sábado, 31 de dezembro de 2011

Cravelhamento Teísta

       Deus quando criou o mundo em sua Justiça, distribuiu tudo igualmente entre os homens, que apenas devido sua natural cupidez e ganância se dispuseram a sacanear uns aos outros, juntando a maior quantidade possível de bens sob o custo do suor e da vida do próximo, até que este morra de fome aos nossos pés, exaurido de sua última gota de sangue, pouco importa.
       Olhe ao redor, olhe para você: o egoísmo é tão comum que a únca coisa que pensamos em fazer com nossas vidas é acumular o que seja; é controlar aqueles que nos cercam com as ardilosidades mais miseráveis e mesquinhas, com os planos mais diabólicos, com o medo e a coerção, provando mais uma vez que o homem em seu interior é um perfeito tirano.
        Mas existem coisas impossíveis de acumularmos sob o risco de perdê-las, o que é inconcebível do ponto de vista financeiro mercadológico. Ao contrário, você deveria doá-las ao maior número possível de pessoas, sob o risco de algo morrer para sempre dentro de você, feito um animal sufocado dentro duma caixa escura:
        -E o que é isso que dá pra sair distribuindo assim? Com certeza não é dinheiro!
        Não sei. E se for dinheiro? Pode ser qualquer coisa que exista, mas pode ser também  algo que não exista, que só pode vir à tona neste mundo através de uma disposição de espírito particular das pessoas em seus atos, independentemente do ato. Por que  não distribuir dinheiro? Ou sorrisos, ou abraços, um bom dia, um carro conversível, um elogio, um afago, uma boa música, um assobio, uma garrafa de birita, qualquer coisa que você queira dar para quem quer que seja, mas que esse alguém possa olhar no fundo de seus olhos e agradecer-lhe com toda a sinceridade da alma.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

O Conto Mais Feliz do Mundo

        Hoje quando acordei senti que algo estranho tinha acontecido: todos os meus problemas, de alguma forma, haviam cessado, e eu continuava vivo. Tinha dinheiro no bolso, morava num lugar aprazível, tinha poucos bens, mas os que pussuía eram-me úteis e o restante não fazia tanta falta. Era jovem e tinha toda minha vida pela frente.
        Minha namorada era mais nova do que eu, bonita, inteligente, poderia ficar em casa só no venha à nós, mas preferiu estudar,enfim, uma pessoa correta. Liguei pra ela e marcamos de se encontrar no bar, lógico:
        -Você não vai acreditar, parece piada das Organizações Tabajara!
        -Seus problemas acabaram?
        -Não é possível, devo estar sonhando...
        -Então estamos no mesmo sonho, pois eu tenho certeza de que estou acordada!
        -Putz, isso é pior ainda! Pela minha experiência, devo estar sonhando sozinho. Aliás, se isso aqui é um sonho, é porque a realidade deve ser um pesadelo, eu devo ter apagado bêbado em alguma esquina, alguém deve ter tentado me assaltar, eu devo ter brigado com o vagabundo, ele deve ter me acertado com uma pernamanca, eu devo estar quase entrando em coma no meio da rua, ou antes disso, vou no no mínimo ser atropelado por um carro!
        Depois de tentar voltar à realidade, finalmente recobrei a consciência e consegui desviar de um ônibus que passou voando tirando um fino da minha cabeça. A liga da paulada passou na hora:
        -Putaqueopariu! Valha-nos Deus!
        E nesse momento, quando aquela luz cegante veio como uma bala diretamente na direção dos meus olhos, pude abri-los e acordei num lugar extremamente familiar, embora com a certeza de nunca ter posto os pés ali, talvez estivesse morto, vai saber. Perguntei pro figura do meu lado:
        -Aqui é o céu?
-Êh Bartuca! Saca só a liga do brother no sofá, tá no paraíso!
        -Ih, é mermo, olha lá! Saca só essa cara dele!
        Quem era aquela gente? Nunca vira nenhum deles antes, mesmo depois que um figura descolou um copo cheio duma birita forte, menos ainda quando uma moça bonita com os lábios cheios e um perfume gostoso de alfazema sentou do meu lado e começou a me beijar, e pode ser que um pouco mais eu descubra de onde veio essa gente toda com essa cana e principalmente: para onde está indo essa morena deliciosa com a língua macia, macia?

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Vagamente Alguma Coisa

        Sentados na grama: o Chuky abraçado na 51, o Sonca bolando um pastel na maciota, o Glauber falando sem parar com o Bispo travadão, eu olhando pra todos os lados com o cú na mão, morrendo de medo da polícia chegar e dar o flagrante.
        Era sujeira bolar ali, mas foda-se, era domingo e tinha gente pra caralho circulando na praça, por todos os cantos o cheiro da erva exalava no ar, em plenas três da tarde.
        Dezenas de moleques desocupados, em grupos espalhados pela grama ou sentados no coreto, tomavam vodka com refrigerante e fumavam aquela merda de derby prata que quase não solta fumaça e a gente tem que acender um atrás do outro.
        Nesse dia o Marofa estava quieto, trepado no corrimão da escada do Monumento, com uma garrafa pela de Cantina das Trevas pela metade no colo, olhando pro vazio, fumando e ouvindo metal no celular, o que não pareceu bom sinal. Cheguei perto e perguntei o que havia, ele me olhou e disse:
        -Senta aí...
        Da primeira vez que falei com ele, achei que não tinha ido com a minha cara, e não foi mesmo.
        Acontece que era assim que ele tratava todo mundo, sempre com aquele jeito meio brabo e um humor agressivo, que no começo causou-me certa antipatia.
        A conversa foi um tanto esquisita. o Marofa comentou o movimento àquela hora de pessoas fumando maconha e bebendo, como se todo mundo houvesse enlouquecido. De como era difícil pra ele frequentar o mesmo lugar todo fim de semana por não ter mais para onde ir, que era tudo um saco, pois achava o país uma sacanagem, política, religião, futebol, e falou mais um monte de coisas que não prestei atenção, aquilo realmente era um saco, até que enfim calou-se.
         Tentei ser amistoso e comentei alguma merda do tipo: "É por isso que eu prefiro cachaça, fermentado bate deprê!". Ele olhou pra mim como se quisesse sentar aquela garrafa na minha cabeça, mas era de plástico, a garrafa, não minha cabeça, então apenas desenroscou a tampa e tomou outro gole.
         Ficamos um tempão calados. Finalmente tentei ser legal e ofereci um gole da minha birita, que ele recusou, depois fui embora, pensando comigo que afinal não se deve misturar fermentado com destilado na mesma bebedeira.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Ela Só Consegue Ser Feliz

        Joaquim ligou para sua namorada e combinaram de se encontrar no bar de sempre. Quando ele chegou, Adriana já estava na terceira garrafa.
        -Foi mal, amor, desculpa a demora, o trânsito é uma merda! Põe um pouco aqui no meu copo.
        -Então pede outra enquanto eu vou no banheiro, que essa acabou.
        -Garçom!
        Quando ela se levantou, os caras da mesa ao lado ficaram olhando descaradamente. Na certa já vinham chavecando a menina há um bom tempo, pela cara de porcos e pelo número de garrafas em cima da mesa:
        -Peguei outra dessas que você estava tomando. Viu só o jeito desses figuras aqui atrás olhando pra você?
        -Claro! Desde a hora que sentei eles começaram, mas tu achas que vou dar papo pra esses moleques bêbados?
        -Por que não disse que estava me esperando?
        -Mais fácil dizer que estava esperando um filho, né? Demoraste pra caramba*!
        -Foi por causa dum engarrafamento, é que teve um acidente e...
        -Sei, sei. Vem cá, eu pensei uma coisa agora no banheiro e queria te falar...
        -Ótimo lugar para pensar!
        -Escuta. Está acontecendo agora tudo isso com a gente: parece que tens tua vida e não te importas muito comigo, eu contei daquela coisa que aconteceu no mês passado, que soubestes só porque eu te falei, mas mesmo assim, como por exemplo este atraso de hoje, não achas que é difícil da gente continuar se vendo desse jeito?
        Joaquim quase caiu da cadeira. Viver continuava difícil como sempre, mas pelo menos conhecer alguém como ela era um alívio da chatice e empulhação a que se é submetido à força diariamente:
        -Mas Dri, escuta só:
        (Infelizmente nessa hora algo travou sua língua. De todas as razões que poderia imaginar para que ela não o abandonasse, nenhuma delas parcia o mínimo convincente. Na verdade, qualquer argumento que pudesse levantar em seu favor soaria tão miseravelmente egoísta que era capaz dela odiá-lo pelo resto da vida, por sua mesquinhez e pequeneza, por se rebaixar a tal ponto de querer prender uma beleza para si, ao invés de deixá-la levantar vôo e cantar sua felicidade pro mundo, que um passarinho bonito como aquele não foi feito para viver preso numa gaiola.)

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Trabalhos e Livros


        Sabia quem era, mais de nome que pessoalmente. A gente se via três vezes por semana na turma onde eu pagava uma matéria, e ela ficava mais na dela. Só que niguém passa despercebido, embora existam pessoas que pela maneira, pelos gestos contidos, pelas atitudes simples em meio a um grupo não se fazem notar, que se misturam facilmente na multidão e sentem-se bem assim.
        Ela fazia parte desse grupinho que sentava sempre junto, conversavam, gritavam, riam. Vestia-se normalmente, sem chamar muita atenção para seu corpo, talvez pelo ambiente de sala  aula mais que pelo gosto pessoal, o que às vezes não dava certo, pois quando vinha com uma saia um pouco curta ou qualquer coisa assim, era engraçado ver até outras mulheres virarem a cabeça para olhar quando ela passava perto.
        Teve esse um trabalho que valia a última nota, e por que cargas d'água fui acabar na mesma equipe com ela e  duas pessoas, nunca vou ficar sabendo. A gente dividiu o que cada um ia pesquisar, pessoal se virando como podia, que no final bastava juntar tudo e fazer as emendas necessárias para entregar a parte impressa, e quem tivesse dúvidas botava direto no grupo de discussão, pois o professor, embora fosse um pós-doutor super-ocupado, era bacana com os graduandos e se dignava a responder o que julgava pertinente, iluminando o caminho do que ele mesmo queria que fizéssemos.
         Só que ela estava com muitas dúvidas sobre a sua parte, que era praticamente o complemento da que estava sob minha responsabilidade, além do que eu tinha visto aquela matéria toda no ano passado, então nada mais natural do que, depois de alguns encontros na biblioteca, ela me convidasse a concluir a parte que faltava na casa dela, onde bastaria juntar o que havíamos feito com a parte que os outros enviariam e corrigir o necessário.
        Como ela estava só nesse dia, os pais haviam viajado ou saído, terminamos o que faltava sentados conversando no sofá, sem prestar atenção no filme que ela tinha colocado pra rolar, um negócio sobre arte eu acho, até que reparei na estante e comentei quantos livros bacanas ela tinha ali.
        -Eu sei, mas são da minha mãe. Ela lê muito, eu só os meus preferidos.
        -E quais seriam?
        -Nem todos dessa estante...
        Me levou no quarto dela e me mostrou seus preferidos: Rubem Fonseca, Gabriel Garcia Márquez, Dostoiévski, mais Caio Fernando Abreu, Clarice Lispector, Bukowsky e toda essa literatura pop de grande valor artístico. Mas foi quando ela tirou guardado de dentro de uma gaveta numa mesinha ao lado da cama, e me mostrou um livro meio surrado, com as pontas das páginas puídas e a capa presa com durex, que algo me tocou por dentro e me fez estremecer:
        -Mas este aqui ó, é o meu livro de cabeceira, viu? Gosto tanto que não me canso de ler!
        Eu olhei pra ela, peguei o livro que não era o melhor do mundo, mas cuja estória eu poderia comparar à minha vida, e que vinha cruzando-a em diferentes situações desde a primeira vez que o havia tido em mãos, mas que nunca tinha conseguido lê-lo todo, e que naquele momento me fez perceber o quão especial era aquela garota aparentemente tão simples e sem mistérios.
         E passamos com conceito excelente.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Existência Infinita

