domingo, 27 de maio de 2012

Do Amanhã Nada Saberemos




        Um convite inesperado e no dia seguinte rumava pela manhã bem cedo para voltar à ilha de tão boas memórias.
        Ao  botar os pés na areia eram ali exatamente onze e trinta e três, depois da travessia de canoa do Quarenta em direção à vila de Mocooca, seguindo a pé uns vinte minutos, até alcançar a Comunidade do Índio Verde, onde deveria permanecer durante o restante da semana.
        Pediu uma cerveja que veio estupidamente gelada, cavada do fundo do congelador, para ver se tomava coragem de se atirar na maré, naquele sol do meio-dia à pino, mas felizmente o vento constante não deixava a gente sentir o calor.
        -Rapaz, vou mandar desligar esse ar-condicionado, que já tá gastando muita energia...
        Era o Índio, tirando maior barato que aquele era o melhor lugar para se tomar cerveja no mundo: a areia brilhava de tão branca e tudo era muito iluminado; o vento permanente aliviava a pele dando uma sensação de sonho naquele braço de mar esverdeado, as manchas acinzentadas dos cardumes de sardinhas.
        Aos 19 anos, temos a certeza de que em nossa vida faremos apenas coisas inocentes, convencidos de tomar sempre as decisões acertadas, ao invés das verdadeiras cagadas que nos acompanharão a vida inteira.
Pode-se sinceramente ter uma opinião verdadeira sobre o mundo e o futuro, e do fundo do coração seguiremos aquele caminho, correndo o risco de tomar para si as maiores preocupações, enfrentando cada problema com a dificuldade mental dos que têm obrigação de mentir em cada momento àqueles quem ama, e o que é pior: mentindo para si e para os outros, que é uma merda tão inimaginável que fode o convívio.

sábado, 26 de maio de 2012

Como Consegui Um Bom Emprego




        Barba feita e cabelo cortado, roupa nova comprada em dez vezes no cartão da namorada, documentos e currículo dentro da pasta de papelão, cheguei no local, um restaurante sofisticado, e fui falar com o dono:
        -Bem, vejo que você tem alguma experiência, fez uns cursos por aí, blá, blá, blá, e como no momento estamos com uma carência de pessoal, você pode começar imediatamente: primeiro lavando aquela pilha de louça suja ali, depois limpa os banheiros, passa um pano com detergente no salão, lava o chão da cozinha, organiza os produtos  no freezer, etc, etc, depois ajuda a baixar as portas quando a gente fechar lá pelas três da manhã.
        -E quanto ao salário?
        -Salário? Você começa recebendo só o dinheiro do transporte, aí se for aprovado no teste a gente vê se discute algum pagamento.
        Como pra cachorro esfomeado osso é filé, aceitei.
        Um mês depois, economizando o do busão indo de bicicleta, mas gastando esse dinheiro remendando toda semena a coitada da magrela, que não aguentava o tanto de buracos na ciclofaixa (nota: ciclofaixa é uma idéia genial de algum administrador probo, que resolveu pintar um estirão de cal às margens da pista conhecida como "Rodovia da Morte", que protegia tanto o ciclista quanto um boné protege um motoqueiro no caso de acidente), resolvi perguntar quando ia começar a receber:
        -Pagamento? Está brincando? Já disse que você está aqui de experiência!
        -Mas é que já faz mais de mês...
        -Escuta só, eu quando comecei a trabalhar passei foi três meses sem receber salário lá na empresa do papai!
        -Pois é, mas é que eu tenho umas contas pra pagar que estão atrasadas...
        -Mas quem mandou fazer dívida? E olha que ontem aquele freguês reclamou que o banheiro estava sujo.
        -Pô, mas foi esse mesmo sujeito quem pintou de vômito a parede e defecou fora do vaso!
        -Não interessa, volta pra pia que tá acumulando louça, depois eu penso no teu caso.
        Um belo dia o cozinheiro faltou, tinha arranjado coisa melhor numa fábrica de roupas que empregava imigrantes bolivianos, aí o patrão chegou pra mim e perguntou:
        -Vem cá, você sabe cozinhar?
        -Bem, sei fritar ovo, ferver água, fazer café, miojo...
        -Perfeito! Então hoje você é responsável pela cozinha! Pode ir pra beira do fogão que já saíram uns três pedidos.
        E foi assim que graças ao paladar refinado dos clientes acabei virando o cozinheiro do lugar, passei a ganhar cem contos por semana, e a primeira coisa que fiz foi comprar uma jance nova pra bike, pois a outra já estava mais empenada que gaiola de pobre, nem o cara da oficina perto de casa que é meu amigo conseguia mais dar jeito.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Vôo Noturno




