Conseguira correr bastante, mas eles eram muito rápidos e eu já estava ficando cansado, e num relance vislumbrei alguns metros à frente meu amigo Henrique, que gritava pra mim de dentro de uma loja pra que eu entrasse lá também, antes dos funcionários cerrarem a grade. Porém, no segundo seguinte, meu amigo e as pessoas que estavam com ele e tinham entrado ali para se protegerem, sumiam em meio a uma explosão de fogo e fumaça, atingidos pelo raio que eu vira passar bem de perto, por cima da minha cabeça.
As máquinas não estavam deixando ninguém vivo, cada ser humano e até as árvores e os cães de rua eram explodidos pela arma devastadora, reduzindo a pó e escombros tudo o que encontravam em seu caminho. Eu não conseguia correr mais, os prédios todos estavam prestes a ir ao chão, então não havia mais lugares onde me esconder, nem motivos para continuar correndo. No meio da rua parei e me voltei, fazendo cotocos com as mãos levantadas e xingando todos os palavrões que pude lembrar. Um daqueles monstrengos parou bem na minha frente, apontou-me os dois braços, e eu percebi que no lugar onde em nós está a cabeça, neles havia apenas uma esfera totalmente negra, como o restante do corpo, mas com um único ponto luminoso ao centro.
Era uma minúscula luz azul que brilhava bem no meio, como se fosse um exato e onisciente olho, e que naquele momento parecia dirigir seu facho azulado diretamente para minha testa.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Tudo que você queria ser

       Ele esperava o almoço ficar pronto sentado no sofá, folheando o jornal que havia pegado mais cedo na repartição, onde não precisaria mais voltar naquele dia, pois tinha dito para um colega bater o ponto dele de tarde. Lia com mais atenção a parte dos crimes, talvez porque no fundo todo dia esperava encontrar ali algum conhecido, o que não raro acontecia.
A mulher que abrira a porta recebera-lhe com um beijo rápido, estava cuidando do almoço, e enquanto falava sobre as coisas de sua vida, procurava não se desocupar da cozinha, cortando temperos e colocando na panela do feijão. O cheiro da comida era bom, toda vez que ele ligava avisando que ia almoçar, ela se esforçava um pouco mais para melhorar o gosto do trivial, feijão com arroz, salada e bife, que costumava preparar mecanicamente, da mesma forma que comia.
Os crimes acabaram. Ele agora folheava a parte de esportes, colhendo a opinião dos comentaristas sobre o seu time que havia sido derrotado no dia anterior, conforme ele acompanhara pela televisão, contra um frágil adversário dos cafundós. A mulher permanecia falando e batendo panelas para dar a impressão de que estava ocupada, mostrando potes, abrindo a geladeira, vez ou outra parando para olhar para ele e perguntando qualquer coisa sem o menor objetivo, pois ante o seu mutismo era sempre ela mesma quem respondia.
Na mesa enquanto comiam, ele tentava olhar para ela e ficava procurando naquele rosto traços que reavivassem em seu interior alguma coisa da pessoa que ele fora, do tempo em que achava aquela mulher linda e se apaixonara. Tinham vivido juntos durante um bom tempo e tido um filho. Mas enfim não estavam mais juntos, ela havia conseguido se arranjar com outro cara, que tinha topado cuidar também do filho dele, que afinal precisava de uma presença masculina em sua vida, para um bom desenvolvimento psicológico e sei lá o que mais. "Além do que a Gláucia tem razão, o Alfredo é muito boa gente..."
- E o júnior?
- Não ouviu eu dizendo que a van daqui a pouco vem trazendo ele da escola?
- E o teu marido?
- Trabalhando, né? Tu sabes que ele nunca vem pra almoçar, fica o dia todo na empresa, ainda mais agora que ele vai estar comandando uma equipe pra desenvolver  um projeto que...
Ele continuou mastigando e olhando para a cara da ex-mulher, e não saberia dizer por que continuava a encontrá-la. Se bem que ultimamente só tivesse ido para filar um almoço, pois também não gostava que seu filho visse só ele e a mãe ali. Quem diria que a menos de dez anos eles não poderiam estar  juntos um segundo sequer, que procuravam logo um lugar em que pudessem transar e se satisfazer, tamanho o fogo dos dois na época, tão intenso que eles imaginavam pudesse ser eterno.
Ela continuava falando do trabalho do marido, coisa que adorava fazer, para que ele pudesse comparar o quanto ela tinha feito a escolha certa largando um fracassado e ficando com um cara bem-sucedido, abandonando até quem sabe aquele que teria sido seu grande amor, em prol do filho que ela esperava fosse gostar cada vez mais no futuro, já que ele não seria capaz de sustentar nem a ele mesmo, caso ela exigisse na justiça o que era de direito dela, igual sabia que uma outra tinha feito...
Ela finalmente se calou e ficou olhando para ele, tentando parecer apreensiva, mas ele fingiu que não ligou e continuava calado, olhando pro jornal na mesa ao lado do prato. Terminou de mastigar, engoliu o copo de suco, e foi se levantando, pedindo desculpas que não ia demorar mais porque o júnior ia chegar:
- Mas tu demoras tanto pra vir aqui, porque não esperas ele pelo menos dessa vez?
Ele sentiu uma contração ruim no estômago, ou um pouco mais embaixo, como se só agora percebesse a bexiga cheia e precisasse urgentemente urinar. Aquele era o tipo de comentário que ela fazia justamente para que ele se sentisse mal, como naquele momento.
- Tu sabes muito bem por que eu não posso.
- Não podes ou não queres?
Novamente a pontada ruim no ventre, novamente o incômodo que dava vontade de urinar, mas ele não queria entrar numa discussão por tão pouco. Lembrou-se então da época em que ainda viviam juntos, quando a paixão, porém, já tinha acabado. Então haviam pego o hábito de tripudiar nas cinzas que sobraram um do outro, até que não houvesse mais nada a ser feito, além da separação.
- Obrigado pelo almoço, minha nega.
- Desculpa, nego. Olha, mas eu te ligo assim que ele viajar pelo trabalho, aí tu vens dormir de novo aqui comigo, não vens meu amor?
Ele faz que sim com a cabeça, então se despedem com outro beijo rápido, que nem de longe lembrava os beijos de antanho, tornando esse momento especialmente doloroso para ambos.Nessas horas vinha-lhes sempre a lembrança da época em que costumavam passar as tardes brincado com a língua na boca um do outro, quando aquilo costumava dar-lhes um prazer indescritível.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Esmeralda

       Os galhos partiam-se sob seus pés à medida que ela avançava. Pedaços de seu vestido rasgavam-se e ficavam presos aos ramos que por pouco não lhe arranhavam a pele.  Corria como se não precisasse de pulmões, e em meio àquela floresta escura, que aos poucos ia se tornando azulada pelo nascer do sol, ela sentia-se em casa.
Sua vida, como o lugar que a cercava, sempre fora repleta de perigos ocultos, de galhos pontudos que tentavam de qualquer modo atingi-la, mas que conseguiam tão somente rasgar os pedaços de sua roupa que ficavam pelo caminho. Os seus olhos bebiam os primeiros raios da manhã que varavam pelas copas, os pássaros todos tinham já acordado, e que lindos eram os diferentes cantos que se juntavam num som jamais imitado por qualquer instrumento humano.
Estava próxima do final do caminho, sabia porque conseguia sentir o cheiro úmido e vivo que vinha do mar à frente, a maresia e o sal que impediam o musgo de crescer nos troncos pelos quais ela passava agora, sempre correndo e cada vez mais feliz, e a felicidade era tanta que escorria em pequenas gotas pelo canto dos olhos, e o brilho contra os raios solares deixavam pelo tapete daquela floresta caírem os pequenos brilhantes, que eram absorvidos pela terra fresca.
Finalmente ela pôde enxergar alguns metros à frente a claridade absoluta que vinha da manhã nascente, e o esplendor do sol atingiu-na em cheio quando ela saiu da mata e postou-se na beira daquele abismo, com o mar descortinando-se esverdeado, batendo nas rochas sob seus pés muitos metros abaixo, cor de espumas de esmeraldas.
"Meu nome também é esmeralda...", pensou ela quando viu tudo aquilo que com absoluta certeza o Senhor dos Céus havia criado, com o objetivo de que ela sentisse prazer ao estar ali naquele lugar, que Ele havia-lhe determinado e que em pensamento também lhe dizia: "Vês! E para sempre toda esta terra e estas águas, e todos os animais que andam por cima da terra e nadam por debaixo destas águas serão teus. E tudo o que foi por Mim criado está agora em tuas mãos, e toda a vida que virá de ti será através deste êxtase que sentes agora, porque assim Eu quis."
Ela estendeu os braços, fechou os olhos que choravam de uma felicidade que era mais que felicidade, e mais ainda que qualquer sentimento, e tão grande era a força daquelas palavras que escutara, que ela teve certeza: Se quisesse se atirar no abismo não morreria. Ao contrário, alçaria vôo ao céu longínquo, e gritaria com toda a força de sua alma um amor imenso pelo mundo, capaz de alcançar as estrelas.