        A gente vinha andando pela calçada, ela falava de como estava sua vida, o que achava que deveria mudar, os planos que tinha pro futuro, enfim, das coisas que fazem  a nossa existência um pouco menos pesada.
        -Sabe, e eu gostaria que tudo isso pudesse ser do teu lado...
        Ela continuou falando, pois não respondi nada, apenas escutava o que ela tinha a dizer, e deixava que o som daquela voz doce entrasse em meus ouvidos, mostrando que ainda é possível encontrar pessoas decentes, com vontade de correr atrás dos seus sonhos e modificar o mundo ao redor.
        Ela calou durante alguns minutos. Apertava minha mão entre as suas, agora a incompreensão transformara-se em raiva, talvez por seu interlocutor também não saber o que dizer:
        -O que falta então pra você realmente começar essa busca?
        -Eu não sei. Talvez falte primeiramente alguém do meu lado, aí sim mais tranquila posso voltar meus esforços para outros objetivos.
        -É uma boa idéia, pois a cada objetivo alcançado você muda o foco para o passo seguinte, assim não desperdiça energias e consegue executar o maior número de coisas em menos tempo!
        -E qual a coisa que posso ter em menos tempo que vai fazer tão feliz a minha vida?
        Tanta coisa. Tanta coisa você poderia ter nesse exato momento que faria mais feliz a sua vida, de cada objeto ou pessoas que existam ao seu redor é possível tirar um aprendizado. Se a cada gesto de nosso corpo, se a cada pensamento em nossa vida, acaso tenha uma lição a ser aprendida, por que estaríamos nós a ignorá-la?
        -Temos um mestre que nos ensina que a felicidade está nas menores coisas assim como nas maiores...
        -Eu entendo. Você acha que não, mas eu compreendo. Pergunto-me sempre como pode num coração diminuto como o meu, um simples pedaço de carne, caber tanto amor por uma pessoa e tanta vontade de ser feliz ao lado dela?
       -...

domingo, 25 de dezembro de 2011

A Bailarina Azul

        Ela estava acostumada a esperar pelo pior, não: acostumada a passar pelo pior.
        Tinha como inconcebível a idéia de que as coisas um dia poderiam dar certo, só que na verdade era muito jovem, não havia vivido ainda o suficiente para tomar sozinha suas decisões embora o que decidisse afetasse à todos em sua volta, e nunca chegava a consultar nenhum deles:
        -Quero só ver, sou de maior, já ganho meu dinheiro, vou morar com quem quiser e onde quiser, pois não aguento mais viver com a senhora sob o mesmo teto!
        -Mas minha filha, tens só vinte anos, não existe a mínima condição de viveres tu e esse garoto, que eu nem sei direito quem é!
        -Olha lá como a senhora fala que o Fabiano não é mais nenhum garoto, ele já vai fazer vinte e cinco anos!
        O que ela queria realmente não era viver com o Fabiano, mas como ainda não conhecia  suficientemente a si mesma, estava resolvida a experimentar o tanto quanto possível até um dia descobrir, embora disso também não soubesse e precisasse descobrir vivendo que ainda havia muito por descobrir na vida:
        -Ufa! Essa foi a última, né amor?
        -Ai, Bianô! Nem acredito que a partir de hoje a gente mora junto! Mesmo faltando comprar algumas coisas, já dá pra gente dormir aqui assim que montares a cama ali onde eu falei, aí depois a gente traz o resto das caixas!
        -Ainda tem mais?
        E tinham muitas, e sempre haveriam caixas e mais caixas, das mais variadas formas e tamanhos, e os anos se passariam, e a vida passaria depressa e não os deixaria perceber que iam acumulando caixas e caixas cheias de coisas inúteis, repletas de trastes que atraíam bichos e poeira, outras apodrecendo com a sujeira e o mofo de um tempo já desbotado na memória, até que enfim descobrissem que não precisavam de nada daquilo, que a nossa casa não é um depósito, que a companhia de alguém que amamos desfruta-se melhor em ambientes arejados.

sábado, 24 de dezembro de 2011

As Crônicas do Jaspion: A Batalha Final

        Adentrava a Casa de Noca um velho muito seco e enrugado, com o triplo da altura de Jaspion e uma comprida barba branca. O olhar apagado aparentemente inofensivo ocultava a criatura mais pavorosa que já existira, incapaz de caber nos piores pesadelos de um jovem Grado que não fazia idéia de como o maligno Lorde Fumanchu deliciava-se com o cérebro de pessoas inocentes e tolas como ele no café da manhã:
        -Goooooosssshhhhh!!! Não morrrraaaa!!!
        Jaspion se ajoelhou ao lado do amigo que havia caído fulminado no chão depois que um clarão atingira-o repentinamente:
        -Largue-o, seu idiota! Não vê que ele está morto? Entregue o Livro que pouparei sua vida e deixarei você ir embora apenas sem a mão direita!
        -O que você fez?!? Você é louco, Louco! Gosh, acorde por favor, não acredito! Onde está o encanto da Profecia, a magia dita nas Escrituras, onde está? Exdrúxulo Catarral Platinoso, Torpe Engrolar Aparvalhado, Canícula Selvática Causticante, Desídia Falaciosa Escarnecedora...
E Jaspion folheava o Livro Ininterrupto enquanto ia gritando com toda a força dos pulmões as palavras da forma como elas apareciam na sua frente, entrecortadas umas nas outras, numa sequência de sons apenas coerente mas que ele não fazia idéia qual seria o significado.
Então Lorde das Trevas e Abismos Fumanchu, apenas com um gesto dos dedos, arremessou o jovem grado contra o Altar dos Sacríficios, quebrando-lhe várias costelas e fraturando-lhe as duas pernas. Fez outro gesto e o livro saiu voando do chão indo parar-lhe nas mãos.
Jaspion caído agonizante nada podia fazer. Viu quando o Velho segurou o livro com um misto de prazer e repugnância: era a própria encarnação do mal, uma criatura perversa que roía ridiculamente os beiços e dava gritinhos, assoprava com as narinas feito uma besta. Incomodavam-no as próprias entranhas que cozinhavam no fel maldito e asqueroso escorrendo pelos cantos da boca.
Viu-lhe as órbitas negras com olhos pestilentos de quem só encherga monturos, tremerem de gozo ao  rasgar em pedacinhos o Livro Ininterrupto, até as páginas desfazerem-se no pó, sobrando apenas uma vaga lembrança de suas idéias, como o fantasma de um morto que é condenado a marchar sem descanso, incapaz de ver ou escutar outra coisa além do ocorrido no momento irremediável.
E assim, não havendo mais nada o que fazer, sem mais uma gota de esperança, sem mais nada em que se agarrar, sem nunca ter sabido realmente o que havia dito, sentindo também que ia morrer em breve, Jaspion apenas fechou os olhos e teve fé.
Então, como num passe de mágica, como uma coisa que não acontece todo dia, como algo inexplicável perfeitamente explicável, vieram-lhe na cabeça as palavras  benditas que deveriam ter sido proferidas desde o início, e bastou ele pensar na maravilha daqueles nomes que a própria Sacerdotisa explodiu de dentro de todos os seres  e de todas as coisas, e Lorde das Trevas Fumanchu encolheu eté virar uma cebola podre e atravessou os Sete Círculos das Trevas e dos Abismos e foi engolido por um porco, enquanto Pasárgada retirava a maldição de cima do povo, transformando-os em pessoas novamente, pois agora ela conseguia realizar os mais incríveis vôos e espalhava toda a magia da Deusa Onion sobre aquela terra encantada.
Terra Alta tinha agora em mãos o próprio futuro e as pessoas queriam ser felizes, mudando as esperanças em atitudes, construindo para todos um país decente, já que riqueza eles tinham de sobra, desnecessário procurar por aí quando havia um mundo tão grande no lugar onde justamente eles habitavam.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

As Crônicas do Jaspion: A Batalha da Montanha

       -E foi assim que Lorde Fumanchu, como recompensa aos que sacrificavam à ele, transformou a gabola família Muarte em asnos, condenados a carregar peso e comer mato através dos séculos. Os Magiros foram banidos para o interior da Floresta Negra onde não puderam mais ser vistos desde então, e vocês, meus caros amigos da família dos Refugados, ou simplesmente Grados, foram mandados para o campo e submetidos à todos os outros, onde o constante trabalho agachado com as cebolas fez com que reduzissem de estatura e chorassem às vezes sozinhos, sem qualquer motivo aparente!
        Quando o Sábio da Montanha terminou de falar, a expressão de Gosh e Jaspion era de espanto. Este último perguntou:
        -E quanto ao Livro Ininterrupto?
        -Bem, dizem que o Livro vem sido escrito de forma mágica há séculos, e quando finalmente estivesse pronto, seria usado para trazer de volta a Sacerdotisa Pasárgada e livrar o povo da maldição do Senhor dos Abismos! E como foram vocês que o encontraram, terão agora de compreendê-lo e lutar até o fim para impedir que as trevas prevaleçam!
        Jaspion não sabia se estava preparado para tamanha responsabilidade.
        Incapaz de encontrar dentro de si algo que o tornasse melhor do que qualquer outro de seu povo, não compreendia como a Deusa Onion escolhera-o para conduzir o destino da Terra Alta para longe das garras do mal.
        Mas algo em seu coração acendeu-se como uma luz já quase esquecida que carregava dentro de si, ao ver seu grande amigo Gosh encolhido apavorado num canto, percebendo que ele chorava baixinho, como se estivesse a cortar cebolas:
        -Não se preocupe, Gosh, havemos de conseguir...
        Nesse momento escutaram batidas fortíssimas na porta, como se quisessem derrubá-la à coices:
        -Abram! Sabemos que estão aí e queremos o Livro! Caso contrário queimaremos vocês vivos!
        Eram os Muares, que já tendo vendido sua alma, pretendiam agora destruir a única forma de quebrar a maldição. Carregavam archotes e tinham as faces deformadas pelo ódio e loucura disseminadas por Lorde Fumanchu.
        -Depressa os dois! Fujam pela porta dos fundos e vão em direção ao Altar dos Sacrifícios na Casa de Noca! Chegando lá, digam em voz alta as palavras mágicas do livro para trazer de volta a Sacerdotisa, como está na profecia! Não posso mais ajudá-los, ficarei aqui e tentarei segurá-los o quanto puder, então corram!
        -Mas não conhecemos a língua dos Magiros...
        -Depressa, antes que seja tarde demais!
        Os dois desceram pelo outro lado da montanha, enquanto lá no alto desenrolava-se a batalha que poria fim à vida do Sábio, mas não em sua fé naqueles dois jovens aparentemente fracos e inaptos para a enorme tarefa que deveriam executar, mas que possuíam a qualidade suprema com que a Deusa Onion havia-os dotado, tornando-os capazes do gesto mais heróico de suas vidas: a Esperança.
        A Casa de Noca encontrava-se vazia. Jaspion subiu no Altar dos Sacrifícios, enquanto Gosh mantinha o Livro Interminável aberto, mas nenhum deles sabia em que página estariam as palavras que deveriam ser proferidas e poriam fim à maldição:
        -Ocus pocus sim salabim!
        -Jabaculê cascatíssimo prepotente!
        -Mentecapto pústula asquelminto!
        -Que droga Gosh, não consigo entender nada disso! O que faremos agora?
        Só que o amigo caiu fulminado e não teve tempo de responder, pois nesse instante, em meio à uma nuvem de enxofre fedorento, adentrava a Casa de Noca o Senhor dos Abismos das Trevas, Lorde Fumanchu:
        (Continua)