        Uma coisa assim estranha, um formigamento, uma tremedeira, e no minuto seguinte meu corpo era arremessado violentamente pala janela, arrebentando galhos de árvores e antenas, telhas e vergalhões, cobrindo-me a pele de rasgos. Eu sentia o gosto de sangue na boca, prestes a rebentar os cornos no chão de piçarra da rua, mas ante a desgraça iminente tive um pensamento que me atirou vertiginosamente para o alto.
        O vento era tão forte que não consegui abrir os olhos.
        Um vento desconhecido conduzia meu corpo retalhado cada vez mais alto, cada vez mais para cima, o medo fazendo tremer cada fibra, impedindo de organizar o pensamento.
        Olhei para baixo e estava tão alto, mais tão alto, que tive medo de morrer.
        E finalmente parei, flutuando naquela imensidão, naquela noite fria, daquela altura onde podia ver as ruas cortando a cidade, pontos luminosos, brinquedos de criança, as avenidas principais à distância iluminadas como se fosse o Natal.
        Não sentia mais dor. O vento frio anestesiara os membros, devolvendo o contole dos movimentos, e nesse momento tornei-me consciente do que estava acontecendo: por um milagre, podia voar.
        Bastava um pensamento e viajava vertiginosamente para onde queria, numa velocidade tão grande que me arrancava lágrimas dos olhos; eu poderia ir mais rápido se quisesse, passeando por cima da cidade adormecida, descendo até a periferia, sobrevoando a região mais escura das matas ainda não devastadas, perseguindo um avião que havia acabado de decolar do aeroporto.
        Depois com outro pensamento eu alcançava quase instantaneamente o centro da cidade, de longe vendo os prédios e as pessoas lá dentro atrás das janelas, protegidas daquele vento frio: se não subisse novamente seria capaz de me chocar contra as árvores que faziam tanto barulho naquele lugar, soando como o último suspiro de uma natureza perdida, agora distorcida entre ruídos e gritos agudos feito vidro estilhaçado.
        Então o medo da queda me fez desejar subir novamente o mais possível, percebendo que a aventura iria acabar, ali a mais de mil metros de altura, repentinamente fiquei parado, sobrevoando a Baía do Guajará:
        "O que está acontecendo, porra! Se eu cair dessa altura, mesmo sobre a água, vou morrer, caralho!"
        E comecei a cair.
        E cada vez mais rápido, mais próximo do fim, tive um último pensamento:
        "Acorda!"

quinta-feira, 24 de maio de 2012

A Noite Mais Escura



        O centro fervilhava de gente: carros, ônibus, vendedores ambulantes, poeira, fumaça, mendigos e tudo o mais que fazia parte desse formigueiro cotidiano; tamanha correria sem o mínimo objetivo; animais numa gaiola objetos de um estudo nonsense.
        Quantas pessoas passam por minuto por essa esquina? Quantos carros tem final ímpar e de que cor eles são? A que horas cai a chuva e qual a influência do atraso pluvial no crescimento das mangueiras? Quantos de nós somos negros, quantos são brancos, azul, verde ou amarelo; quais são as cores de quem vive nesse Brasil?
        As coisas sempre no lugar: em tal praça reúnem-se os drogados, os vermes e os párias; bem ali próximo ficam os bares e boates da moda; acolá tem a programação que faz a festa dos envolvidos na tal cultura alternativa, tentando diferenciar-se dos outros, evitando ao máximo contaminar-se com o que julgam ser o veneno onipresente da mídia.
        Noutro canto da cidade, em qualquer beira de rio, encontra-se quem não quer mais saber dessa sociedade hipócrita, desse falso bom-mocismo, dessa mania de bajular quem está por cima e pisar quem anda por baixo, gente sem caráter e sem moral, gente que se acha o centro do mundo.
        No fundo a maioria não vê nada um palmo além do nariz, preocupados com qualquer coisa sem importância, feito viciados que só pensam no próximo trago: "foda-se a humanidade e me arranja um fósforo, que acabou de apagar essa porra."
        Pode ser da classe a, b ou z, banqueiro, comerciante, traficante, ladrão; a maioria passa a vida fingindo ser o que não é sem ao menos saber, fora os que se enganam conscientemente ao reconhecer a própria babaquice; os frustrados por qualquer motivo; os que já passaram da idade e os que ainda não chegaram lá; os que acham que sabem tudo e aqueles que tem a certeza de nada saber; os que só olham para o próprio umbigo, mas terminam cegos.
        Pois um cego não pode ver o pôr-do-sol. Evita andar na rua sozinho, mesmo acompanhado de sua bengala. Tem inveja daqueles que podem enxergar e destroem suas vidas por puro comodismo, e acaba pensando:
        "Como pode os que tem o privilégio da visão serem geralmente os últimos a se dar conta disso? De que foram divinamente abençoados, mas fazem questão de fechar os olhos para a beleza do mundo e da vida, em cada ato, encontro ou despedida?"