domingo, 28 de agosto de 2011

Primeiro Beijo

        O Thiago jogava muito bem, ele e o Igor eram os únicos da vila que não podiam ser do mesmo time, pela desproporção das forças em relação ao restante de nós, apenas esforçados. Tirante o Bernardo, que só participava das peladas porque era dono da bola, já que seu único recurso era dar chutões e barrigadas nos menores, pois ele nem sempre acertava a bola.
Até que eu não era tão ruim, mas  a posição de zagueiro dificilmente é notada, por maior o esforço que se faça nas divididas e desarmes. Todo final de semana era sagrado a molecada da vila bater uma bolinha, usando como traves os portões das duas casas que ficavam nos extremos do que a gente chamava de 'campo'; a do próprio Bernardo e a do Plínio, que por causa disso sempre era convidado para jogar, embora o que ele preferisse mesmo era brincar com as meninas que às vezes eram a nossa torcida.
- Vai Marcos, não deixa ele passar com essa bola!
Eu e o Bernardo somos da mesma altura, mas naquela época ele tinha bem mais corpo que eu, e a única coisa que eu podia fazer para evitar que ele avançasse para o gol, seria calçando o pé direito na bola e mantendo o esquerdo para trás como apoio, evitando uma daquelas terríveis barrigadas, pois ele não sabia driblar. Ele veio com tudo e encheu o pé, a bola dividida espirrou pro canto e ele caiu em cima de mim. Do chão ainda vi o Thiago pegar a sobra e marcar com o gol vazio para o time deles.
 - Grade!
O Igor nem me deixou levantar direito e já foi me esculhambando, dizendo que a culpa do gol era minha, e em parte era, só que aquele nosso time estava uma porcaria, ninguém se lembrava de voltar para marcar quando perdia a bola, e o Plínio estava mais interessado em não sujar a roupa do que em ajudar nosso time na partida.
Fui sentar meio puto próximo das meninas, não ficaria perto do Igor, que àquela hora dava um esporro no Rick, coitado, o mais novo de todos, que parecia prestes a chorar. Prestando atenção na cena, nem percebi quando uma garota que eu nunca tinha visto sentou do meu lado:
- Tá doendo?
- O quê?
Ela apontou pro meu braço, e eu vi que tinha arranhado o cotovelo naquela última dividida, mas era um machucadinho sem importância. Olhei para a garota que havia me perguntado isso, e no mesmo instante senti algo no peito que me fez baixar os olhos. Ela era muito bonita, devia ser um ano ou dois mais velha que eu, mas do jeito que falava, com uma voz tão amiga e com a pele fresca de quem havia acabado de tomar banho, me deu a sensação de que eu era um moleque sujo de rua, o que naquele momento realmente era.
- Isso não é nada não, depois sara.
- Não queres ir ali na mangueira do prédio lavar?
Tinha começado a me lembrar dela. Era a moça que sempre via a gente jogar nossas peladas de fim de semana, de um apartamento do quinto andar onde morava, no prédio que tomava todo um lado da  nossa vila. Descobri então que ela tinha virado amiga da irmã do Thiago, e que agora começaria a descer com mais frequência para bater papo. Ela perguntou de novo se eu não queria me lavar, eu estava meio confuso, não achava mesmo que aquele machuacado fosse grande coisa,  mas para não dar uma de mal educado acabei entrando com ela pela garagem, que era onde ficava a cisterna do prédio.
O nome dela era Tainara, e enquanto eu lavava os braços e aproveitava também para molhar a cabeça e tomar um pouco d'água sem que ela percebesse, disse-me que sempre que escutava o nosso jogo de bola, ela ia dar uma olhada para ver se eu estava jogando também.
Quando ouvi aquilo quase engasguei e deixei a mangueira cair no chão, molhando um pouco a barra do vestido dela. Não sei se foi também por causa do cansaço, mas senti naquele momento as pernas bambearem um pouco e o meu rosto ficando muito quente, como se água ao invés de refrescar estivesse fervendo na pele.
- E-eu te molhei? Foi mal, é que...
- Deixa pra lá.
Ela disse isso sorrindo, no momento em que eu criava coragem para olhar mais uma vez pra ela e pensava "que sorriso lindo!". E devo ter ficado com cara de babaca, porque ela riu mais ainda, me segurou pelo braço sem se importar com o machucado, e foi me conduzindo até o fim da garagem, num canto em que a gente não podia ser visto.
- Você já beijou uma mulher na boca?
Juro que não consegui dar nenhuma resposta, estava fascinado com a presença que aquela garota tinha, quase da mesma idade, mas bem mais madura que eu. Ela entendeu perfeitamente que eu nunca tinha beijado, deu mais um daqueles sorrisos maravilhosos, que dessa vez quase fez meu coração arrebentar dentro do peito, e foi aproximando o rosto e aquela pele fresca e perfumada de mim, que não sabia o que fazer, quando enfim ela encostou os lábios rosados nos meus, e senti aquela lingua macia e gostosa brincando dentro da minha boca, passeando pelos meus dentes, com o sabor mais doce que já havia experimentado, me incentivando a fazer o mesmo, e eu me segurando para continuar de pé, já que minhas pernas tinham perdido de vez as forças.

sábado, 27 de agosto de 2011

Música Para Não Ser Escutada ou O Puxirum

        Nasci em 1984, no hospital da capital para onde minha mãe foi mandada às pressas, já que houve complicações no parto e naquela cidade do meu estado não tinha emergência. Em outras palavras, quase morri ao nascer, graças aos safados que se dizem políticos e roubam junto com os familiares e apaniguados tudo o que conseguem enfiar nos bolsos, na maior cara de pau, tendo o mais perigoso deles conseguido se eleger por outro estado, onde alastrou seu poder como a podridão que exala dos cadáveres e pode ser sentida à distância, prevaricando eternamente com o mandato que lhe proporciona este povo ludibriado.
Minha infância não vou dizer como foi miserável, passando fome e sofrendo de doenças comuns que matavam à rodo, e que levaram três irmãos meus, a menorzinha de apenas seis meses, devido à falta de saneamento básico que fazia todos na cidade cagarem em buracos no chão, cavados próximos aos poços de onde a gente tirava água para beber. Parece que faz tempo, mas lá até hoje é assim, embora mês passado tenha finalmente chegado água encanada. Só que apenas na casa do prefeito.
Escapei da morte, das lombrigas, da disenteria, dessas doencinhas de nada que só matam uma meia dúzia de dez, crianças na maioria, gente que viveu pouco ou nada ainda, então não é tão ruim assim. Trágico seria morrer um jovem doutor ou filho da classe média, em que a família investiu tanto, apostou todas as suas fichas, para ver morrer de dor de barriga. Sacanagem tua! Quer dizer que no meu país, que paga bilhões de juros todo ano, crianças pobres no interior morrem de caganeira! Mas não vivemos na Europa? E a nossa seleção de futebol, vai bem? Ah, tá...
Para não morrerem de fome todos, minha mãe escolhia quem ia alimentar, e era com o coração partido que ela deixava de dar comida aos mais fracos, sabendo que não podia desperdiçar o pouco que tinha com quem brevemente ia morrer. Naquela casa ninguém conseguia dormir a noite por causa do choro. Eu e meus irmãos chorávamos de fome, e minha mãe de fome mas de pena também, e de raiva por causa de um castigo tão grande para gentes tão pequenas, que se pudessem derramar toda a dor que traziam no peito, fariam brotar novo oceano na poeira seca das ruas sem calçamento.
Um dia acordei de madrugada, os olhos grudados ainda pelas lágrimas que haviam secado e virado remela, fui buscar um gole d'água do pote, e resolvi dar uma olhada na rede onde estava deitada minha mãe. Lá estava ela dormindo, com nossa irmãzinha caçula no colo, sorrindo na certa porque estava vendo os anjos de Nosso Senhor no seu sonho. Mas quando prestei atenção direito nos braços dela, vi que a neném estava morta. Estava morta. Seis meses e já estava morta.
Não peguei a água. Não limpei os olhos. Só sentia que a dor não parava mais de creser, rasgando a carne por dentro. Foi então que vislumbrei uma outra coisa tomando forma, muito mais sutil e mais forte do que qualquer sensação que eu já conhecera. Que subia pelas minhas entranhas e se apoderava do meu corpo como se fosse uma entidade que estivesse me possuindo; que me fez correr para vomitar a bílis no mato, e era o meu sangue com fel que eu via ali misturado entre as folhas. Então claramente escutei alguém me dando uma ordem ao pé do ouvido, mas não havia pessoa alguma em redor.
Não acordei ninguém. Entrei e fui andando devagarinho, botei duas camisetas e um calção na ponta de uma vara, muito bonitinho, só que antes de sair levei também o revólver do meu pai, que ele escondia por detrás dos sacos de carvão pros filhos não mexerem, e fugi de casa. Tinha acabado de completar dez anos, e naquela noite fresca e estrelada, enquanto caminhava sem rumo, eu já podia me considerar um homem feito. Assim como os políticos e o Senhor dos Céus, eu também tinha agora nas mãos o poder sobre a vida dos outros.
Não demorou muito até que eu despachasse a primeira alma sebosa que cruzou meu caminho, e faz tanto tempo que até perdi a conta de quantos mandei para debaixo da terra. Sei que não vou durar muito, resolvi escrever isso aqui da cadeia para que o meu filho quando nascer possa saber quem foi o pai, que era mais homem que muito valente junto, que matava de tiro, facada, ou até de mãos limpas, como quando da vez em que despachei um desafeto meu só no mata-leão.
Se tu meu filho um dia leres isso, saiba que teu pai não foi malvado não. Quero que saibas que matei tanta gente porque a vida foi ingrata comigo, e a única que podia ser minha aliada era aquela que quase me pegava já no dia em que vim ao mundo. Mas um dia nossa parceria vai terminar, e eu poderei quem sabe descansar este corpo sofrido nos braços dessa indesejada das gentes, mas de quem não tenho mais medo, ela que me acompanha já a tanto tempo e sempre me olha sorrindo, com aquele sorriso de quem sonha sempre com os anjos do Nosso Senhor Jesus Cristo.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Um Dia De Praia