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

As Crônicas do Jaspion: Lorde Fumanchu

       "No príncipio, todos os habitantes de Terra Alta pertenciam à mesma raça, faziam as mesmas coisas, tinham as mesmas eperanças e sonhos, e dividiam, sob as bênçãos da Deusa Onion, a responsabilidade de proteger e preservar esta terra para as futuras gerações. Acontece que os afazeres eram tantos, que por uma questão de organização lógica cada família tornou-se responsável por determinado serviço, tornando-se especializados naquela função como nenhum outro seria capaz de fazer.
       Foi assim que a família com maior força física foi responsavel pelo trabalho mais pesado, enquanto os mais astuciosos desenvolviam truques e artimanhas sendo por isso respeitados, e por último, os nem tão fortes e muito menos ainda inteligentes, mas com uma enorme vocação para a contemplação, encontraram seu meio de vida na agricultura, que até pode não ser a mais nobre das funções, mas acabaram tornando-se responsáveis pela alimentação de todos e consequentemente pelo sacerdócio do cultivo das cebolas.
        Nesse tempo, embora corressem as coisas na mais perfeita normalidade, haviam esquecido o detalhe de que a vida não é um relógio, então alguma coisa acabaria dando errado, e vocês devem ter ouvido falar dela como um mito: a grande Sacerdotisa Pasárgada ainda era viva nesta época, e percebendo algo errado no ar, chamou todos para uma reunião em sua casa, no lugar onde hoje existe o altar dos sacrifícios, a Casa de Noca:
        -Famílias de Terra Alta. Fui alertada em sonhos nessa noite de que meu fim está próximo, e como Sacerdotisa de Terra Alta, um lugar encantado, não poderei permanecer aqui, devendo me ausentar por vários séculos, até que que o sangue de vocês, devido a mesquinharia, idiotice, vaidade, orgulho e loucura de todos aqui presentes, seja derramado como sacrifício à Fumanchu, o Senhor das Trevas, e eu seja obrigada neste dia a retornar para salvar os eleitos e levá-los ao país que terá o meu nome, e que brilhará sempre na escuridão ao menor sopro de esperança feito madeira em brasa, um brasil!
        O representante da família Muarte, um dos mais fortes, foi quem se levantou para discordar:
        -O quê? Não admito! Não admito! Sermos culpados pelo declínio de nossa boa gente? Se fosse possível acumular nosso suor numa represa, seríamos capazes de inundar o Belo Monte, de tanto que nossa família já trabalhou nestas terras! A culpa certamente não é nossa, pois de todos aqui reunidos, basta olhares em volta, vê-se que somos os melhores!
        O representante mais inteligente da família Magir pediu a palavra:
        -Um momento! Esquecem que se não fosse nosso engenho todos aqui trabalhariam em dobro e não produziriam nem metade do que é produzido hoje! Se alguém aqui merece ser bajulado, ao invés da família Muarte, somos nós, que além de tudo somos os mais bonitos, pois foram nossas mulheres com sua habilidade e tempo livre que inventaram os cosméticos e a maquiagem, sem o quê todos seriam feios e toscos igual a família dos Refugados, que não possuem nem beleza, força ou inteligência, apenas essa esperança absurda que faz com que passem suas vidas aguardando os vegetais crescerem, sendo que a Deusa Onion, como todos sabemos, é quem faz as plantas crescerem sozinhas no calor  de sua luz, sem a necessidade de perseverantes inúteis!
        A Sacerdotisa Pasárgada nunca se faria compreender. Sentiu que aquele era o ponto de ruptura, o momento descrito na profecia de que seria necessário partir, mas que um dia finalmente retornaria, e quando isso acontecesse buscaria apenas os aptos de coração, Muares, Magiros ou Grados, para viverem no país que seria construído apenas para seu deleite, enquanto Terra Alta acabaria destruída pela sanha maligna de seus próprios filhos:
        -Devo ir-me embora, mas antes um aviso: se continuarem os sacrifícios à Fumanchu, uma terrível maldição será lançada sobre todos, pois o orgulho, a vaidade e a inveja farão com que as diferenças acentuem-se à tal ponto, que chegará o tempo em que vocês não mais se reconhecerão como irmãos, que possuem a mesma origem e dividem o mesmo destino, independente da atividade ou função!
        -Vejam! Ela acabou de lançar-nos uma praga! Vamos acabar com ela! Fora! Vá embora Pasárgada!, gritou o representante Muarte.
        -Fora, fora, fora!, começou a gritar a família Magir.
Sem mais o que fazer, vendo o carma irresitível que levaria aquele povo a se autodestruir, a Sacerdotisa Pasárgada bateu asas e foi embora em direção às nuvens.
        E nesse momento um senhor muito alto e magro, de barbas brancas muito longas que chegavam-lhe até a cintura, apareceu sobre o altar da Casa de Noca em meio a uma cortina fedorenta de enxofre, exatamente como estava previsto que ia acontecer nas escrituras.
        Era o próprio Senhor das Trevas, Lorde Fumanchu:"
        (Continua)

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

As Crônicas do Jaspion

        Existia naquele lugar chamado Terra Alta, além de fartura de peixes e mandioca, muita imaginação e seres fantásticos, que conviviam pacificamente cada um em seu canto, raramente incomodando-se um aos outros, a não ser uma vez por mês na ocasião da Festa da Lua Nova, que eles costumavam celebrar doze vezes por ano (em Terra Alta o ano tinha apenas 336 dias, e cada mês era representado no calendário por um ciclo lunar) num lugar chamado Casa de Noca, onde existia um altar que pertencera há muito tempo a uma feiticeira poderosíssima, Pasárgada, que havia desaparecido misteriosamente e tornara-se parte da mitologia dos habitantes da região.
         Haviam os Muares, que eram metade pra baixo homens, cintura para cima mulas, comiam capim, carregavam fardos enormes e relinchavam, e por isso eram considerados ótimos trabalhadores braçais. Ao contrário dos Magiros, um povo muito difícil de ser encontrado, pois viviam no meio da floresta e durante as festas lunares assumiam uma forma etérea, e por isso nunca podia-se dizer como eles eram realmente, já que só era possível vê-los com o canto do olho, ainda assim por instantes, coisa que apenas as crianças do lugar se davam ao trabalho de fazer, já que depois de crescidas todos chegavam à conclusão de que Magiros provavelmente não existiam, não fosse pelo detalhe de que eram ótimos fabricantes de fogos de artifício e truques em geral.
        E por último os Grados, uma raça reclusa que vivia ocupada em estranhos afazeres e que em pouco ou nada interferiam no cotidiano de Terra Alta, responsáveis por prestar os ofícios à Deusa Onion durante os festejos mensais, a quem homenageavam cortando cebolas e servindo aos convivas na forma dos mais variados pratos. Dizia-se que em tempos imemoriais também tinham inventado o sushi.
        Um jovem chamado Jaspion, pertencente ao clã mais baixo entre os Grados, cuja família de agricultores não teve dinheiro para bancar a instrução necessária para que participasse da iniciação a que todos deveriam submeter-se, perderia a última oportunidade do ano durante a próxima Lua Nova de tornar-se um membro reconhecido entre seu povo:
        -Que droga, Gosh! Desse jeito não participaremos este ano da festa e seremos considerados cidadãos de segunda classe até o ano que vem! Raios!
        -Acalme-se, Jaspion! Ontem, durante o trabalho no campo com os Muares, ao passarmos próximo à Floresta Negra, arrisquei um olhar de relance e veja o que encontrei...
        Gosh tinha nas mãos um livro encadernado em couro, que na certa pertencera a algum Magiro, pois estava escrito numa língua estranha para eles, que por não conseguirem entender uma palavra decidiram levar o alfarrábio às mão do Sábio da Montanha, e quem sabe assim poderiam participar da Festa na semana seguinte e finalmente tornar-se pessoas de verdade, pois não aguentavam mais ter que dividir os mesmos afazeres com as crianças do vilarejo onde viviam, o que fazia-os serem alvo de chacotas por parte dos outros jovens que já haviam sido iniciados.
        Escalaram a montanha e bateram à porta da cabana do Sábio, para que ele decifrasse o conteúdo do fólio que tinham em mãos e dissesse o que tinham de fazer:
        -Quem bate à minha porta a uma hora destas?
        Pelo olho mágico,  o Sábio viu que tratava-se de apenas dois garotos, mas que tinham em mãos algo que há muito ele ansiava em seu poder: O Livro Ininterrupto, que continha todos os segredos e truques dos Magiros:
        -Oh, entrem, entrem! Vejo que vocês são, deixem-me ler os crachás, Jaspion e Gosh, o que os traz aqui? Oh, e que livro é esse que vocês tem aí, eu posso vê-lo um instante?
        Os olhos do sábio brilharam ao folheá-lo. Não comprendia muito bem os caracteres, mas percebeu que ali encontravam-se todos os truques secretos do povo que era respeitado justamante por isso: manter-se em segredo, apenas vez ou outra fazendo aparições espetaculares e sempre com muitos fogos de artifício.
        -Então, senhor Sábio da Montanha, se esse livro é tão importante, eu e Gosh poderemos participar da Festa da Lua Nova semana que vem?
        -Sentem-se aqui, tenho que explicar uma coisa para vocês. Alguém sabe que estão aqui?
        -Não, viemos em segredo, disse Jaspion.
        Então começou a  contar-lhes a estória mais maravilhosa que já haviam escutado:
(Continua)