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Feira-Livre




        -Vê o peso também desse amarrado de maxixes, faz favor?
        -Dá dezenove e cinquenta, mas eu ponho mais este maço de feijão verde, aí faço pro freguês vinte barão certo.
        -Tá legal, pode botar na sacola. E rápido que estou com um pouco de pressa, ainda vou encontrar uma barraca dessas para almoçar...
        -Pois égua, se o senhor quiser vai lá na barraca da Madame! É aquela uma ali de frente pro rio, do lado da geladeira amarela: vai que eu te garanto que lá vende o melhor açaí com peixe frito da área; e diz que foi o Tinho quem mandou, que aí ela faz caprichado pro senhor!
        -Vou lá sim, valeu a dica.
        -Então olha, leva também essa alface daqui por conta da casa, aí diz pra ela preparar uma saladinha pro senhor, porque lá só vende o açaí com peixe frito e farinha d'água, coisa que a gente é acostumado mas quem vem de fora sente falta de algo mais, tipo uma verdurinha, um feijão-com-arroz...
        Eu estava ali do lado, comprei um cigarro retalho, só pescando a conversa entre o cara alto e branco feito papel, visivelmente incomodado com o calor do sol, e o verdureiro local, que não parava de empurrar coisas para o homem levar: mais um pouco e ele ia acabar comprando a barraca inteira, só para escafeder-se dali e suar em bicas em paz.
        Botei o cigarro apagado no canto da boca e fui chegando:
        -Ô, irmão, deixa que eu carrego essas sacolas pro senhor. Ei, Tinho, larga mão de malandragem e põe aí mais uns tomates junto dessa alface, que eu levo ele na Madame, aproveito e almoço lá também.
        -Mas coooomo, seu égua? Vais como então agora comer lá e pagar tua dívida, se estás sem nem um tostão furado?
        -Posso no momento estar desprevenido, mas convido esse senhor a ter a melhor experiência gastronômica da vida dele, se ele por obséquio fizer o favor de mandar esse rango...
        Eu já estava com a sacola do cara abarrotada de verduras, mais a alface e os tomates que o Tinho mandou por conta seguros na mão esquerda, além do cigarro apagado nos lábios. O cara branco feito cal ficou me encarando uns segundos, talvez confuso pelo excesso de luminosidade, apertando os olhos sem dizer palavra.
       Acendi o cigarro e saí andando.
       Sem outra alternativa, o cara teve de seguir atrás de mim em direção à barraca da Madame, ou então chamava a polícia, ou sabe-se lá o que era que ele tanto queria naquele momento, mas não parava de olhar desesperadamente para os lados, procurando algo que não encontrava.