          Arrumamos nossas coisas, fechamos a casa e saímos para encontrar nosso amigo Rodão e sua mulher Aline, além do Baratão e do Surfista e a namorada dele. O combinado tinha sido sair bem cedo para aproveitar o dia todo na praia, tomar banho na maré, fazer avoado, pegar jacaré, essas coisas...
- Égua, mas uma hora dessas? Tou acordado olha que tempo! Vi foi o sol nascer deitado aqui.
Não duvidava que o Baratão tivesse acordado cedo. O problema é que ele tinha acordado mas continuara deitado na rede, e quando chegamos ele estava apenas 'cochilando' enquanto nos esperava:
- Então já chegamos, pelo menos enche umas duas garrafas dessas de dois litros que não vai ter água pra tomar lá.
- Mas precisa de duas garrafas?
- Cara, são nem oito horas e olha esse sol! Leva que a gente vai sentir sede.
- Seu moço, falando em sede, me diga uma coisa aqui pra esse seu amigo: estás levando o nosso goró?
Dessa vez foi a Nise quem falou:
- Credo, Baratão! Mal levantastes, não tomastes nem café e já estás pensando na cachaça! Eu, hein!?!
Ele reclamou que já tinha tomado café sim, 'vocês não escutaram eu dizendo que tou acordado desde cedo?', e que só tinha perguntado da birita porque no dia anterior eu tinha prometido que ia trazer. Então mostrei pra ele no saco junto com as frutas e a farinha as duas garrafas de Cinquenta e Um, e eu esperava que fosse suficiente praquele fígado. Mais animado, ele resolveu se levantar da rede, encheu as duas garrafas, e saímos os três para encontrar o Rodão e o Surfista.
- Égua, eu já estava indo lá chamar vocês!
Uma das coisas mais incríveis da ilha era que todo mundo acordava com o nascer do sol, mas para não fazer absolutamente nada. Alguns ficavam apenas se embalando, outros fumavam logo o primeiro do dia, e a maioria fumava deitada e se embalava. O que não era o caso dos meus amigos: o Rodão já tinha limpado e preparado os peixes que pegara na primeira vazante da madrugada, no curral do Seu Bacuri; o Surfista já estava lá com a namorada e a prancha, e ninguém tinha fumado nenhum ainda.
- Tudo certo, bora logo antes que o sol esquente mais!
E lá fomos nós sete, descendo na direção do começo da trilha que pegaríamos para chegar mais rápido à praia do Meupé. Indo por ali ficava mais ou menos a uma hora de distância, contornando a entrada do mangue.
O Surfista bolou um enquanto a namorada segurava a prancha; o Baratão matou praticamente sozinho metade de uma garrafa de cachaça; eu e a Nise parávamos às vezes para bater umas fotos, pegar uns ajirús nos arbustos, se refrescar no igarapé que já era bem próximo da praia, até que finalmente chegamos.
Saímos do mato direto para a areia branca, exatamente nos fundos da casa de salgar de algum pescador. Parecia que estava desocupada fazia tempo, e lá deixamos nossas coisas,  juntamos uns paus para mais tarde fazer o fogo, e logo em seguida corremos para se jogar na maré.
E foi a manhã toda assim, entre goles de cachaça, pernas de grilo, água, frutas, farinha e avoado que passamos o dia. Revezando-nos com a prancha do Surfista, embalando-se na rede, jogando bola, ou simplesmente sentados na sombra embaixo do telhadinho de sapê entrançado, sentindo o vento que vinha do mar, salgado e ininterrupto, colaborando com o mormaço no paciente trabalho de curtir as peles dos bichos que éramos, naquele espaço enorme de mundo onde a gente não fazia nem peso, nem pesava em ninguém.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Trabalho de Geografia

         Quando avisei a mãe que o trabalho era na casa do Gabriel, ela fez uma careta e retrucou:
- Mas na casa daquele garoto? Não tinha um grupo pior pra tu te reunires pra fazer este bendito trabalho?
Minha mãe podia até não acreditar, mas existiam grupos piores que o meu sim. Ainda mais naquela turma de segundo ano cheia de gente tosca, eu que nunca tinha estudado à tarde, mas naquele ano seria impossível continuar no turno da manhã, por causa do valor do desconto:
- Pôxa, mãe! O Gabriel é um cara bacana. Só um pouco desleixado, meio fedorento, meio desligado, mas gente boa. E a casa dele fica perto do colégio, é mais fácil pra todo mundo chegar lá.
Minha mãe tinha visto o Gabriel uma só vez na vida e tivera péssima impressão, como todas as mães que o viam pela primeira vez. Ele se vestia sempre dos pés à cabeça de preto, acho que justamente para fazer contraste com a pele muito branca, que de alguma forma ele conseguia evitar que pegasse sol, pois eu nunca tinha visto um cara tão branco.              
        Quando ele chegava atrasado para a aula então, que parava no portão e tirava um cigarro do bolso, geralmente apagado na metade, e começava a fumar soltando fumaça no rosto do porteiro? Estava sempre muito pálido, de óculos escuros, cantarolando umas músicas em inglês no meio das conversas, meio que no mundo da lua:
- Égua, ôhhh! Quero ver quando daqui a pouco vão te confundir com um vampiro desses vagabundos por aí, então eu vou achar muita graça da tua cara, ha, ha, ha, ha, ha!
Na hora marcada, só estava o Leandro me esperando no local combinado, para irmos juntos fazer o trabalho de geografia:
- Cadê o Patrick?
- Rapaz, ele perguntou se não podia colocar o nome dele que amanhã ele fala com a gente lá na sala...
Eu não usava celular, mas pelo menos o Patrick tivera a decência de avisar que estava dando o cano na gente, evitando que esperássemos ali feito dois patetas. Só isso já valia o nome dele no trabalho, o foda ia ser na hora de apresentar a parte oral, mas no outro dia a gente dava um jeito. Sempre dava.
Não imaginava que a casa do Gabriel fosse tão grande, o muro pelo menos, e quando tocamos a campainha foi ele mesmo quem veio abrir o portão. Estava meio calado, com os óculos escuros de sempre, e dois cachorros beagle corriam estabanados em volta dele, querendo encontrar uma brecha para fugir.
- Entra logo, cuidado com o Tom e o Nick, lá pra trás!
Pensei que ele estava falando com os bichos, mas era para eu e o Leandro irmos andando, o quarto dele ficava nos fundos, separado da casa principal por um caminho no jardim, que fazia tempo não era cuidado, com mato crescendo por todo lado, exceto no lugar onde pisávamos. Passamos em frente à sala e notei que dali vinha o som de música clássica, mas não havia ninguém escutando.
Por algum motivo o Leandro que tinha vindo comigo estava inquieto, agitado, parecendo com um dos cachorros, perguntando nervoso enquanto cutucava o Gabriel:
- Que cheiro é esse? Que cheiro é esse? É o que eu estou pensando? Cadê tua mãe?
Aquela amizade dos dois era desconhecida pra mim, mas resolvi me concentrar no que era o quarto dele, que entrávamos agora. Quem poderia imaginar que um cara que se vestia unicamente de preto, vivia num lugar tão colorido que mais parecia uma viagem de ácido do que um quarto. As paredes pintadas com sprays de todas as cores, mas incrivelmente coerentes; pôsters diversos, de gosto duvidoso, alguns bem antigos e outros mais recentes; muitos discos de vinil abarrotando uma estante e uns tantos outros espalhados; vestidos coloridos, chapéus, mantas, algo realmente impressionante e caótico, misturado com o aroma de incenso por sobre um outro cheiro peculiar:
- Cara, foi isso que sobrou de Woodstock? Onde a gente vai fazer o trabalho de geografia? Os teus cachorros vão entrar no grupo também? E esse cheiro eu acho que conheço, isso por acaso não seria...
O Gabriel nem esperou que eu terminasse a pergunta. Levantou de cima do cinzeiro um daqueles cigarros que ele costumava fumar só até a metade, só que esse era bem diferente de um cigarro comum:
- Toma um pega...
Se o Leandro mostrasse aquele interesse para qualquer outra coisa, com certeza teria muito sucesso na vida. Ele mal tinha estendido o basesado, e o leandro já pulava com os olhos brilhando para dar uma tragada, como se aquilo fosse o último copo d'água num deserto. Quando me ofereceu, recusei, tinha um trabalho para entregar no outro dia que valia a nota toda da avaliação, e não ia passar o resto da tarde momozando e fumando maconha. Para não dar uma de careta, disse que daria uns tapas, mas só depois que a gente terminasse com o que tínhamos ido fazer ali.
Consegui desocupar uma mesa dos refugos do dancing days, e botei minha mochila em cima, enquanto ia tirando os bagulhos, digo, o caderno e os livros lá de dentro. O leandro já estava bem à vontade, fumando deitado na cama e olhando fixamente prum pôster do Jefferson Airplane no teto, enquanto nosso anfitrião confeccionava mais um cigarro de cannabis com extremo cuidado, o que me fez pensar que ele ainda daria um excelente médico-cirurgião. E foi justamente nesse momento que entrou um furacão no quarto:
- Oi, tudo bem com vocês? Gabriel, tu vistes por onde eu larguei o enforcado? já ofereceste alguma coisa pros teus amigos? O quê que o Nick e o Tom estão fazendo bagunçando por aqui? Posso abrir a janela pra sair um pouco essa marofa? Por que o figurino da peça do teu tio está jogado no chão? Ah, tá aqui, achei! Fiquem à vontade pra estudar o trabalho de vocês, que depois eu trago um lanchinho pra matar a larica. Vem Nick, vem Tom, tchau então pra vocês, até mais tarde...
A Dona Sônia era uma figuraça. É muito difícil tentar descrevê-la aqui, e provavelmente ela já deve ter pintado o cabelo de outra cor. Depois que ela trouxe uns sandubas com refresco pra gente, tocou um pouco de violão, falou das viagens que tinha feito quando era mais ou menos da nossa idade, uma "porra-louca", leu o futuro meu e do Leandro nas cartas, e ainda me emprestou um livro do Timothy Leary, eu achei que o Gabriel tinha muita sorte de ter uma mãe tão bacana como aquela.
Do trabalho me lembro pouco, nem sei se a gente conseguiu mesmo apresentar aquela porcaria no outro dia, a maior parte das lembranças daquela tarde tinham virado fumaça. Mas daquele dia em diante, eu o Leandro e o Patrick, que tinha nos dado o cano mas que soube da estória, fazíamos de tudo para que todos nossos trabalhos fossem feitos na casa do Gabriel, que graças aos nossos esforços da época conseguiu passar no curso de medicina, após o que foi fazer um ano de residência na Jamaica.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Zoológico Dos Atores