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Chá de Boldo

        Tem um cachaceiro na minha rua que vive falando aquelas arbitrariedades que bêbados falam, mas como está lá há tanto tempo, a gente até já se habituou com ele e damos vez ou outra um prato de comida e um trocado para ele comprar mais cachaça.
        Mas às vezes o álcool vem estragado, eu acho, e ele começa a gritar as besteiras que diz habitualmente com aquela voz engrolada mas que ninguém entende. Nessas horas sempre tem uma alma caridosa que prepara um chazinho e vai levar para ele, na esperança de baixar um pouco o calor no sangue do homem:
        -Toma, Estrupício, é chá de boldo. O gosto é ruim, podes tomar ou não, mas acredite, depois te sentirás melhor, porque essa é uma daquelas coisas que embora sendo aparentemente incômodas, a gente faz porque sabe que é pro nosso bem. Todo mundo que bebe chá de boldo conhece que faz bem pro fígado e dá uma aliviada na embriaguez, e é justo por isso que principalmente os bêbados costumam tomar esse santo remédio: pelo benefício posterior!
        Mas o rico Estrupício (sim, pois embora alcoólatra, sua família tinha grana e sua casa era a maior e mais bonita do bairro; o problema era que ele nunca achava o caminho de lá e preferia dormir na porta do Bar do Montanha, esperando ele abrir de novo no dia seguinte) sempre recusava o remédio, e usava seu raciocínio debilitado tantando explicar por que preferia continuar com o fígado derretendo:
        -Isso tem um gosto horrível! Se não me dá prazer imediato, como o álcool, qual o motivo que me levaria a tomar esta beberagem?
        -Bem, Estrupício, acredite ou não, tem quem tome chá de boldo com bolachas no café da manhã e acha bom, eu nunca entendi como, pois o gosto é realmente péssimo. Mas você devia fazer isso pela sua saúde! Pela saúde, entendeu! E olha que até ajuda a emagrecer, embora você não precise, seco como uma vara. O difícil mesmo é quem não tenha algum problema de saúde tomar esta porcaria de livre e espontânea vontade, o que não é o seu caso...
        -Estás dizendo que eu estou doente? Ora seu, vais tomar no...
        E surtou, começando a gritar as besteiras de sempre, jogando no chão o remédio oferecido, até que finalmente meses depois morreu de cirrose, que como todos sabem é uma moléstia silenciosa.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Um Contito

 
        Hebúrneo tinha quinze anos, uma carteirinha da biblioteca pública onde a mãe trabalhava, cursava o primeiro ano do segundo grau, e o dinheiro que os pais davam de mesada, pouco é verdade, a maior parte ele gastava com livros e o restante com os lanches na cantina do colégio.
        Ficava puto quando seu irmão mais velho chamava-o de alienado por preferir na maioria das vezes livros da moda sobre vampiros e coisas de adolescente. Hebúrneo também não gostava muito desse negócio de ser adolescente, que nos dias de hoje virou praticamente sinônimo de babaca:
        -Sabe mano, estás por fora! Hoje em dia o mercado é voltado para o público jovem, que é super antenado, todo mundo quer ser jovem! Aposto que quando passares dos quarenta vais começar a ler os livros da minha estante e ainda vais achar bom!
        -Hebúrneo, Hebúrneo... Guarde bem minhas palavras. Li grandes autores quando tinha sua idade, e acredite, naquele tempo eles escreviam também para jovens. Aliás, desconfio que os grandes escritores sempre tinham em mente quando escreviam pessoas da sua idade, e ao invés de subestimá-los lançando porcarias alienantes em série, esforçavam-se por desenvolver um texto acessível, com idéias e situações que embora não fossem inteiramente compreeendidas por pessoas que ainda não tinham maturidade suficiente, pelo menos faziam o jovem perceber que o mundo é mais que um grupinho que se junta no pátio do colégio na hora do recreio para falar da fulana que começou a dar pra fulano, ou do sicrano que começou a beber e fumar maconha, do beltrano homossexual, etc. Em outras palavras, sabendo-os naturalmente adolescentes alienados, faziam de tudo para que eles procurassem interessar-se pela variedade de sensações e experiências que existem de verdade ao nosso redor. Mas é muito difícil prender a atenção de quem pensa que a vida se resume ao que passa na tevê, e ainda acha o máximo ver os dilemas próprios da idade edulcorados em situações que envolvem bruxos ou vampiros, afastando-os ainda mais do que é a realidade, ao invés de tratarem de gente de carne e osso.
        -Quer dizer que antes já escreviam para jovens, mas os personagens não brilhavam nem tinham varinhas mágicas?
        -Pelo contrário, sempre houve tudo isso. A diferença era que antigamente vocês eram respeitados. Hoje parece que a galera ávida por grana só se interessa em explorar a ingenuidade, boa vontade e o dinheiro da mesada de vocês.
        -E eu paro de comprar livros então?
        -Não, livros bons nunca deixaram de ser escritos. Apenas você deveria prestar mais atenção e diferenciar o que é veiculado pela grande mídia apenas para entreter do que vai realmente adicionar alguma coisa na sua vida. Com tanta informação circulando, e na idade em que você está de formação do gosto pessoal, é um crime não saber o que presta ou não, o que é entretenimento vazio, do que é a diversão profunda de um ser humano adulto: desenvolver o senso crítico e reforçar o entendimento das questões que vão lhe perseguir pela vida inteira, e quando você menos esperar vai descobrir que essa é a verdadeira magia.
        -Cara, pelo que eu entendi, vais querer bem que eu jogue fora minha coleção do Harry Píter! Isso nunca!
        -Tsc, tsc. Deixa pra lá...

domingo, 18 de dezembro de 2011

Uma Estrela Aquece o Dia

   
        Era sem dúvida o dia mais frio do ano. As pessoas habituadas a sair nuas para a rua, à moda dos índios, tiveram que vestir uma roupa dessa vez, ou não aguentariam o pinga-pinga daquela água gelada na cabeça o dia inteiro.
        Depois de umas cinco horas ininterruptas a chuva afinou um pouco virando um chuvisco, que junto com o vento atlântico era o tipo de clima que levava alguém a ficar resfriado.
        Escutou o barulho do cadeado batendo no ferro do portão, o que causou-lhe surpresa, pois não estava esperando ninguém ainda mais num tempo daqueles.
        -Ô de casa, abre aqui!
        -Caramba!
        Uma amiga dos tempos de faculdade com quem tinha perdido contato há anos, de alguma forma tinha conseguido seu endereço e esperava ali debaixo de uma sombrinha. Foi buscar as chaves e abriu a porta:
        -Estela, há quanto tempo! Você não mudou nada!
        Muito pelo contrário. Embora estivesse com os cabelos bagunçados e com a roupa molhada, ou por isso mesmo, parecia muito mais bonita do que era capaz de se lembrar. Sua voz fresca como o marulhar de uma fonte acariciou-lhe os ouvidos como já não imaginava que fosse possível, com aquele timbre um pouco grave e morno, o sorriso e os olhos brilhantes, fazendo-o sentir novamente uma dor gostosa no peito, e uma tontura, e uma espectativa de felicidade:
        -Senta aí que eu vou buscar uma toalha...
        -Traz um café também? Quer um?
        -Não, obrigado, parei com o cigarro. Mas tem um cinzeiro nessa mesa, fica à vontade que eu já volto.
        -Tá bom!
        Cara, como é essa vida. Uma pessoa de quem você não fazia mais idéia por onde andava aparece na sua casa no meio da tarde, depois de uma chuva de horas que caiu a manhã toda, justo quando você pensava que aquele seria mais um dia nublado, solitário e triste, essa pessoa maravilhosa bate no portão trazendo a amizade e o calor de seu corpo, numa grata surpresa.
        Quando subiu de volta para o quarto levando a toalha no ombro e duas xícaras de café quente, Estela estava deitada na cama enrolada no lençol, apenas a cabeça de fora, fumando tranquilamente seu cigarro, como se aquele lugar à ela pertencesse há muito tempo, embora ela nunca houvesse posto os pés ali antes:
        -Toma aqui. Nossa, não sei nem o que dizer! Como você me encontrou?
        -E isso importa? Deixei minhas roupas nessa cadeira aí do teu lado, estende pra mim para ver se secam um pouco enquanto eu termino esse cigarro, depois vem aqui deitar comigo...

sábado, 17 de dezembro de 2011

Absurdos Momentâneos

        A gente sentado no bar, o Ricardo começou a lamentar-se de sua vida, e como tudo o mais que exalava de  sua pessoa, parecia tão verdadeiro quanto uma nota de três reais:
        -Sabe camaradinha, é tanto problema acontecendo junto que nem sei o que fazer! Tinha hoje que entrevistar cinco candidatas para trabalherem de secretária no meu escritório e não pude ir, porque não encontrei o sapato italiano que combinava com este terno, mas mandei o porteiro dizer para elas voltarem amanhã. Imagina se ia deixar uma daquelas gostosas subir e me ver usando este sapato que nunca combinou com esse terno!
        -Hã-hã.
        -A propósito, dá uma olhada nas fotos de biquíni do facebook delas aqui no meu aipéde!
        -Pô, gostosas mesmo...
        -E ontem, então? Fui levar o carro da minha filha na oficina, porque sabe como são esses mecânicos, quando vêem que é mulher  tentam logo empurrar um monte de serviços inúteis só para encarecer a nota, que no fim do mês eles ganham comissão, mas pra cima de mim não!
        -E aí?
        -Aí que o problema era na direção assistida e não tem a peça aqui e vão ter que mandar buscar de São Paulo, sabe como é? Agora ela ligou e quer que eu empreste meu carro para ela sair com as amigas à noite!
        -Pois é, quem pode com essas pestes...
        -Mas taí o problema! A Láris ligou e quer que eu vá lá dar um trato nela, sabe como é? Diz que está morrendo de saudade, mas eu sei o que ela quer de verdade, sabe como é?
        -Quer só o teu dinheiro em vez desse ser maravilhoso que és...
        -Pior que é isso mesmo! Lembra da Júlia? Falou que não aguentava mais ficar embaixo de mim e só queria ficar por cima, sabe que eu fiz?
        -Livrou a pobrezinha e deixou ela ficar em cima dessa barriga?
        -Huá huá huá huá huá huá huá huá! Essa é boa! Claro que não! Parei foi de pagar o aluguel do quitinete e a faculdade dela, quero ver agora ela se virando abrindo as pernas por aí!
        -Porque não contratas ela como tua secretária, assim quem sabe ela não vira puta?
        -Estás louco? Sabes como eu vou escolher quem vai ficar com a vaga?Aquela que chupar melhor! Huá huá huá huá huá huá huá!
        Bem, pelo menos quanto a isso ele era verdadeiro...