terça-feira, 22 de maio de 2012

Método Sem Método




        Tinha o mundo torcendo contra. Como pode o balanço natural desse mar gigantesco, outrora tão frutífero, despertar a ira dos invejosos sem espírito? Esse mesmo mar reverenciado a cada dia pelo pescador, que sai por esse mundão de água, enfrentando qualquer tempo e as dores em busca do peixe sagrado, que é seu sustento e alimento de sua família?
        -Êh, seu Lázaro! Depois de duas semanas, já de volta! Mas rapá, como foi bem aí, hein?
        -Égua que nada! Lá na costa costumava dar muito mais! Tinha época em que a gente ia pra fora, passava nem bem uns três, quatro dias, e tinha que voltar com o porão abarrotado, o barco quase transbordando na linha d'água, socado dum jeito que dava medo que fosse adernar: mas era tanta dourada e anchova que fazia lama! Às vezes a gente tinha que jogar uma parte fora, pra não correr o risco de afundar no meio da baía!
        Todo mundo ajudou a descarregar o porão; depois daquele tempo todo o gelo já tinha derretido. A solução era limpar e salgar a carne, pra vender pela metade do preço que o atravessador pagava pelo peixe resfriado, bem mais valorizado.
        -Por que não enches de novo esse porão de gelo e leva pra capital, pra fazer render tanto trabalho?
        -Só se eu fosse em Maracanã, que lá eu compro a saca direto do dono da fábrica, mas não adianta: passa dois, três dias, se não vendo tudo logo, começa a estragar, é só prejuízo, não tem geladeira que dê jeito! Segura faz favor esse negócio daqui...
        Era muito serviço, mas todo mundo que ajudava parecia feliz; sabiam que no final do serviço iam ganhar o almoço da semana inteira, por isso ficavam até alta madrugada.
        Quando a maioria do pessoal tinha ido embora, o peixe descarregado nos isopores, era quase de manhãzinha. Dava pra ver que o sol não tardaria a aparecer no horizonte:
        -Desculpa, seu Lázaro, mas já acabou o serviço, então deixa eu ir pro meu barraco, descansar.
        -Espera um tanto, escuta só: não dorme muito não que faz mal! Passa lá em casa bem cedo, que assim que a gente terminar de botar no sal isso tudo, vais comer o melhor avuado da tua vida! Olha só esses "banderado" que separei pra gente aqui, ó...
        -Deus te abençoe, seu Lázaro, então até daqui à pouco.
        -Vá, meu filho, e bom descanso...

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Casa de Barro




        Imaginava ela momentos atrás, embalando-se na rede, segurando minha perna. Disse coisas tão lindas naquela voz doce, sorrindo como se fosse a pessoa mais feliz do mundo.
        Ela bem poderia reclamar daquele lugar, que era realmente péssimo para uma dama: quatro paredes manchadas da umidade, sem reboco; em cada uma delas eu havia passado apenas uma demão de cal, mas depois que secou começou a soltar pó feito o cão.
        O chão que pisávamos era de terra batida, coberto com cimento cru: faltava comprar duas caixas de tinta Xadrez, amarela ou vermelha, para que não levantasse tanta poeira. Minha roupa que soltava mais pó que figurino de filme antigo de faroeste.
        Quando ela chegou, eu tinha recém-tomado banho, aí ela disse:
        -Ué, não vais te lavar?
        -Mas..
        A vida é assim mesmo. Já tinha me lavado com sabão de coco, botado a bermuda mais limpa da cadeira, passado um tempão procurando um desodorante, que por sinal não encontrei, fiz o melhor possível, aí lembrei:
        -Espera aí!
        Desci pra tomar outro banho, depois passei um limão galego debaixo do braço,  respinguei uma essência de baunilha que tinha sobrado dum bolo do dia anterior, tudo pra acabar com aquele cheiro desgraçado que continuava. Culpa minha, que suo pra baralho, nessa fornalha abafada:
        Ela disse:
        -Pôxa, tem de haver um jeito, joga mais uma água, sei lá! Talvez se chovesse a gente poderia...
        Então repentinamente começou a chover: o tempo esfriou, o suor secou, e ela finalmente me abraçou.
        Começou a gemer, dizia que tudo era maravilhoso. Eu arrancava pedaços de sua pele, sugava cada poro, arranhava-lhe a coxa com os dentes, lambia seu pescoço, mordia os braços, pernas, joelhos; botava minha língua dentro dela, entrava em êxtase também, sentindo cada vibração daquela carne macia.
        Entorpecidos, caímos sem forças: ela descansando sobre meu braço, eu com o braço esticado, mas ambos agradecendo a existência, ambos exaustos.