     

        Os dois cachorros brincavam no meio da rua, mordiam um ao outro, perseguiam-se, pulavam pra calçada, assutavam algumas poucas senhoras que passavam àquela hora.
Seu Manuel do açougue estava servindo uma freguesa, meio quilo de músculo  moído e mais um de agulha com osso, tirado o excesso de gordura; e já se preparava para atender Dona Lúcia, que acabara de aparecer na porta com seu carrinho de compras.
Jennifer tinha um salão onde oferecia desde cortes unissex até todo tipo de tratamentos para o cabelo, luzes, mechas, escovas de açaí e chocolate, além de serviços de manicure e pedicure à domicílio, contando para isso com o trabalho de algumas de suas amigas, que empregava em seu negócio oferecendo em troca sempre uma remuneração justa.
Na esquina funciona o Bar do Montanha, onde apenas três caras bebendo cerveja, incluindo o dono do bar, assistiam ao programa de esportes habitual da hora do almoço; e sem mais assuntos que conversar, ficavam apenas respirando calados, vez ou outra levantando um copo, ou se virando para olhar os cachorros que não paravam de correr e fazer barulho.
O sol estava esbraseante como sempre, e o calor era tanto que nem os passarinhos pousavam mais nos fios, preferiam com certeza se esconder na sombra úmida por dentro das copas das árvores. Um carro acabara de aparecer no começo da rua, muito distante, um carro preto que vinha acelerando depois de cantar os pneus. Uma bola cor de laranja voa por cima do muro de um pátio, onde duas crianças brincavam; uma delas abre o portão, e depois de localizar a bola do outro lado, atravessa correndo para ir buscá-la.
O carro passa muito rápido, ouve-se o barulho de um grande estalo e um grito pavoroso. A cor vermelha por um momento tinge o ar, até que some, sobrando apenas o negror da fumaça e o cheiro de combustível queimado.
O Montanha se levantou da cadeira, pôs as mãos na cabeça, e não conseguiu dizer uma única palavra. Os outros dois continuaram sentados e bêbados.
Leidyane e Marlene saíram logo do salão e foram olhar da rua; enquanto isso lá dentro Jennifer quardava o dinheiro do caixa no cós da calça, para também sair junto com suas funcionárias e dar uma olhadinha no ocorrido.
Seu Manuel pedia licença às freguesas para arredarem as cabeças, pois ele estava atendendo atrás do balcão e não poderia sair dali para verificar de perto o acidente. Duas velhinhas pararam na esquina horrorizadas.
Indo naquela velocidade, com certeza o carro preto já estaria muito longe. E daquelas pessoas, a única que chorava era a criança, com a bola laranja no colo. Não porque estivesse machucada. A dor que sentia não poderia ser dor física, pois lhe vinha de fora, através dos olhos que enxergavam um cachorro branco esmagado, com suas vísceras e o sangue fresco espalhados pelo asfalto; sangue salpicado no rosto que tinha um gosto doce como o das flores. Observava também um outro cão, imóvel e triste ao lado do companheiro morto, que mirava a cena provavelmente sem entender nada.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Domingo Na Praça

 
       O dia estava muito claro e o céu de um azul completamente sem nuvens, o que costuma despertar na maioria das pessoas uma  vontade de sair para a rua, de passear por aí ao lado de alguém, ou até para encontrar alguém. Principalmente se este dia, pra grande felicidade de José Eulálio, coincidisse com um feriado, quando portanto não precisava trabalhar.
Saiu então também pra rua, ligou e ficou de encontrar uma pessoa. E essa pessoa, assim como ele, gostava muito de tomar birita. Ele então sugeriu de encontrarem-se num bar:
- Pô, mas sabe o que é? Eu estou sem capital pra tomar cerveja, por que a gente não aproveita hoje e vai tomar uma vodka lá na praça?
- Tá na mão! Então a gente se encontra lá daqui a uma hora!
- Falou!
A praça, como de costume, naquele dia estava cheia de gente. José Eulálio tinha levado a vodka, e dava pequenos goles enquanto admirava a tarde, sentado naquele banco de praça. Pensou ele: "Cara, que dia feliz! Não sei se é essa bebida. Não sei se é essa espectativa no ar... só sei que hoje não quero me matar! Pelo contrário, quero hoje celebrar a vida! Quero olhar nos olhos de cada pessoa que me olhar e desejar boa tarde..."
- Boa tarde!
Os dois rapazes, talvez namorados, não entenderam muito bem, e talvez por acharem que era um assalto, apertaram o passo. Mas o céu continuava muito lindo, a luz do sol tinha ficado mais forte, as folhas balançavam com o vento. E como estava bonita aquela tarde:
- Boa tarde!
- Pra ti também!
As duas falaram e continuaram caminhando. Acenei pra elas e fiquei olhando enquanto elas iam embora rindo. O que mais faltava ali? Sentei de novo e fiquei dando boa tarde pra todo mundo que passava. Quando a pessoa que eu esperava chegou, haviam uns cinco desocupados em volta de mim, escutando as piadas mais toscas do mundo, mas achando graça de graça; e eu também contente de muito, que nem sei que horas consegui notá-la ali:
- Aí ele fez desse jeito com a bola pra quicar, bateu duas solas e...
Lá estava ela na minha frente, linda, fazendo cara de brava, porque eu já estava muito doido, a garrafa tava pela metade, e só agora eu tinha visto ela.
- Te amo...
Levantei de um salto e não deixei ela fugir. Como eu amava essa mulher! Dei um beijo nela, e depois mais outro, e mais outro... E não queria parar de beijar aquela boca maravilhosa. Até que estranhamente senti alguém cutucando meu ombro com um dedo sujo e pontudo. Era um dos vagabundos que tinha se levantado do banco, querendo mais um gole da vodka que já estava no fim:
- Pô chegado, aí tu falastes do cara que bateu duas solas... e qual é dessa cana aí?
- Pois é irmão, aí o senhor vem me impregnar com esse papo furado só por causa de birita?  Então o cara bateu as solas, deu uma bicuda assim e falou: "Olha que nem eu faço no cú de quem vem me tirar por causa de cachaça!"

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Entre os Leões

        Ouço as vozes de milhares de pessoas gritando para além destes grossos portões de madeira encardida. Querem que comece logo o espetáculo; o pão já está no fim, e sua paciência também. É o sangue de nós doze que eles clamam para ver jorrar como espetáculo, pois têm medo. Medo e temor e reverência pela morte que enxergam sem conhecerem. O mesmo receio que os impede de ouvirem os próprios pensamentos.
Os portões se abrem e somos lançados contra a claridade cegante lá de fora. Todas as pessoas nas arquibancadas daquela arena urram de prazer ao nos verem entrar cambaleantes. Estamos ha muito tempo sem alimentos, nos deram água suja para beber, o mais velho de nós, Simão, está caído sem fazer a menor questão de se levantar. Pessoas que vieram aqui assistir a um espetáculo foram enganadas, pois nenhum de nós tem força para se garantir nem com os próprios membros.
Meus olhos acostumaram-se com a luz. Olho em redor e vejo toda a arquibancada tomada, neste chão somos apenas nós e a nossa fé, de nos encontrarmos em breve com Aquele de quem nosso Mestre tanto falava. Por um instante, não consigo entender o que está acontecendo, o grito em nossas cabeças diminui de volume, e conseguimos escutar uns aos outros:
- O que aconteceu?
- Não sei.
- Olhem!
A figura que Pedro apontara vinha subindo num traje explendorosíssimo a escada do camarote real, seguido por todo um séquito de escravos e escravas também vestidos com muita pompa, para servirem-no em todos os seus caprichos. Governador das Terras do Ocidente e Oriente, César, o Magnífico. E a um  mísero gesto seu, foram abertos doze portões, de onde saíram doze enormes feras selvagens, que foram deixadas quase tão esfomeadas quanto nós de propósito, para delírio de toda aquela multidão enlouquecida que agora gritava mais do que podiam compreender meus ouvidos e minha razão.
A gente tenta correr e mais do que isso não se pode fazer. O pobre Simão é o primeiro a ser abatido, duas feras derrubam-no de frente ao chão e imediatamente começam a arrancar grandes pedaços de sua magra carne. Vejo João ser degolado por uma das feras que avança sobre ele, e depois pára pra lamber o sangue que lhe escorre pela ferida no pescoço. Um de nós se ajoelha e ergue as mãos em desespero, dizendo que não precisa mais ver aquilo, no momento em que um leão dos maiores arranca-lhe os olhos e metade da cara com uma patada certeira, com aquelas garras afiadíssimas que atiram  fulminado ao chão o pobre Tomé.
Tudo acontece muito rápido. O sol louco volta a me cegar, a fraqueza é tanta que sinto que estou prestes a desmaiar, talvez seja até melhor assim. Todos os meus onze amigos estão mortos, e eu sou o único que resta ali de pé, apenas aguardando qual será o destino reservado a mim pelo Altíssimo. Imagino que qualquer que seja esse destino, necessariamente terá de passar por este leão em minha frente, na certa o maior de todos. Os outros encontram-se entretidos com as carnes das outras vítimas de até onde pode chegar a crueldade e ódio humanos.
Onde poderia minha força contra a de uma fera selvagem? Que homem nesta terra conseguiria não tremer de pavor ante um perigo tão incomensurável como aquele? E que males na terra ou no universo podem subjugar aquele que com um gesto lá dos céus, manda à terra todos os seus anjos para que o mal nunca o alcance, e as armas dos inimigos passem sempre ao seu lado? Quem é ao mesmo tempo Pai, Filho, e Espírito Santo?
                                     ...
O gigantesco animal parece que gozava desse momento, com o zurro que vinha das outras feras nas arquibancadas, que lambuzavam-se no sangue e vísceras de seus próprios irmãos. Urravam histéricos em meio a um orgasmo coletivo, provocado pela bestialização de suas almas, após tantas carnificinas a que eram obrigados a se submeter diariamente, do contrário não lhes seria dado pão para comer.
Olho para o azul infinito acima de mim, e fico imaginando em que ponto daquela imensidão eu estarei logo mais, então caio de joelhos, pensando em como seria bom para mim escutar novamente a voz límpida como água de nosso Mestre, ao lado do Senhor Altíssimo. Mas quando meus joelhos tocaram o chão, senti que meu joelho direito batera em algo duro, não uma pedra ou pau, mas ferro: uma faca.
O Leão têm os olhos injetados e o rosto empapado de sangue. É assustador, ele está a uns cinco metros de mim apenas, parado, preparando o pulo. Recolho cuidadosamente a mão com a faca junto à minha cintura e espero que ele salte. Quando ele toma impulso e abrem-se suas duas enormes patas para me agarrar, ainda tenho tempo de mirar o centro de suas costelas, antes de esticar o braço o mais que posso para frente, segurando rijo com a mão a faca apontada para cima.