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Bem, Bem, Bem

        Hermibaldo chegou do trabalho cinco da matina, e queria aproveitar o domingo de folga para descansar um pouco antes de voltar pro batente na segunda.
        O que Hermibaldo não sabia era que o corno do seu vizinho tinha tomado outro chifre, e para  curar a dor-de-cotovelo  resolveu ligar uma caixinha de som vagabunda de merda, mas que fazia um barulho desgraçado, e como todo condenado que mora no subúrbio, resolveu colocar no volume máximo um som brega do inferno.
        O pobre trabalhador, o que é uma redundância, já puto de ter que labutar até as primeiras horas da manhã sem ganhar adicional ou hora-extra, aliás: sem nem receber salário! (todo patrão faz tudo para não pagar o trabalhador a quem explora, e usa as desculpas mais estapafúrdias para isso), acordou puto da vida e foi tentar falar com o vizinho.
        Trepou no muro e viu a porra da caixa de som e a piscina de plástico que uma gorda estava enchendo com uma mangueira, mas que pelo ritmo só ia encher no dia seguinte:
        -Ô meu amor, faz favor? São oito horas, estava até agora no trampo, estou morrendo de sono e quero descansar um pouquinho, cê não pode baixar essa música maravilhosa pelo menos até o meio-dia que eu ficava muito agradecido? Aí depois você pode escutar esse som divino no volume e até a hora que você quiser?
        A gorda, que na verdade também não gostava daquelas bostas tão altas, ainda mais àquela hora, mas sentindo-se ultrajada (?) pelo fato de Hermibaldo ter tido a petulância (?) de pedir com toda a educação para baixar um pouquinho aquele som antes de ter um colapso cardíaco, resolveu tirar barato:
        -E quem és tu? Olha, quem colocou a caixa aí foi meu irmão, se quiseres tu falas com ele!
        -Mas então me chama ele por favor!
        -Gordo Alfredo!
        E lá vinha, no passo do elefantinho, a criatura amanhecida e morta de bêbada:
        -Que tá pegando, mana?
        -Esse rapazinho aí quer que tu baixe nossa música!
        -Vou baixar merda nenhuma!
        -Ah é?
        Hermibaldo não aguentou. Pulou pro outro quintal, quebrou a garrafa de cerveja que o Elefantinho estava bebendo e apontou pra cara dele o gargalo com uma vontade doida de varar o pescoço do imbecil com aquilo:
        -Seu filhadeumaputademerdadacasadocaralhovaistomarnocú! Estás pensando o quê desgraçado! Olha a hora, meu! Baixa logo esse caralho antes que eu enfie essa pôrra na tua garganta!
        -Mas é que eu tava...
        -Estou te perguntando alguma coisa? Bora logo!
        E Hermibaldo, que era realmente um rapazinho franzino, estava nessa hora com tanto sangue nos olhos que se a gorda ou o irmão dela falassem mais alguma coisa ele dava cabo dos dois.
        -Desculpa, meu caro vizinho! Já estou abaixando, não precisa ficar assim! Eu prometo que nunca mais ponho esse barulhão tão cedo, ainda mais em dia de domingo!
        Hermibaldo atirou violentamente o gargalo, que foi se espatifar na parede atrás dos dois. A Gorda e o Elefantinho ficaram com uma cara de cú e não disseram mais uma palavra quando ele pulou o muro de volta para o seu quintal:
        -Pois acho bom mesmo...

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Descansa Tua Voz

     
        Ela me deixou. Um coração abandonado, a tristeza dos finais não planejados.
        Lamento muito as coisas terem acabado assim, mas só perde quem está disposto a arriscar.
        Então não arrisque.
        Quem poderia ter as respostas, quem seria a criatura iluminada capaz de abarcar com um golpe de vista toda grandeza da existência? O Homem possui a grandeza dentro de si como a vê no mundo, mas suas forças são mínimas frente ao que ele se propõe, até que ao fim descobre que só a vontade não basta para executar seus objetivos.
        Enfrenta a frustração de duas formas: modifica sua vontade ou aumenta suas forças, procurando um aliado poderoso a quem possa juntar-se e que possua objetivos semelhantes. Na verdade tem uma terceira via, se você imaginar o suicídio como a porta para a eternidade ao invés da cessação da vida pura e simples:
        -Confia nas pessoas, cara!
        -Quem por exemplo, em ti? Estás achando que não sei o que escondes embaixo desta tua cara sebosa e vens me dar lição de moral? És um filhadaputa que só quer ser, acha que conhece o céu e a terra mas é incapaz de uma boa ação. Pelo contrário, nem sabes que aquele cara em quem atiraste morreu no hospital, que eu vi no jornal ontem, e deixou esposa e um filho de colo!
        -A culpa foi dele, mandei ficar parado...
        -Vá à merda, antes que eu me esqueça!
        Quando digo aliado poderoso, você sabe, não é um mal-caráter com uma pistola e sangue nas ventas, que sente-se Deus pois tem o poder de tirar uma vida em suas mãos, e ao invés de valorizá-la como o bem mais precioso da terra, passa a olhá-la como a coisa mais reles que existe, chegando à conclusão que pela quantidade de gente no mundo não faz mal riscar do mapa duas ou três almas perturbadas:
        -Perturbado é tu!
        -Então larga essa porra e vem no braço!
        Ele era bem maior que eu, então achou que seria fácil me derrubar e largou a arma em cima da mesa, vindo pra cima de mim. Dei uma gingada de corpo passando pelo lado dele, fui parar em suas costas e o empurrei contra a parede. Então peguei a arma em cima da mesa e mirei-lhe a testa, bem no momento em que ele se virava, a menos de um metro de distância:
        -Tens o poder de tirar uma vida, mas não de dá-la de volta. Te vejo no inferno...

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Um Brinde

        Ele gostava dela. Ela gostava dele. Nunca haviam dito isso um pro outro.
        Ela:
        "Que engraçado! O J. liga sempre, a gente conversa tanto, temos tanta coisa em comum, mas não sei se digo que gosto dele. Ou melhor, tenho certeza que ele sabe que gosto dele como amigo, mas seria correto arriscar essa amizade desinteressada por algo que poderia não dar certo, como um relacionamento íntimo? Sinto que estou preparada para entrar num compromisso, mas infelizmente parece impossível encontrar a pessoa certa. E se ele me rejeitar, ou pior, e se quiser ficar comigo apenas por pena?"
        Ele:
        "Onde estará C. numa hora dessas? O que andará fazendo? Ela diz sempre que não aguenta mais essa solidão, essa coisa de sair com os caras só para beber e curtir uma noite de sexo; que chega a sentir-se constrangida quando no dia seguinte algum deles liga só para cumprir o protocolo, e que para isso não acontecer ela prefere dar o número errado, caso contrário simplesmente não atende o telefone. Mas se ela mesma disse que tem por mim apenas amizade, não vou arriscar a única coisa que nos une por um sentimento que talvez seja apenas curiosidade sexual. Não. Embora seja tolice da minha parte, gosto mesmo dela."
        Ambos:
        -Oi, J.! Estou aqui, o que você queria falar comigo?
        -Pôxa, C.! Mas não precisava vir tão bonita! Senta aí e me faz companhia que já vou dizer o que é. Reparou como está o céu esta tarde?
        -Pois sim! Vi pela janela, estava deitada na cama quando você ligou. Esta luz é mesmo fantástica, parece fazer cócegas na vista!
        -Talvez seja o motivo dessa felicidade. Falar nisso, como vai o R.?
        -Não o vejo faz um tempão. Acho que não deu certo porque quando a gente estava sozinho ele falava muita bobagem.
        -Bem, a gente está sozinho agora e eu passei minha vida toda dizendo bobagens.
        -Ah, mas contigo é diferente. Porque a gente é amigo, não é?
        -Foi, ou melhor, é isso mesmo. Somos amigos, podemos falar o que quisermos sem medo de parecer ridículos na frente um do outro.
        -A propósito, o que você queria quando me chamou?
        -Sabe de uma coisa? Você pode até achar besteira, mas acho que te chamei só pra gente dividir esse fim de tarde.
        -Então, à nossa amizade!
        -Saúde...

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Sobre Outro Lugar

        Frequentava a biblioteca da cidade, que sempre em qualquer lugar e por menor que seja, é um mundo a ser descoberto por uma criança. Quando encontrava algum autor que me agradava, tentava imitar seu estilo, fazendo uma espécie de paródia do livro que tinha acabado de ler, inventando outro final ou simplesmente continuando a estória de algum ponto que não me agradava.
        Depois de um tempo, e aquela biblioteca ainda utilizava um sistema de fichas, tornou-se uma obsessão ver a minha assinatura no maior número delas. Os bibliotecários já me conheciam e deixavam que levasse um livro a mais além do permitido:
        -E por que eles faziam isso?
        -Achavam que eu era louco e tinham pena de mim, talvez.
        Fui ficando mais velho e o tempo para leitura diminuía, embora vez ou outra ainda encontrasse tempo para escrever, principalmente quando nada dava certo, o que chegava a me incomodar fisicamente até: sentia um enjoo de tudo, uma ânsia de vômito que me fazia querer botar as tripas para fora. Desejava viver num lugar onde fosse possível ter asas e fugir para o alto, escapar como vaga lembrança neste arremedo de liberdade, apenas o azul do céu e as nuvens, e o calor do sol, e uma chuva no finzinho da tarde para refrescar.
        Mas é complicado.
        Tentei um emprego de revisor numa revista, não deu certo. Embora tivesse que ler a maior parte do tempo, a maioria dos textos era uma barbaridade do começo ao fim, mas ainda assim acabei demitido em seis meses porque o dono falou que eu não sabia português.
        -E você o que fez?
        -Bem, ele tinha razão, então parei de usar o Tupi e fui tomar umas aulas com um filósofo de botequim que me descolou essa posição aqui. E olha, faltando menos de um ano para aposentadoria, posso até dizer que não foi tão ruim não.
        -E os seus textos?
        -Que textos?
        -Ué, você não disse que vomitava, digo, escrevia algumas coisas?
        -Ah, não, me curei tomando uma colherada de bicarbonato todos os dias. O que sobrou roído pelas traças dei pro meu neto brincar, ele se diverte porque nessa idade a gente não leva nada a sério.
        "Então sentiu o alívio de pôr os óculos, apoiar-se na bengala, mastigar os legumes da sopa com a dentadura completa, o corpo praticamente uma prótese. Até quando já não teve mais forças para levantar-se da cama, e o pensamento atravessava a fronteira definitiva no momento em que os olhos enxergavam aquela imagem pela última vez."
        Epílogo:
        -Ainda bem que esse não teve nenhum palavrão!
-Porra, valeu!

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

O Mistério da Repartição

        Eles achavam que era algo escrito conscientemente, mas estavam enganados.
        Numa sala com várias filas de pessoas em frente à máquinas de estenografia, passeava o Inspetor, fazendo vibrar seu chicote nas costas de qualquer vacilão:
        -Não diz quem sou eu nesse teu texto de merda!
        E ninguém tinha coragem de encarar o chefe, dizer para ele que aquilo era uma tirania, um absurdo:
        -Uma tirania? Um escravo dizendo isso? Cala a boca e volte ao serviço, e tira essa última parte que tá uma merda! Mas antes um presentinho...
        E deu uma lambada tão forte que fez abrir um rasgo na carne das costas, manchando de sangue o uniforme de serviço vendido pela empresa.
        Na fila mais próxima da parede, ao ver o que acontecia, um colega travou sua máquina ao digitar uma sentença não-autorizada:
        "Muito obrigado por tudo, pelo que estou sentindo, pela possibilidade de aprender, por estar vivo, por acreditar em Cristo, por ter forças para mudar, por tentar a cada dia não ser um babaca. Por qualquer coisa que ainda vá acontecer, e que se um dia por acaso eu perder esta disposição de espírito, que talvez um dia também a recupere."
        O Inspetor veio estalando o chicote no ar, gritando para que todas as trezentas pessoas do Departamento De Escrevinhação Aletória podessem escutar e temer seu poder sobre o empregado infeliz:
        -Huá huá huá huá huá! Seu miserável! Como ousa ter a petulância de agradecer por essa vidinha de merda! Por acaso não te bastam os açoites e a humilhação diária, seu verme? Não bastam as intrigas mesquinhas que faço correr por todo departamento, jogando vocês uns contra os outros? Não basta o fato de fazê-lo lamber minhas botas com graxa e deitar no chão por onde passo, para poder pisá-lo?
        -Perdão, senhor Inspetor, senhor!
        -Mentecapto! Além de escrever essas merdas não sabe nem ficar em posição de sentido!  Vou fazer com que você seja transferido para as masmorras e atirado na máquina de picotar papel agora mesmo! Guardas, abram a grade!
        -Com sua licença,senhor Inspetor, mas tudo menos isso, senhor!
        -Huá huá huá huá huá huá!
        Os guardas entraram e agarraram o colega. Alguns escravos chegaram a rir-se da sorte do condenado, mas não aguentei, aproveitei a confusão e corri para a porta, consegui roubar a arma de um dos carcereiros e dei uns tiros pro alto:
        -Todo mundo de folga hoje nessa porra!
        E foi assim que perdi aquele trampo maravilhoso, mas consegui um bem melhor.
        Devido ao meu bom comportamento, comutaram minha pena de linchamento seguido de fuzilamento e decapitação para prisão perpétua, e hoje sou muito feliz como encarregado da biblioteca da prisão.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Quem Te Viu

        Estou em casa bicando uma Sapupara, quando toca o interfone:
        -O seu Gualberto está subindo.
        Pelo menos pra isso servia o bosta do porteiro. Se quisessem me matar tenho certeza de que ele ia deixar passar, mas pelo menos avisaria antes.
        Com a porta destrancada, voltei pra cachaça e servi outra dose, puxei um cigarro do maço que botei atrás da orelha e  fiquei batucando na caixa de fósforos enquanto esperava o figura subir.
        Foi entrando e me cumprimentou com toda aquela dignidade:
        -Fala Verme! Cadê o relógio? Saca só o pônei que eu trouxe...
        -Qual é, Capivara, só na manha? Estás a fim de uma dose?
        -Pô, és mesmo um cachaceiro, bebendo nem bem duas horas!
        -Fazer o quê, o domingo é nosso! O que foi que trouxeste aí?
        O Capivara tirou de dentro da mochila um pacote enrolado num saco plástico e começou a  desembrulhá-lo meticulosamente, enquando eu ia no outro cômodo buscar o relógio. Quando voltei ele já tinha terminado de abrir, e exibia em cima da mesa meio tijolo esverdeado, com os restos de fita adesiva e sacos de supermercado jogados no cesto do lado:
        -Cara, essa tá bonita!
        -Faz logo um com esse que eu separei aqui...
        Meia hora depois, o Capivara jogado no sofá e eu deitado na rede, assistíamos a uma espécie de documentário que narrava a estória da vida de jovens suburbanos em países do primeiro mundo, com a cabeça perdida porque as coisas ficaram vazias e carentes de sentido, cuja única ideologia que aceitam agora como verdadeira é  aquela do consumo de bens, drogas e pessoas, e que diz "foda-se a humanidade pois tudo é efêmero e relativo e nada disso tem significado: vista sua máscara e quem for podre que se quebre", também conhecida como ideologia do politicamente correto.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Umas Estórias

        Seria possível flutuar indiferente a tudo o mais que não passa de lixo e impede que  o espécime humano concretize aquilo para o que foi verdadeiramente realizado:voar como um pássaro!
         Se eu conseguir terminar esse texto eu juro que tomo um gole de cachaça. Ou não. Tomo já.  Lembro da gente andando pela esquina, e se encostava e ficava esperando parado no canto não sei o quê e não sei quem.
        "Te amo tanto, me acho uma droga, mas te amo, amo tanto, que droga,  chega de sofrer por causa de ti, pôrra!"
        Eu sei aí o sonhador, vem comoep  sanjiti . Mor morse, trevarian gunador mor morse mor morse mor morse omernassian.
        Livra-me Senhor(3X).
        Não-Ficção:  "Essa sensação estranha e ridícula , de ser massacrado por uma máquina que na verdade talvez só exista na imaginação. Tem várias rodas, cada uma maior e girando mais rápida que a outra e intermináveis, levantando enquanto passam uma poeira vermelha também interminável:
        -What  is it!
        -It's like...
        -Fuck you scambau pôrra!
,       Levamos o gringo até a cidade que ele queria, meia hora de onde ele  e o outro branquelo estavam pedindo carona, mas acho que na verdade eles desceram antes porque ficaram com medo do Badigo dirigindo:
       -Do you have a licence?
       -Como é? Que ele perguntou aí?
       -Acho que ele quer mijar...
        Ninguém tinha carteira de motorista na verdade, mas todos sabiam mais ou menos dirigir, menos o Badigo, que era quem estava no volante:
       -Man, do you know how can you make it?
-Pôrra, empresta o celular pro maluco que na estrada não tem como parar e encontrar aparelho de discar!
-Whatafuck!
Uma caçamba gigantesca pegava pela mesma pista e tirava um fino:
-Putaqueopariu!
-Algum de vocês aí atrás tem carteira?
-Stop that fuck'n car, your idiot! Whatashitafuck you have in your crazy mind, man?
-Pôrra, vou dar um pau nesse maluco se ele não parar de me cuspir...
-Pára logo aqui a bosta desse carro! Merda, Badigo, vais matar a gente, caralho,estás ficando maluco?
-They're try to kill us!
E desse dia em diante a gente prometeu nunca mais dar carona na estrada, ainda mais embriagados e muito menos pra dois gringos malucos, que nem bem subiram quiseram logo descer, recusaram o gole da birita, parece que só vieram pra tirar barato.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Cães e Rodas

        Ao ver a distância que existia entre a pessoa que era e a pessoa que gostaria de ser, abatia-lhe realmente uma profunda tristeza. O que faltava para colocar em prática o eterno projeto de tornar-se alguém melhor? Começaria cortando os vícios, anotando numa caderneta as coisas essenciais de ter-se por perto e que usadas com critério estimulariam a alegria e o bem-estar:
        1-Comida
        2-Bebida
        3-Fumo
        4-Papel e lápis
        5-Alguém.
        Tinha certas vontades, mas talvez não ligasse muito em vê-las satisfeitas e por isso mesmo se desse por satisfeito, fazendo ainda questão de agradecer. Mas no fundo queria que existisse outro jeito de levar a vida.
        Um jeito que resumia-se a um desejo seu satisfeito, de provocar as pessoas, ao invés de sentir-se levado como elas na correnteza irresistível do mundo que tentava transformar, embora não fosse possível modificá-lo mais do que até no exato limite de si mesmo.
        Depois escreveu uma lista das coisas que tinha aprendido recentemente e que estavam mais frescas em sua cabeça por isso, ou talvez por figurarem sem que ele soubesse no plano original de ser uma pessoa o menos politicamente correta possível:
        -As verdades não são eternas, exceto uma; que a vida é feita de paradoxos; e que quando você passa uma semana sem fumar as coisas voltam a ter cheiro e gosto novamente; que existe uma outra dimensão em nossa cabeça, a que infelizmente apenas nós temos acesso; que a dor da perda causa muito sofrimento e deve ser respeitada; a nossa consciência é nosso guia, então cuidado com o que você pensa; que é permitido chegar nos lugares mais incríveis a quem tiver coragem; que sentimos as coisas muito mais do que pensamos; que devemos ter valores e exercitá-los assim como exercitamos a mente e o corpo; que é muito difícil ao reler isto saber se daqui a alguns anos ainda será possível entender o que significa.
        E que nossas tardes ensolaradas serão sempre lindas. Que a tristeza e a ausência são duas coisas distintas, mas que se tornam uma quando você vai embora; e que toda linguagem é insuficiente, por isso existe a poesia.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Beirando a Estrada

        Quando Spif e Bob Bispo entraram no bar, os cerca de vinte caras que se encontravam espalhados pelas mesas e apoiados no balcão bebendo suas cervejas quentes, viraram-se e encaram os dois como se fossem trucidá-los.
        Bob e Spif já conheciam bem o ritual de quando entravam num lugar desconhecido.
        Durante toda manhã até aquele horário estiveram rodando, passaram por mais de trinta cidades diferentes sem parar em nenhuma delas. Portanto não estavam ali para fazer confusão, queriam apenas comer e beber alguma coisa. Mesmo assim cada um carregava sua pistola, disfarçada por debaixo da jaqueta, por precaução:
        -Ei, tu aí feioso, não vais anotar meu pedido? Falou Bob Bispo para o rapaz que atendia, antes mesmo de sentar à mesa.
        -O que o senhor vai querer?
        -Veja um copo cheio de São João da Barra, só pra abrir o apetite. Aliás, o que vocês tem pra comer?
        -É pra abrir o apetite ou ficar bêbado? Vou querer um bife, mas antes traz a cerveja mais gelada que tiver aí no freezer! Disse Spif.
        -Serve Antártica?
        -É a mais gelada?
        -Não, a mais gelada é a Brahma.
        -Então me dá uma Brahma, porra!
        O pessoal do bar tornou a olhar. Alguns balançaram a cabeça desaprovando, outros cuspiram no chão e mostraram os dentes, exatamente como cães na tentativa de intimidar. Não gostavam da presença de intrusos por ali.
        -Bob,escuta só: o pessoal daquela mesa está encarando desde que a gente passou por aquela porta, provavelmente vão querer confusão, deixa eu pagar essa bebida e vamos dar o fora daqui!
        -Lamento, meu chapa, mas estou com muita fome. Ô, Feioso! Me serve outro copo desses e frita uma lingüiça pra mim no capricho, com bastante cebola.
        -Porra, cara, não faz nenhuma merda por favor.
        -Fica frio...
        Da última vez que Bob Bispo dissera aquelas palavras, três dias antes, eles tiveram que atirar numa multidão que corria atrás deles com pedaços de pau e barras de ferro.
        Spif tomou outro gole da cerveja, tentando concentrar-se na televisão em cima do balcão, quando ouviu o barulho de um murro desferido na mesa, e logo em seguida um copo se espatifando no chão:
        -Porra, feioso! Qual é a tua? Faz mais de cinco minutos que eu pedi outra dose de São João e ainda não vi essa porra! Fumou maconha e esqueceu do meu pedido, por acaso?
        -Presta atenção, malandro, acho bom vocês irem embora porque não são bem-vindos aqui e...
        Quem falou isso foi um dos caras que estivera o tempo todo nos encarando, junto com outro panaca fortinho que levantara e colocara a mão no ombro de Bop Bispo, com a clara intenção de começar uma briga:
        -Como é que é?
        Bob torceu o braço do cara nas costas até ouvir um estalo; com a mão direita segurou firme no encosto da própria cadeira, descrevendo um arco perfeito no ar e espatifando-a nos cornos do outro imbecil, enquanto largava o fortinho no chão gemendo com o braço quebrado.
        Todo mundo das outras mesas, mais ou menos aguardando que algo assim acontecesse, levantou quase ao mesmo tempo, a maioria com garrafas ou tacos de bilhar nas mãos.
        Bispo sacou a .40 e ameaçou:
        -Seus filhosdaputa! Ninguém se mexe se não quiser ganhar um buraco no meio da testa!
        -E podem largar o caralho dessas garrafas!
        Spif empunhava sua 9mm e apontava para um babaca que tentava se aproximar com uma faca na direção deles:
        -Te afasta, porra! A gente só quer ir embora e ninguém se machuca!
        -Vais sair do nosso caminho ou queres uma bala no meio da fuça antes?
                                                                     ...
        Depois de quase uma hora calados, quilômetros de distância do incidente, Bob tentou dar uma descontraída:
        -Você viu só a cara daqueles otários? Ha ha ha ha ha ha ha!
        Spif não aguentou:
        -Já chega! Eu prometo pra você, Bob Bispo, nesta porra deste carro às três da tarde dirigindo sem nada no estômago e tendo que aguentar esse teu bafo de birita: de agora em diante, em qualquer situação, quem escolhe onde e quando paramos, sou eu! Ouviu bem?
        -Ei chapa! Por mim não tem galho, sem problemas! Pode ficar frio!
        -Foi mal, cara, deve ser esse calor. Vamos parar noutro lugar e sem confusão dessa vez, porque estou morrendo de fome...
        E meia hora depois num restaurante de beira de estrada, Bob abria a cabeça de outro cara com uma cadeirada novamente, desta vez por causa de uma dose de uísque falsficado,  tendo Spif que sacar a 9mm da cintura e acertar no peito, sem querer e por puro reflexo, dum mané que fez um movimento brusco sem avisar.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Não Viaje à Toa