domingo, 21 de agosto de 2011

O Homem e Os Peixes

      O barco navegara já doze horas seguidas, a maioria dos nove tripulantes estava dormindo, se protegendo como podia da maresia e do sol. Mas três deles permaneciam acordados: Betinho, o comandante; Geraldo, o braço direito e o pé esquerdo, que todos conheciam como Geral; e Jonas, que tinha sete fôlegos e não dispensava serviço tanto no mar quanto em terra firme.
As ondas jogavam sem parar, o vento constante era forte o suficiente pra fazê-las subir bem mais de um metro, fazendo o barco balançar bastante. Estavam contornando naquele momento a costa de Marajó, na direção da Ilha de Mexiana, mas parariam bem depois, num pedaço que apenas quem já estivera lá saberia chegar: o Capitão e o Geral. Ficava não muito longe da costa, mar aberto, mas onde em menos de três dias seria-lhes possível carregar os porões com as sete toneladas de lastro. Pescadas, Douradas, Corvinas, e mais alguns outros peixes com bom valor de venda que desse para tirar algum lucro no final.
Quem ficava com o grosso do dinheiro era o patrão, que afinal de contas era quem investia alto na empreitada, cujos riscos eram baixos mas existiam. Podia-se passar às vezes mais de  duas semanas no mar, quando a maré não estava boa ou quando quebrava alguma peça do motor.
O capitão Betinho pensava nisso e noutras coisas. No quanto passaria a economizar se desse certo esta segunda viagem que fazia para o ponto que ele e Geral haviam descoberto nas proximidades de uma tal Ilha do Afonso, que não constava dos mapas. Ali pegaram tantos peixes, Filhotes, Dourados, Anchovas, que tiveram de parar para comprar mais gelo. A linha d'água do barco nesse dia ficou rente como nunca antes havia ficado. E foi ali no entreposto do gelo, que o dono do comércio explicou para eles que aquela ilha era encantada:
                             
" Uns vinte anos atrás, e tu podes ver que eu já tenho ha muito tempo esse comércio aqui, tinha um homem que era conhecido em todo Araraquara por beber muito. Mas esse homem bebia tanto, que toda vez ele vinha aqui comigo no fim da tarde, começava a beber com o pessoal aí, e só quando todo mundo ia embora ele levantava também e ainda pedia mais duas corotes dessas pra levar pra casa. Mas até aí tudo bem. Só que teve um dia em que ele tinha recebido uma ponta graúda e tava bebendo mais do que o de costume. Ficou tão doido, que mal anoiteceu, bateu nele uma cisma e ele quis ir embora. Pediu pra levar uma caixa fechada com seis purinhas, botou na montaria dele e foi-se como se tivesse o diabo atrás, todo mundo falando pro Afonso ficar porque era noite já, e ele não tinha levado lamparina.
Sei que quando eu tava pra fechar veio a mulher do Afonso. Falou que tava preocupada porque ele tinha ido receber um dinheiro e prometido que voltaria pra casa assim que baixasse o sol. Então eu e os cinco que ainda estavam por aqui pegamos cada um seu casco, e saímos procurando, mas àquela hora era impossível.
       No dia seguinte a gente arrumou um barco maior, procuramos e achamos só a canoa dele. Então fomos olhar pelas praias, até que naquela ilha lá perto de onde vocês pescaram a gente achou o cú do Afonso. Não ri não, foi isso mesmo! É porque os peixes comeram ele todo, mas como ele tava usando bermuda, a parte do cú nem as piranhas conseguiram comer. E o mais incrível é que as garrafas de cachaça estavam ali na areia do lado dele, fechadinhas na caixa, e a gente aproveitou para beber as seis enquanto fazia o enterro, e no final em homenagem demos o nome da ilha de Ilha do Cú do Afonso."
                      ...
Finalmente chegaram no ponto exato onde a pescaria tinha sido tão boa na vez anterior. Betinho e Geraldo olharam para uma ilha lá fora, um ponto muito distante sobre o verde contra o azul do céu, e Jonas imediatamente compreendeu. O capitão mandou-o desligar o motor, e quando ele desceu lá e girou a chave, tudo ficou no mais perfeito silêncio. Os outros seis pescadores dormiam, ainda demoraria até preparar as redes para começar a lançar. Mas ao olharem para fora, os três foram pegar suas linhas e anzóis; Geral rapidamente cortou uma sardinha pra servir como isca; Jonas sentou-se na mureta com os pés quase tocando a água; Betinho apenas sorria.
O mar abaixo deles, muito transparente, fervilhava com enormes peixes de todas as espécies.

sábado, 20 de agosto de 2011

Noites de Maleita

       Era por volta do meio dia  e eu não aguentava mais aquela secura na garganta, aquela sensação de que tenho um punhado de areia na boca, toda vez que eu engulo. Peguei  a carteira de identidade e o cartão do plano de saúde que o governo me obriga a comprar dele, mesmo que eu não queira ou não use. De qualquer forma aquela era uma boa oportunidade de fazer jus ao dinheiro gasto. Nem me lembrava da última vez que tinha me voltado aquele problema da garganta. É como dizem: da nossa saúde a gente só lembra quando está doente.
Peguei o ônibus e uma hora depois estava numa fila, esperando que uma mulher anotasse o número do meu cartão e me desse uma senha:
- O que o  senhor têm?
- É a minha garganta, eu quero falar com um clínico.
- O que o senhor têm na garganta?
- Olha, minha amiga, eu só quero falar com um clínico porque eu sei como é esse negócio da minha garganta, eu só preciso de uma receita, me faz esse favor?
Agradeci a compaixão da atendente, guardei a porcaria do papel no bolso e me sentei ao lado de uma senhora que estava assistindo tevê. Não demorou muito e apareceu o código da minha senha no placar eletrônico(?) e eu fui procurar a sala 26A, onde se daria a tal consulta. Estava sentindo um pouco de frio embora tivesse o corpo quente, o que era sinal evidente de febre. Mas eu sabia exatamente o que era aquilo; desde pequeno que venho sofrendo com inflamações na garganta; já tinha tomado vários antibióticos, que curam por um tempo, mas após alguns anos isso sempre volta. O que fez um médico dizer uma vez para mim eu tinha de extrair as amídalas, se quisesse nunca mais ter esse problema.
A médica que me atendeu parecia mais nova que eu. Entrei e depois que eu sentei ela perguntou:
- O senhor que é o seu Pedro Ferreira?
Respondi que sim e ia começar a descrever os meus sintomas, quando ela esticou a mão por cima da mesa e pegou na minha testa. Largou e começou a rabiscar uma receita e dizer, sem nem ao menos ter olhado minha garganta ou ter ouvido o que eu tinha pra falar:
- Olha, senhor Pedro, você toma esse remédio daqui a cada doze  horas, durante cinco dias, que você vai ficar bom.
- Mas doutora, eu queria que você por favor...
- Ah, como não! Já ia me esquecendo, olhe só!
Falou pra mim como se estivesse seguindo um roteiro de comédia mal feito e fosse uma péssima atriz. Enfiou a mão por debaixo da mesa e puxou de uma gaveta um vidrinho com três pílulas dentro. Mandou-me estender a mão e falou sorrindo, como se tivesse acabado de fazer um gesto de caridade e com isso salvasse mais um pedacinho da sua alma para o paraíso:
- Toma pra você, é amostra grátis!
Peguei o vidrinho e a receita que ela terminara de assinar e carimbar, agradeci e saí, daquela que com certeza tinha sido a consulta mais rápida da minha vida. A médica mal pegou na minha testa, só fez ler o que estava escrito no papel dela, que além do meu nome só tinha aquilo que eu tinha dito para a atendente que me dera a senha. E eu não sei o que ela imaginou que eu  ia falar quando prescreveu o remédio, talvez os sintomas de uma doença raríssima que busquei no google, mas pra fazer eu calar a boca me deu a amostra grátis. E o mais incrível é que funcionou.
Voltei pra casa e tomei a pílula, e enquanto tentava fazer alguma coisa no computador, pareceu que a tela começou a flutuar e tremer. As imagens nela mexiam-se  quando não era para estarem se mexendo. As teclas dançavam sob os meus dedos, as paredes se afastavam e pareciam querer cair em cima de mim. Levei a mão ao pescoço e vi que estava pelando de febre, delirando e batendo o queixo feito um lunático.
Saí de casa parecendo um zumbi. Sei que era de noite e fui andando na direção do ponto de ônibus, imaginando como poderia conseguir um táxi pra chegar mais rápido, com apenas vinte reais no bolso. Foi aí que vi um cara com uma camiseta escrita a palavra 'mototaxi', encostado numa moto ligada. E não sei se devido à pressa ou ao delírio, fui lá, dei o endereço do lugar e perguntei quanto era.
- Dez real.
- Bora!
Peguei o capacete que ele me deu, subi na garupa e acho que em menos de quinze minutos a gente chegou, mas eu não estava muito em condições de contar o tempo. A febre parecia aumentar sempre, faltava pouco para que meus miolos cozinhassem dentro da cachola. O rapaz pegou minha nota de vinte, olhou pra minha cara, olhou de novo pra nota e falou que não tinha troco. Depois falou pra eu não esquentar que ele ia bem ali na esquina trocar e depois voltava. Subiu de novo na moto, deu a partida, e nunca mais o vi. Como além de roubado não queria acabar morto, resolvi entrar para nova consulta.
- Minha nossa! Pedro  Ferreira, o que foi que aconteceu?
Ah, agora ela queria saber! Por coincidência era a mesma médica que me atendera mais cedo, que ficou alarmada quando me viu entrar na sala dela com o lado direito do pescoço tão  inchado quanto vermelho. Agora sim ela me atendeu direito, perguntou meu histórico, me mandou abrir a boca, etc, e depois mandou me aplicarem uma injeção e um soro, não sem antes dobrar a dosagem da mesma medicação que havia me passado. Só que agora de oito em oito horas.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

O Homem e seu Vício


       

        Ele está ali. Mais uma vez põe os sapatos, sentado na cama, levantando o pescoço para que a fumaça do cigarro não irrite seus olhos, apreensivo, nos preparativos finais para sair de casa. O andar é baixo, é possível ouvir que passam poucos automóveis na rua.
Joga o cigarro pela janela, pega do maço mais um e acende, enquanto fica dando voltas no pequeno apartamento tentando se lembrar das coisas que está esquecendo e que vai precisar quando descer pra rua. Não faz nem meia hora que veio de lá. Tinha comprado mais uma garrafa de batida vagabunda, uma carteira de derby, e vinte contos da parada. Ainda têm três cigarros e acende mais um.
Quando passa pela portaria, o porteiro mal levanta a cabeça. No fundo tem pena do vício do homem, da vida que leva, de tudo aquilo que ele no fundo não sabe mas que é pena dele mesmo, por estar vislumbrando aquilo que espera a vida de homem, ainda mais se ele vive só e não tem filhos.
Seu Lauro não sabe disso. Passa pelo porteiro como se não o visse, e na verdade realmente  nunca o vê. Não sabe o seu nome e não se interessa em saber; Não dá a mínima pra que tipo de vida leva. Só pensa nessa momento em ir no depósito, pegar mais uma batidinha e uma carteira de cigarro, na volta passando pela boca para pegar mais quatro e voltar para se drogar trancado no apartamento.
- Ôh, meu brother! Por favor um cigarro e uma cana aqui...
Sem mesmo prescisar se levantar de cima do freezer onde dorme, o atendente já sabe de quem se trata. Todo começo de mês é a mesma coisa. Quando ele recebe o salário fica quase uma semana aporrinhando, toda noite, na hora que ele costuma tirar um cochilo. Mas freguês é freguês, e o patrão pagava pra ele a hora extra.
- E aí seu lauro! Mais uma carteira e uma buchudinha?
- E Tira o troco de vinte...
Saiu com o saco preso no pulso pela alça, não podia dar mole pra ladrões, enquanto que com a outra mão segurava o cigarro. Os quinze de troco ainda davam para pegar três; depois disso ele ia dormir, tinha trabalho no outro dia. Tinha várias coisas aliás para fazer no outro dia, e pelo ritmo em que estava não ia conseguir acordar na manhã seguinte.
Chegou na frente da vilazinha que dava acesso à boca, acendeu mais um cigarro e foi entrando. Dois rapazes que estavam na rua sentados se levantaram, atravessaram, e entraram rapidamente logo após, enquanto seu Lauro puxava as duas notas e as cinco moedas do bolso, o boqueiro não gostava de ninguém contando dinheiro em frente sua casa.
Os dois moleques são rápidos, um deles segura seus braços por trás, enquanto o outro revista seus bolsos. Ele larga o saco com a birita e o cigarro, e tenta se livrar do pivete, mas o que está à sua frente saca uma faca da cintura e desfere-lhe vários golpes na barriga, fugindo depois com seu dinheiro enquanto o outro corre com a sacola que ele deixou cair, deixando seu Lauro sangrando deitado no chão, com a mão segurando o ventre.
A dor é muito intensa, queima a pele, mas como se pudesse chegar lá dentro. Por um momento ele imagina se não foram tiros que levou; tenta se levantar e não consegue. Com muito esforço levanta o tronco para sentar-se no meio fio. Não há ninguém na rua: apenas um velho parado na esquina, escondido atrás da sombra dum poste. Seu Lauro tenta gritar para que ele chame uma ambulância, mas tem medo de que o esforço faça-o  perder mais sangue.
Por uma sorte inacreditável, ou talvez devido aquela região, embora perigosa, ser próxima ao centro, vêm dobrando a esquina um carro da polícia, descendo a rua na direção dele. Consegue levantar o braço e o carro vai parando, só que alguns metros mais longe de si .
Os policias saem apressados, carregam o corpo de um homem que está jogado no meio do asfalto, põem-no com cuidado no banco de trás da viatura, e depois partem. Seu Lauro fica sem entender nada, enquanto por sua vez o homem parado atrás da sombra do poste na esquina, rindo, começa a se aproximar...

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Vida e Morte De Palhuca Frontera

"Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque Tu estás comigo..."


Selva de Quiproquó. Tiros e obuses são trocados entre os dois lados. A milícia dos Cabreros Verdes e as forças do Exército da Coalizão Armada (ECA), na disputa pelo domínio das plantações de papoula do país, vão abandonando seus cadáveres em meio à vegetação. Em breve as feras terão seu repasto. Famílias inteiras lutam na guerrilha que interessa apenas aos que detém o poder na região: Cartéis de Opileros e o chefe do Estado Golpista, General Cochabamba; senhores da guerra que nunca saem perdendo, não importa o resultado.
Famílias recrutadas por ambos os lados não tem escolha. Sem saber por quê, irmãos, amigos de infância, vizinhos, pais, filhos, manejam armas e atiram contra as próprias aldeias no interior. Substituíveis, não aparecerão na contagem oficial de mortos.
Chorava de joelhos , o fuzil jogado ao chão, um homem ensanguentado em seus braços. Não dava ouvidos às tropas da ECA, cada vez mais perto, precedidas por seus projéteis de chumbo. Chamava-se Palhuca Frontera e fora alistado no lado dos Cabreros, após conseguir fugir de Vila Porrilhas, onde um novo destacamento tinha sido requisitado à força pelo General Cochabamba. Seus irmãos não tiveram a mesma sorte, e era um deles que jazia ali em seu colo, morto pelo fogo de sua própria arma.
Não teve tempo de chorar, estava sendo perseguido e era questão de tempo até alcançarem-no. Deixou a arma para trás, para não atrapalhá-lo na fuga, e começou a correr sem rumo pela selva, e a cada vez que fechava os olhos, vinha-lhe a imagem do homem que surgira por detrás dos arbustos vestindo a farda inimiga, surpreendendo-o. Fora mais rápido no gatilho, apenas para perceber que tirara a vida do irmão caçula, que não via a meses.
Amaldiçoaria-se pelo resto da vida por não ter percebido. Queria parar de correr e se entregar de uma vez aos tiros do inimigo. Mas que inimigo? A maioria dos que lutavam não entendiam o real motivo daquela luta sangrenta, de estarem matando seus patrícios.
Inimigos era quem os obrigava a isso, inimigos do povo, fascínoras aproveitadores, que sempre de uma forma ou de outra encontravam a vitória, não importando quantas almas precisassem dispor para o fim nefasto que em suas cabeças julgavam o mais nobre: dinheiro e poder. Para os peões insignificantes restava apenas a dor da tragédia, a invalidez dos membros aleijados, o cheiro de pólvora a corroer pulmões doentes, lavouras arrasadas, o fedor da carniça que não se apagaria nunca da memória, a pobreza, a miséria.
Palhuca continuava a correr. Vez em quando parava para recuperar o fôlego, o estômago a doer-lhe sobre os intestinos secos, a quanto tempo não comia? Mal conseguia controlar a respiração, logo escutava o som de explosões e tiros cada vez mais próximos, e era obrigado a empreender fuga novamente.
O corpo cansado do ritmo forçado, o cheiro de algum cadáver nas proximidades a maltratar-lhe as narinas, nuvens cinzentas pairando sobre as copas das árvores, os pensamentos trazendo sempre a expressão agonizante do irmão morto em seus braços. Não era mais possível dar um único passo. Exausto, encostou-se numa árvore e foi deslizando as costas até sentar-se no chão, sobre as folhas.
Por um breve instante tentou imaginar que não estava ali e nada daquilo estaria acontecendo. O sol entrava no ocaso, em breve a escuridão protegeria-o de seus algozes. Mas quando prestou novamente atenção, percebeu que alguém vestido com a farda camuflada do ECA caminhava em sua direção, mirando-o com a metralhadora em punho.
  Esforçou-se por manter a lucidez, acreditaria nos seus olhos? Prendeu a respiração na tentativa inútil de não se fazer perceber. O soldado já o havia visto e engatilhava a arma, caminhando a apontar-lhe o cano ao peito. Palhuca Frontera sentiu que eram aqueles os momentos derradeiros de sua vida, então deixou o pavor tomar conta de si, e uma onda gelada percorreu seu corpo exausto, fez arrepiar os pêlos de sua nuca, quando  veio-lhe uma vontade muito grande de chorar, embora seus olhos continuassem secos.
Na iminência da morte, passa-lha a vida pela cabeça. Recorda fatos remotos que imaginava esquecidos, tudo que antes não havia compreendido parece revelar-se ante seus olhos. Perdôo-lhe, meu irmão! Fomos atirados como cães nesta guerra maldita que nos embruteceu a alma e fez com que assassinássemos nossos conterrâneos sem que fosse possível enxergar o real inimigo. Ambos estamos fatigados, corpos arruinados, apenas autômatos.
Quem mata um igual guarda pra sempre a tragédia do seu ato, o horror de uma vida desperdiçada, como um peso a esmagar-nos a consciência. Nunca mais seremos os mesmos, andaremos sonâmbulos por este mundo, com a impressão de não mais pertencermos a ele.
Dedos moles pressionam o gatilho, o barulho de molas que se comprimem, movem pinos, ruídos metálicos, um zumbido surdo em seus ouvidos que finalmente chega ao fim.
...
A mata estremece com o estrondo seco. A certeza do dever cumprido, eliminando um dos insurgentes, limpar o país do caos e desordem da qual eles eram a fonte, provoca uma contração vaga nos lábios do soldado. Quando aquilo terminasse, retornaria um dia à família e ao trabalho na lavoura, tudo voltaria então a ser como antes. Como antes. Lembrou-se novamente um camponês. O orgulho do que acabara de fazer esmoreceu um pouco, mudou-se em outro sentimento, que confundiu-se com a escuridão trazida pela noite.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Derradeiro Coração