        Sempre esperei pelo pior, sempre soube que as pessoas não prestam, são dissimuladas, mesquinhas e extremamente egoístas. Conheço gente capaz de foder a si mesma só para foder os outros também. Não é invenção. Aliás, acho que conheço muita gente assim. Por exemplo, os políticos: do jeito que andam, politicamente correto passará a ser o mais filhadaputamente possível. Mas não era isso.
        -Se errou, comece de novo!
        Tem coisas que dependem de você, outras não. Ficar embriagado é uma delas. Só depende de um pequeno erro de cálculo da quantidade álcool que seu organismo é capaz de metabolizar em determinado intervalo de tempo.
        É importante também saber se o que você está tomando é alcool mesmo, por isso:
        -Em lugar nenhum deixe seu copo sozinho e volte para pegá-lo depois.
        -Nem numa festa com os amigos?
        -Principalmente com os amigos!
        A chance de botarem alguma coisa na sua bebida é de 99%, ainda mais se nesse lugar estiver o Badigo circulando com uma garrafinha verde na mão:
        -Que porra é essa?
        -Licor Indígena...
        Outra coisa: tome cuidado ao conversar com objetos. Principalmente objetos estranhos, que certamente só querem o seu mal:
        -Ei cara!
        -Quem falou isso?
        -Eu, o cigarro. Me fuma, por favor?
        -Jesus Cristo!
        -Desculpe: fume-me, por favor?
        -Não é isso, é que eu nunca vi um cigarro falante! Sabia que vocês matavam, mas pensei que era silenciosamente!
        -Não é o meu estilo, eu espalho logo fumaça. Quem come quieto é esse aí no teu copo.
        -Ei fumacento! Fica na sua se não quiser levar uma molhada.
        -Deus, agora é a birita que está falando!
        -Birita não, Goró, mais respeito...
        Deixando um pouco de lado a loucura, seres multicoloridos emplumados aproveitaram a distração e voaram casa adentro levando algumas das pessoas presentes.
        Mais tarde descobriu-se que os sequestradores eram na verdade pássaros alienígenas:
        -Coisa terrível!
        -E o que aconteceu depois?
        Aconteceu uma das três piores cagadas que podem acontecer na vida do ser humano: transformar-se numa barata, ficar azul, ou ser confundido com um cinzeiro por periquitos extraterrestres:
        -E é por isso que vocês voltaram assim, rasgados, chamuscados e cobertos de cinza?
        -Se não quiserem acreditar é problema de vocês, mas o Birola e o Gargamel também viram o disco voador, não foi pessoal?
        -Ãh-hã... (fazendo gesto de que caíram de cabeça chapados em cima da fogueira dos hippies)

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Ponto a Ponto

        Os dois atravessaram o estacionamento e entraram num sedã preto:
        -Lembra da gente naquela cidade com a garota do circo, que levamos junto com a loura do bar onde você deu uns tiros na caixa registradora só de sacanagem, depois que a gente levou todo o dinheiro. Outros tempos, a gente ainda não fazia parte do esquema, mas pelo menos era mais divertido do que agora.
        Mike Limb escutava em silêncio. Quando Spif calou, fez um movimento com a mão por cima do ventre e segurou o cabo da arma:
        -Está pensando em desistir agora?
        Spif ficou nervoso. Um filete de suor escorreu-lhe pela têmpora. Sua pistola estava dentro do porta-luvas e não poderia tirá-la, agora que Mike era o carona:
        -Ora, vamos, sei muito bem que temos um acordo, disse Spif tentando recuperar a tranquilidade, as mãos tremendo enquanto dava a partida no carro.
        Os dois saíram do estacionamento onde costumavam se encontrar e seguiram em direção à rodovia interestadual. O relógio no painel marcava meia-noite.
        Passaram por várias cidades até entrarem num ramal sem identificação à direita. Continuaram por uma hora, então chegaram numa curva que terminava num ramal estreito, feito de lama e terra vermelha, ladeado pela mata fechada da qual era possível ver apenas os contornos sombrios.
        Pararam numa casinha de alvenaria no centro de um terreno coberto de mato. Spif estacionou de frente para a entrada, iluminando-a para que Mike visse a fechadura. Quando este conseguiu destrancá-la, desligou o motor e tudo voltou ao mais perfeito silêncio:
        -Não fique aí fora, vamos entrando, disse Mike Limb.
        -E o Juarez?
        -Entra logo, que já-já ele deve estar chegando.
        -Espera aí cara, eu esqueci um negócio no carro...
        -Entra logo.
        Spif acendeu um cigarro e olhou o relógio de pulso: quatro da madrugada.
        Lá dentro havia apenas uma mesa e duas cadeiras de madeira em estado lastimável, um colchão velho e algumas roupas encardidas penduradas em dois  ganchos na parede, além de uma prateleira com objetos empoeirados. O chão parecia de terra batida tamanha quantidade de areia e sujeira.
        Mike Limb sentou-se na cadeira e deixou sua arma em cima da mesa, piscando o olho para que Spif sentasse do outro lado:
        -Relaxa, camarada! Eu vi que você esqueceu a pistola no porta-luvas, não foi? Mas não tem com o que se preocupar, eu só vou fazer umas perguntinhas... Primeiro: por que no dia do roubo com o pessoal do Mata-Gato, o Juarez deixou você e o Ruivo dando cobertura e salvou uma parte da grana, mas quando a polícia entrou, não conseguiram te pegar?
        -Eu fugi antes deles entrarem, Mike!
        -Sei, sei... Só que deu no jornal que quando eles chegaram o Ruivo já estava morto, e tinha sido execução à queima-roupa.
        -Claro! Mas se foram eles mesmos que mataram! Quero dizer, com certeza foram. Qual é, Mike, vais acreditar na palavra dos tiras? Já falei o que aconteceu, eu pulei a janela, mas parece que não deu tempo do Ruivo fazer o mesmo. Só não entendi por que atiraram na cabeça dele. Mas cadê o Juarez? Eu acho melhor ligar pra não levar um furo desse desgraçado!
        -Realmente, você deve estar preocupado em não tomar furos, não é mesmo?
        Spif torcia as mãos por debaixo da mesa, temendo que o outro fosse dar cabo de sua vida ali mesmo. Se ao menos tivesse guardado sua arma na cintura antes de Mike Limb entrar no carro, aquele seria o momento de atirar.
        Foi então que teve uma idéia:
        -Cara, e se eu te der toda grana desse esquema que eu tenho guardada comigo?
        -Que esquema? Quanto?
        Spif tirou uma caneta do bolso, escreveu em valor num papel e entregou-o a Mike. Este ficou adimirado ao ler o montante de que o comparsa dispunha:
        -De onde você tirou isso?
        -Você sabe muito bem de onde, foi por isso que me trouxe aqui.
        -He, he, é isso aí camarada. E onde está a grana?
        -No carro, é toda sua.
        -Em troca...
        -... dessa pistola agora.
        -Feito!
        Spif entregou as chaves do carro e pegou a pistola. Destravou-a, sacou o pente para ver se estava carregado e depois recolocou-o no lugar. Mike estava saindo pela porta assobiando quando Spif chamou-o:
        -Ei Mike, você esqueceu uma coisinha....
Disparou duas vezes quando ele se virou, o segundo tiro exatamente no meio do peito, deixando-o jogado no chão vertendo sangue pelos buracos do tamanho de polegares de uma bala .40.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Nativada Agradece

        Um mês. Pode não parecer muita coisa, mas foi o tempo que eles passaram na ilha, sendo que o planejado era ficar só pro fim de semana. Mas sabe como é, quando a gente está se divertindo, o tempo é o que menos importa.
        -E vocês viviam de quê?
        -A gente aprendeu a pescar, fazer farinha, tirar caranguejo e turu, carregar areia ou pedras, capinar, caiar uma cerca ou uma parede, saíamos para catar frutas da época; o que pintava a gente fazia.
        -E pra beber, como era?
        -Geralmente a gente usava um copo, mas às vezes era na boca da garrafa mesmo...
        O legal é quando se quer ficar sozinho, então você não precisa se preocupar muito com aparência ou essas coisas, embora escovar os dentes e um banho de chuveiro por dia ajudem:
        -Mas que pitiú de peixe, falta alguém se lavar!
        -Não olha pra mim, acabei de vir da maré!
        -Sei, e te esfregaste com areia, seu porco...
        E teve o dia em que fez uma puta lua cheia, que ninguém nunca tinha visto daquela cor e daquele tamanho na vida:
        -Putz, acho que tá maior que o sol!
        -E mais clara também!
        -Só que vermelha! Onde já se viu uma lua vermelha?
        -Pra mim é laranja.
-Eu acho que é amarelo-escuro!
        -Alguém mais aí tá vendo violeta?
        Mas teve o dia em que finalmente secamos todo o estoque de álcool do lugar, então era hora mesmo de ir embora. Mas faltava a saideira:
        -Aí, galera! Saca só o que eu achei perto de onde estavam aqueles bois ontem no campo!
        -Rapaz, quantos cogumelos!
        -E do bom!
        -Põe logo no fogo uns dois litros d'água!
        E saímos mais ou menos fugidos, pois o dono da casa, vendo que a gente ia de vez mesmo, resolveu fazer uma bacanagem:
        -Trouxe uns pães pra tomar com chá antes de vocês irem embora, pessoal!
        -Mas Seu Formigosa! Acho que esse chá não vai sobrar pro senhor, não!
        -Como não! Mas tem tanto aí! Deixem de mesquinhagem que o que tem aqui é pouco mas a gente divide com todo mundo!
         E foi assim que o Seu Formigosa, depois de tomar umas três xícaras enormes até a borda de chá de cogumelo da bosta do boi zebu, viscoso de tão forte, que o resto do pessoal tinha tomado só um golinho com medo, conseguiu passar três dias acordado, carregando pedregulhos do canal até a porta de sua casa, onde mais um pouco e  acabaria construindo um novo trapiche para a comunidade, se a liga do chá finalmente não tivesse acabado.   