"Meu doido coração aonde vais,
 No teu imenso anseio de liberdade?
 Toma cautela com a realidade;
 Meu pobre coração olha cais! "


Ela caminhava rápido pela rua. Soluçava e tinha os olhos voltados para o chão, não queria que estranhos percebessem sua amargura. Entrou na praça, sentou-se num banco ainda segurando o choro, mas percebeu que não poderia fazer isso ali, com os papéis que levava tão bem guardados naquela caixa que ela mesma havia decorado com tanto esmero. Resolveu ligar para sua melhor amiga:
- Flávia, tú estás em casa? Posso passar aí... e começou a chorar ao telefone.
- Liza, que foi que houve, por que estás chorando? Vem logo pra cá!
Quando chegou na casa da amiga, seu rosto estava vermelho e inchado, como se tivesse apanhado de alguém. Ela entrou no quarto mas não conseguiu dizer nada, sentou-se na cama e espalhou os papéis de carta que trazia e disse apenas:
- Lê... e voltou a chorar, levando as mãos ao rosto.
Flávia começou a ler as cartinhas uma por uma, e eram muitas. Todas escritas com canetas de cores diferentes, cheias de desenhos e decalques diversos, coraçõezinhos, anjinhos, arco-íris, e tudo o mais que uma garota de quinze anos apaixonada costuma escrever para o seu amor, mas que nunca tem coragem de enviar. Ali ela contava em detalhes desde o dia em que conhecera Jorge, os meses em que passara os melhores momentos da sua vida ao lado dele, de quanto o amava e de quanto queria que ficassem juntos para sempre:
- Mas amiga, ainda não entendi! Tudo que escrevestes aqui é muito lindo, até perfumastes tuas cartas, me diz então o que aconteceu...
- Hoje a gente completou um ano de namoro, ele me disse que me amava tanto, mas eu não tive coragem de mostrar isso pra ele, ele vai me achar uma boba,  a gente fez amor e eu tô me sentindo uma vagabunda!
- Mas liza, por que fizestes isso? E a igreja? Prometestes casar virgem!
- Eu sei, mas quero muito casar com ele! Sei, sou muito nova pra pensar nisso, mas na hora ele insistiu tanto, foi tirando minha blusa, eu não aguentei e aconteceu...
E continuou a chorar. Enquanto se acalmava, com Flávia fazendo cafunés em seus cabelos loiros, consolando-a como podia. Ela pensou bastante em tudo que estava sentindo naquele momento confuso: a dor do sexo que o namorado machucara um pouco devido também à falta de experiência, pois era apenas um ano mais velho; o temor de ser mandada para o inferno por ter se entregado fora do casamento; e outra coisa que vinha lá do fundo e que nunca sentira antes, não sabia o que era, mais que foi lhe dando coragem até que decidiu o que ia fazer:
- Eu já tomei minha decisão, amiga. Amanhã no colégio eu vou mostrar todas minhas cartinhas pro Jorge, e quero que ele me diga se vai ficar pra sempre comigo!
- Não faz isso, liza, ele é só um garoto, deve estar tão assustado quanto tu, e além do mais...
Além do mais, mas isso Flávia, embora fosse sua melhor amiga não podia dizer... Além do mais, ela tinha ouvido estórias sobre a fidelidade de Jorge. Diziam às escondidas que ele traía-a com uma outra menina chamada Patrícia, que era uma garota muito fácil, que se entregava pra qualquer um, e que costumava "ficar" às escondidas com o namorado da amiga. Mas esta já tinha tomado sua decisão, estava irredutível, e no dia seguinte levou a caixa com seus sonhos de uma vida feliz ao lado de seu primeiro amor para o colégio.
Chegou bem mais cedo que de costume, e perguntou pelo namorado. Disseram que ele estava lá pra trás, e assim que ela adentrou pelo pátio onde costumava ficar com ele no intervalo, no banco escondido do lado oposto da escada que dava acesso às salas de aula, viu-o aos beijos com Patrícia.
Seus braços ficaram moles de repente. A caixinha, com todos os escritos de uma vida que acabava de começar, cai no chão e destapa-se, deixando o vento espalhar pelo cimento os restos de um coração despedaçado. O sentimento que ela sentira crescer dentro do peito desde o dia anterior, o dia em que transara pela primeira vez, e que ela não sabia o que era, agora tomava forma definida. Mudaria sua vida pra sempre dali por diante, enquanto o aroma do perfume com que aspergira os bilhetinhos ia-se perdendo aos poucos no ar da manhã:
  Tornara-se mulher.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

A Visagem


  "Lembre disto: Não esqueça que você é meu servo. Eu o criei para que me servisse."


      Naquela noite, estávamos eu e o meu primo tomando umas biritas na porta de casa. Fazia tempo que minha família tinha aquele imóvel, mas era difícil alguém aparecer por lá, somente na época das férias,  como era o caso. A casa tinha dois andares, espaçosa, mas estranhamente eu não estava me sentindo muito bem lá. Alguma coisa parecia estar pesando no ar, não saberia dizer o que, e o vazio dos cômodos só reforçava essa sensação:
- Caramba! Já acabou a cerveja!
Era o Rodrigo voltando com as duas últimas latinhas da geladeira. Bem que eu tinha dito para pegarmos duas caixas ao invés de uma!
- Mas não esquenta, primo, que eu vou ali ver se o mercadinho tá aberto e trago mais umas geladas...
- Falou! Traz outra caixa então.
Dei a intera do dinheiro pra ele e fiquei olhando enquanto se afastava. O mercado era pertinho dali, então entrei e deixei a porta só encostada, sem trancar, subi para o quarto onde tinha armado minha rede, e deitado comecei a me embalar.
Por causa das biritas, ou porque a manhã tinha sido muito cansativa, fui aos poucos deixando de me balançar e acabei caindo no sono. Foi então que tive um sonho.
Uma moça toda de branco, no meio de um extenso campo que não se enxergava o fim, se chegava para mim enquanto ia chamando meu nome, pedindo que a seguisse para dentro de uma espécie de floresta toda retorcida, muito densa e escura, de onde saíam sons horríveis, como de pessoas gritando para que eu não me aproximasse, choro e ranger de dentes.
Minhas pernas não obedeciam, pelo contrário, quanto mais eu tentava me afastar parecia que a mulher de branco chegava mais perto. Embora seu rosto fosse muito difuso e não desse para vê-lo, ela falava numa língua estranha e me chamava com a mão, até que chegou muito próxima e eu pude perceber que ela tinha os dentes pontudos e saltados para fora da boca, como um tubarão ou sei lá o quê.
Quando ela estava prestes a me tocar, exalando um cheiro muito enjoativo como de flores esmagadas, e dando uma espécie de riso histérico com aqueles dentes todos, eu acordei com meu próprio grito: A rede em que estava estava sendo puxada por um lado, quase tocando no teto, coisa que comigo dentro só poderia ser feito por alguém que tivesse muita força, logo não seria o Rodrigo. Senti minha garganta fechando, não conseguia emitir mais um ruído sequer, e naquele momento de pavor só pude pensar num nome:
- Jesus Cristo...
A minha voz saiu rouca e muito fraca, como a voz de um defunto, se defuntos falassem, mas nesse momento a rede foi como se tivesse sido largada, e eu fiquei encolhido dentro dela só pensando em Jesus e na bíblia, até ela parar de se mexer.
Estava suando frio, escutei os passos do Rodrigo lá embaixo, ele tinha acabado de voltar com as cervejas, e me perguntou como se ele é que estivesse vendo uma assombração:
- Égua, primo, que cara é essa? Estás completamente pálido, parece até que viu fantasma, ha, ha, ha! Vou botar logo as brejas pra gelar!
Ele foi se dirigindo para o freezer, mas alguma coisa fez ele parar no limiar da porta.  Então virou-se, me encarou agora sério, e perguntou algo que no susto eu ainda não tinha notado:
- Tu estás sentindo esse cheiro enjoativo? Parece com cheiro de flores mortas....

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Poeminha Dos Anjos

A morte a mim não mais importa
se bate à porta, ou  vem na ânsia
de que enfim eu não me esconda
feito medrosa criança

Mereço nesta terra maior agonia
Esta desesperadora consorte
que casa comigo e anuncia
sua madrinha indissolúvel, a morte

Sinto vermes roendo o olho
Comendo a carne morta hospedeira
Em meus ossos, buracos de peneira
Pútrida carne é a flor que colho

Na ladeira desta vida em declínio
Disputam dentro de minha barriga
Vermes de profundos escrutínios
Enfrentando-se com as lombrigas

Não há dúvidas, na morte cessa
todo o ato que podia em vida
nesta campa em que me encerram
que lição trago apreendida?

Que não quero voltar pra fantasia
melhor fico no lugar que me puseram
Que a morte é dos vivos último erro
e pros mortos é morte a própria vida

domingo, 14 de agosto de 2011

O Pequeno Assalto


        Não sei quem primeiro teve a ideia, mas enquanto eu e o Jairo assistíamos o noticiário em casa, na hora em que estavam explicando das quadrilhas que roubavam os caixas eletrônicos com dinamite, meu amigo me cutucou:
- Cara!
- Coé, Badigo?
- Mermão, tá sacando só esse sistema?
- Que sistema?
Ele fez um gesto pra que eu calasse a boca, e ficou compenetrado assistindo o resto da matéria. Quando terminou, ele me explicou que na época em que servira o exército, ficou amigo de um taifeiro que tinha acesso ao paiol, e que ainda falava com o cara, que podia arrumar uns explosivos pra ele e...
- Tás maluco? E sabes tú mexeres com isso?
- Êh, rapá, fica frio! Fácil demais! Eu sei como é: tu acende a parada e fica de mocó, depois que voa tudo pelos ares, é só pegar a grana e sair correndo, igual no jornal!
- Mas e os cana?
- Tou falando, é muito rápido! A gente vai naquele caixa do mercadinho do Simeão, de madrugada, depois a gente sai fora rápido que não vai pegar nada...
Meu brother não tinha nada na cabeça, e pelo visto eu menos ainda, porque acabei concordando. Então a gente passou o resto da noite planejando o bicho do dia seguinte.
Confesso que não acreditei que ele ia descolar as bananas, achava que a estória do taifeiro era papo furado, por isso me surpreendi no outro dia quando ele apareceu com uma mochila que eu nunca tinha visto:
- Caraca! Que pôrra é esssa?
Quando ele abriu o fecho, vi que tinha lá dentro os dois ferros e o pé-de-cabra que a gente costuma usar, além de três canudos compridos da grossura do meu braço:
- Tá na mão! Te falei que eu descolava o negócio? Agora é só ir lá e selar a parada!
No mesmo dia, na hora combinada, duas da manhã, lá estávamos os dois. Forçando a pôrra do portão que não queria abrir de jeito nenhum, e embora a rua estivesse deserta, achei que a gente tava fazendo muito barulho:
- Shhhhhh! Força aí que o negócio tem que ser jogo rápido...
Fez um barulhão quando a gente finalmente conseguiu arrebentar o cadeado. Entramos e meu amigo foi logo tirando a dinamite da mochila:
- Toma aí, põe as três escoradas aí atrás!
- As três?!? Tú tens certeza?
- Claro, pôrra! Tá achando que isso daí é estalinho? Agora rasga pra fora que eu vou acender...
Antes dele riscar o fósforo eu já tinha saído, olhando pra ver se não vinha ninguém atrás da gente, e me escondi atrás de um camburão de lixo. O Jairo veio logo  atrás:
- E aí, Badigo?
- Espera só um pouco...
Alguns segundos depois, enquanto tapávamos os ouvidos, fui arremessado contra a parede, com um bando de sacos de lixo caindo por cima de mim e do meu amigo:
- Cacete!
- Puta que o pariu! Botei dinamite demais!
A fachada do mercadinho do seu Simeão, quando vimos, estava completamente destruída. Por pouco não vem o prédio todo abaixo. O caixa eletrônico, que era o nosso objetivo, estava estraçalhado fumegando no meio da rua, e todas as casas num raio de cinco quilômetros tinham acordado com o estrondo e estavam acendendo as luzes:
- Caraca, que merda! Olha!
Apontei pra cima, e do meio da nuvem de poeira e fumaça, eu e Badigo víamos as notas caindo, como se Deus tivesse mandado chover dinheiro. As menores  eram de cinquenta, e o dinheiro espalhava-se pra todo lado, enquanto os moradores das casas próxima viam aquilo e saíam de pijamas, correndo para a rua querendo pegar nossa grana.
- Pó pará co'essa palhaçada!
Foi o que disse meu amigo, puxando o ferro da cintura e dando dois tecos pra cima, querendo afugentar aquela gente toda, que achava que tinha ganho nas portas da esperança:
- Tás maluco? Vamos logo dar o fora daqui...
Tentei puxá-lo, mas foi difícil. Meu brother também queria ficar ali acocado, catando dinheiro queimado, até a polícia chegar, o que não ia demorar muito. Ele estava transtornado e não me ouvia, talvez tivesse ficado surdo. Então catei umas três notas de cem nem tão chamuscadas, e saí no pinote, assim que escutei a viatura chegando.
Nunca mais depois desse dia explodi coisa alguma. Continuei no meu ofício de escrunchador, que é bem menos arriscado, embora não dê muita grana, mas dá pra viver. Meu chapa Jairo Badigo pegou oito anos, e eu passei esse tempo todo mandando levar cigarros pra ele no presídio, da marca que ele mais gosta, aqueles de filtro vermelho. Semana que vem, quando ele sair, embora tenha dito pro cara da condicional que estava regenerado, nós vamos sair metendo mais uns bichos por aí, duvido ele recusar!
Porque vocês sabem: malandro não pára. Malandro dá um tempo...

sábado, 13 de agosto de 2011

Parabéns, Meu Pai


        Ele entra no bar e olha em volta. Alguns dos velhos conhecidos estão por ali, mas ninguém lhe cumprimenta ou lhe dá atenção. Todos sabem que ele está ali apenas cumprindo seu ritual diário das duas cervejas depois do serviço, e que não gosta de ser incomodado.
Tem apenas sessenta e um anos, embora aparente muito mais. Os cabelos brancos que teimam em crescer apenas nas têmporas, acumulam-se num tufo atrás das orelhas. Há um bom tempo ele não se preocupa mais com a aparência, embora a mulher ainda se esforce um pouco que ele troque de roupas e saia pelo menos limpo de casa. Toma a cerveja que pediu, num primeiro e longo gole de olhos fechados, e depois repara no embrulho que trouxe debaixo do braço, e que está postado à sua frente no balcão.
Aquele bar, embora sempre frequentado pelos mesmos antigos fregueses, que já se haviam habituado à sujeira e pobreza do lugar, estava tornando-se agora um lugar da moda. Por isso, em uma das mesas da frente está um grupo de quatro jovens, dois rapazes e duas moças, que riem e falam alto, tentando à todo custo chamar atenção para si, enquanto conversam suas trivialidades que provavelmente julgam a coisa mais importante do mundo. Antônio não lhes dá atenção. Continua bebendo sua cerveja alheio aos outros, observando com desinteresse o jornal da televisão, anunciando mortes trágicas, corrupções e assassinatos, mas sempre no final colocando uma matéria amena, para preparar os telespectadores para a novela que vem em seguida.
Um dos jovens, o mais falador deles, com sua camisa sem mangas colada no corpo musculoso que ele tem orgulho de exibir para si mesmo, nota o velho solitário e seu embrulho no balcão, e com a coragem típica de quem se aproveita dos mais fracos, resolve tirar um sarro:
- Égua, olha aquele velho! Pelo jeito não toma banho desde que nasceu, o fedor dele tá batendo aqui!
O grupo inteiro ri. Ele também ouviu mas não liga. Faz tempo que parou de ligar pras coisas; hoje não sabe nem se ainda se importa com a própria família, os dois filhos e a mulher. Pede a segunda cerveja e permanece assistindo as notícias banalizadas pelo apresentador, que foi treinado para mudar as expressões de acordo com o que está falando, mas que quase nunca consegue. O fortinho não desiste, e como viu que se tornou centro das atenções dos amigos bêbados, continua a provocar Antônio:
- Ei velho! Sabia que água não é só pra tirar ressaca? Tua mãe não te ensinou a te lavar direito?
"Minha mãe morreu faz tanto tempo..." Pensa o homem, que olhou bem nos olhos de quem disse isso, mais com pena que  com raiva: "O que foi feito dessa juventude? O que foi feito do mundo? O que fiz de mim mesmo, com minha vida? Ao menos o que me resta dela..."
Ele desvia os olhos enquanto bebe mais um gole e percebe que a segunda cerveja está no fim, mas não sabe se pede a terceira ou vai logo pra casa. Seus filhos e sua mulher estão esperando, talvez preocupados, mas sabem que ele gosta de beber um pouco antes de...
Antônio não termina o pensamento. Quando novo fôra sargento do exéxrcito, temido pelos seus comandados mais por sua força que por sua patente, mas naquele momento a única coisa que sente é a dor de um soco desferido em seu rosto, que ele não sabe de onde veio e que faz com que ele caia no chão, machucando as costas contra as lajotas tão familiares, do bar que freqüenta ha mais de dez anos:
- Velho filho-da-puta! Tás me encarando por quê? Tás a fim de brigar? Te levanta e me encara, seu safado...
Os outros fregueses e o dono do bar evitam que o fortinho continue chutando-no caído, mas o outro rapaz do grupo se mete e os quatro conseguem sair às gargalhadas do bar, levando junto o embrulho de Antônio enquanto falam obscenidades, até que a uma distância segura, o agressor pára e fala:
- Olha que eu faço com esse saco de merda!
E pisoteia dançando e galhofando no saco de supermercado que ele vinha levando com cuidado. Que tinha custado bem mais que seu salário, e que por isso havia aberto o crediário na loja. O presente que havia comprado para que a mulher e os filhos tivessem o que dar para ele no dia seguinte, dia de festas e carinho com os filhos.
O dia dos Pais.