domingo, 4 de dezembro de 2011

Do Arrastar Se Gasta

        Primeiro foi um pontinho de luz que durou menos de um segundo e sumiu na visão periférica do olho esquerdo, fato a que não deu muita importância.
        Depois um formigamento no corpo, como se tivesse areia quente por debaixo da pele, e uma vontade de coçar mas que não era bem uma coceira. Era como seus olhos, que agora cada vez que afastava-os rapidamente de um objeto, via um rastro de bolinhas brilhantes persistirem pelo caminho, formando uma imagem distorcida do tal objeto.
        "Algo que lançado dentro d'água produz muita espuma em volta ao afundar."
        Em seguida os sons começaram a tornar-se confusos, fosse possível havia esquecido a própria língua, não sabia se ainda conseguia pensar. As palavras mudando de sentido a cada frase, porque cada pensamento passou a dizer-lhe uma coisa diferente, e cada pensamento tornava-se outro pensamento que dizia-lhe outra coisa diferente que também virava um pensamento com vida própria, acumulando-se até não conseguir mais entender o que se passava em sua cabeça.
        As cores diferentes e esquisitas confundiam-se com as formas, então teve que fechar os olhos, caso contrário não tinha explicação para o que acontecia à sua frente: o azul virava laranja e depois verde e depois violeta e todas as cores podiam ser qualquer cor; e podiam transformar-se em qualquer objeto os objetos, pois não mais existiam, eram apenas imagens de si mesmos formados por bolinhas brilhantes, que faziam um barulho engraçado quando estouravam no ar.
        "Mas eu devia parar de beber!", pensou enquanto olhava o copo de bolhas ao lado da garrafa cheia daquilo que tinha tomado, com um gosto doce e forte feito raiz de planta ou casca de árvore, iguais as que apareceram imediatemente quando o laranja ou grená pensou sólido dentro de sua cabeça:
        -Ouço som de batucada, está cada vez mais perto!
        E na verdade era uma flauta, ou um violino, acompanhado de vários tambores sendo tocados juntos por Mozart e Beethoven com os braços de Vishnu, uma cadeira flutuando numa espiral, cachorros que latem na rua mais parecem um rinoceronte.
        -O cérebro, alguém passou sabão nele, por isso as coisas escorregam!
        -Seria melhor você lavar embaixo do chuveiro!
        -Pula mais alto pra cair a espuma!
        Arrebentou o cano com uma cabeçada, escorregou e quebrou o pescoço. A água formou uma poça tão grande que apareceram um ou dois peixes no corredor.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Estrovenga Veloz

        -Cadê Rogê?
        -Ivo viu a Eva.
        -Macô!
        "O meio em que vive influencia a cabeça, que tenta modificar o meio em que vive, que por sua vez modifica a cabeça novamente, ad eternum."
        "É mais fácil escrever sem qualquer amarra, além daquelas próprias da língua, ao invés de guiar-se por códigos ou manuais. É preciso não ter vergonha de errar até dominá-la e assim usufruir da maior ferramenta do pensamento, e quem sabe do próprio pensamento."
        O que fazer agora? Quem pode mais?
        Diferentes tipos de pessoas, cada uma com um ponto de vista, todos com razão:
        -Saca só o que eu descolei!
        -O que é isso?
        -Ganha um doce quem acertar!
        -Um doce?
        -Acertou, toma.
        Sem pé nem cabeça, o efeito dos níveis de açúcar no cérebro foram aumentando:
        -Trepa no tipipiti do Caripi pra espremer o tucupi no cangatá!
        -Carbúnculo Confúcio Drosófila Pneumática!
        Em alguns momentos é possível acompanhar uma idéia, por poucos segundos que seja, mas o interessante é admirar sua forma extravagante e a velocidade com que passa.
        Fosse possível acompanhá-la realmente tomaria um susto: o material de que é feita apresenta falhas, erros de concordância e sintaxe, necessário o uso do aperelho chamado Lexicógrafo Sintático Cacofônico.
        Ou então uma gramática:
        -E quando passa o efeito?
        -Espero descobrir em breve...
        Parecia um ovo frito, na verdade era um ovo frito. O problema é que estava dentro de sua cabeça, o fogo ligado, cheiro de queimado, o óleo espirrando e caindo pelo cérebro, engordurando a parte responsável pelo senso do ridículo:
        -Não esquenta, pra você não vai fazer falta.
        Mas quem aguenta um cérebro manchado de gema de ovo e óleo queimado? O jeito é submeter-se a um transplante de cabeça:
        -O que achou da cabeça nova?
        -Não consigo saber, deixa eu ver a antiga de novo.
        -Já mandamos pra recauchutagem. Além de imunda estava muito gasta, só o concerto custaria o dobro dessa daí.
        -E essa é de quê?
        -É uma legítima cabeça de tamoatá, meus parabéns!
        -Globs, globs... (imitando o peixe saindo da lama).

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

O Coral e o Beijo

        Admirava-a de longe, sempre cercada pelas amigas e às vezes por um ou outro pretendente a quem não dava bola. Sua beleza dava-lhe poder sobre os à sua volta, atraía-os como uma lâmpada acesa aos mosquitos da noite, e mesmo assim tratava-os educadamente. Dispensava os mais afoitos sem que estes ficassem magoados, alguns até achando que haviam conquistado o coração da moça, com o fiapo de esperança que ela largava de propósito, por brincadeira ou maldade, não se sabia ao certo.
        É engraçado como acontecem as coisas. Trocávamos algumas palavras apenas, mas nunca conseguia acompanhar as conversas dela com a gente que a rodeava, sempre comentando à respeito da roupa ou do carro de fulana ou fulano, do que faziam os atores dos filmes mais recentes, da última gafe da cantora famosa.
        Impressionava-me a capacidade de acharem digno de nota coisas tão banais, embora pudesse também palrar sobre praticamente qualquer assunto, por mais desinteressante que fosse, durante horas e sem precisar me esforçar, e no entanto evitava fazê-lo.
        Conhecia pessoas presunçosas assim, que à força de impressionar os outros enchem-se de orgulho e vaidade, retendo conhecimento feito enorme represa superfaturada, mas que só produziam energia útil durante um terço do ano, permanecendo a maior parte do tempo apodrecendo restos sob a aparência calma da superfície, sem perceber que assim destruíam toda a vida que existia nas profundezas, tornando-se em pouco tempo lago estéril.
        Mas foi num desses dias comuns, em que a gente acorda, sai de casa, volta e vai dormir sem saber que esteve vivo, porque caímos na rotina e os olhos, acostumados a ver as mesmas imagens sempre, não conseguem perceber nada de novo na paisagem, a menos que apareça ali uma girafa albina ou um elefante cor-de-rosa.
        Ela sentada sozinha num banco, perto da margem do rio, estava concentrada num livro do curso,mas quando me viu  passando do outro lado sorriu e acenou:
        -João, vem cá! Quero falar com você!
        Ouvir sua voz fez algo dentro do meu peito doer com uma pontada aguda: um ataque cardíaco, um enfisema galopante, úlcera gástrica, cirrose, alguma coisa que comi, ou aquela sensação mil vezes descrita e repisada por mil pessoas em mil épocas diferentes, mas que na verdade é única e indescritível?
        Cheguei perto dela e sentei-me ao seu lado, mas não sabia o que dizer, então esperei que ela começasse. Era uma dúvida na matéria da prova da semana seguinte, eu nem lembro mais, mas nunca vou esquecer da minha resposta:
        -Posso te dar um beijo?
        Não sei de que cor fiquei nem como tive coragem sufuciente, devia estar delirando ou sob efeito de alguma droga que botaram na água do bebedouro. Aliás, não tive certeza de dizer isso mesmo, porque ela permaneceu calada com uma expressão de espanto, talvez bolando um jeito de me dispensar sem parecer rude.
        Mas ao invés disso, outra coisa ela respondeu:
        -Pode sim...

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Sem Comunicação

       
O Birola passou mal e foi vomitar no banheiro, o Léo ficou puto de ter que limpar a sujeira depois:
        -Porra, Birola! Na pia não!
        -Foi mal, cara... Bleaaaarrrrgghh!!!
        Quando tem muita birita na jogada dá nisso, mas nem sempre é por causa de quantidade. Só de misturar destilado com fermentado, cerveja e cachaça por exemplo, forma-se uma bomba no estômago, que em poucos minutos chega ao cérebro.
        Só quem estava quieto era o Gualberto, tinha brigado com a namorada e bebia sentado no sofá, meio pra baixo. Foi o único que achou bom o cano que a gente levou da Marcinha e da Roberta. Deprimido, tomando a mesma cerveja a quase uma hora, me viu ali parado e me chamou para perto dele:
        -Sabe o que é, cara? Senta aí e bora levar uma conversa séria...
        Putz! Esse papo de conversa séria é foda. Agora o Gualberto ia me alugar enquanto o Birola vomitava as tripas e o Léo dava um esporro porque ia ter que desinfetar aquela porra toda.
        -Espera um instante, então, que eu vou buscar mais uma latinha pra ti!
        -Não precisa, essa ainda está cheia.
        -Mas deve estar quente!
        -Não estou muito a fim de beber hoje.
        -Tem certeza? Porque eu lembrei que preciso de gelo.
        -Vais botar gelo na cachaça? Tá certo, já entendi, pode ir...
        -Foi mal cara, vocês terminaram, mas eu conheço a Jú também então não quero ficar sabendo desses papos.
        -O quê? Não, não, não, não, não. Eu ia falar outra coisa, na verdade não é sobre a Juliana, estou preocupado com outra coisa, escuta só:
        E naquele dia eu aprendi uma lição. O que ele me contou realmente não era sobre a ex-namorada, nem sobre mulher ou cara algum. Parecia que ele falava de filosofia, mas não como se realmente tivesse lido algum filósofo, e sim como quem por inclinação natural tivesse percorrido o caminho até onde se encontrava, motivo de sua agonia e de sua paixão.
        Espantado, eu apenas perguntava uma ou outra coisa a respeito de um detalhe em seu raciocínio. Sua angústia era expressa de uma maneira tão viva que senti tristeza por ele.
        Quando terminou de falar, vi que apesar toda essa aflição de alma ele estava mais próximo de uma resposta do que qualquer um poderia imaginar e isso o assustava. Como pode haver em nossos dias quem se preocupe a esse ponto com o sentido da própria existência ao invés de apenas deixar acontecer?