domingo, 20 de maio de 2012

Entrada Pela Porta Quebrada




         Noite amena.
         Ela chega, vinda de um churrasco da casa de amigos e conhecidos, falou que ia bater em casa, não acreditei. Demorou, mas quando menos esperei, ela apareceu.
         Continuava linda como sempre. Dessa vez tinha algo diferente em seus olhos, um brilho estranho, como se tivesse bebido ou fumado, embora das muitas vezes em que bebemos juntos ela continuasse normal: nunca como aquela pessoa capaz de devorar alguém só com um olhar.
        Admirado, pois achava que ela não vinha, disse que era ela quem definia suas prioridades, "se não quisesse ficar poderia ir embora!" Mas pedi que ficasse mais um pouco, no que ela recusou, pois:
        -Tens uma criança de colo, não saberia o que fazer ouvindo ela chorar.
        Foi logo após que retruquei, "a bebezinha é bem quieta!". Mas aquele pingo de gente, mais bonita que toda a natureza das frutas do mundo, começou um chorinho inacreditável, afagando nossos ouvidos, exigindo atenção, essa pessoinha tão linda:
        -Deixa eu ver o que foi...
         Desci.
        "Mas que linda, não chora, deixa eu te dar um cheiro..."
        Tem coisa melhor?
        Nesses dois meses de vida ela já deixa os marmanjos de boca aberta, enchendo-a de mimos e atenções. Mas é tanta felicidade que eu olho pro rostinho dela maravilhoso, sorrindo, que me dá vontade de chorar também.
        Voltei pro quarto, então a moça me falou:
        -Não precisa se preocupar comigo, sei que faz parte da vida. Alivia um pouco essa tensão, deita aqui junto de mim e lembra o quanto a gente se ama; agradece de estarmos novamente ao lado um do outro, compartilhando dessa nossa existência.

sábado, 19 de maio de 2012

Dos Doidos




        Cheguei num lugar onde tinham umas dez pessoas, cada uma com um macête, desfibrando a raiz.
        Tava meio de porre, meu brother sacou minha condição, deu logo o papo:
        -Falei pra ti que não era pra beber hoje! Se fores tomar o chá vais vomitar, passar mal.
        -Quê isso, gente boa! Deixa eu sentar ali no cantinho.
        -Bem, tu és quem sabe...
        Depois de fazer minha oração, pedindo para não vomitar as tripas do corpo intoxicado, tomei meio copo do mel do chá, "esse é apurado!". Sentei na lona de caminhão, com um pedaço de pau na mão e comecei a bater a raiz. As três únicas mulheres do lugar nem notaram minha presença, continuavam a tirar de um saco de sarrapilheira socado até a boca as folhas que raspavam e que deveriam entrar na preparação do negócio sagrado.
A raiz era dura feito couro e pedras. A gente batia com força e dela escorria um líquido vermelho, as fibras soltavam-se ficando igual casca de coco seco molhado na tinta, espalhando-se o sumo a cada porrada naquele plástico azul, onde a gente estava sentado.
Rolava uma música gravada, inquieta mas feliz: era o hinário e todo mundo sabia de cor; um som tão bonito que dava vontade de aprender: dizia a sabedoria na voz dos anjos, ensinando o certo e repreendendo o errado.
        Prestava maior atenção, tanta que de vez em quando começava a bater nos dedos: em dado momento esquecia até de escutar o ambiente, parecia que não estava ali.
  A cada meia hora o ânimo caía, então serviam outra dose, eu pedia duas. E continuava macetando a raiz dura feito aço até o último fiapo, até sair sangue debaixo das unhas.
  A música continuava cada vez mais linda, como se estivessem os objetos cantando. Assim que terminou, um senhor levantou, pegou seu violão e começou a tocar e cantar a mesma coisa que a gente tinha acabado de escutar, só que agora mais bonito e melhor do que antes:
  "Sei que não existe só o agora neste mundo/ mas quem ainda não sabe vai ter que aprender/ Tudo que é do mundo é por demais muito obscuro/ mas o futuro ainda está pra acontecer/ Aquele que tem fé é quem percebe quando basta/ Pois quando o dia acaba se não se pode mais fazer/ Entenda o sofrimento pois se torna aprendizagem/ Espere pois um dia também vais entender/ E no final todos que vivem necessitam da verdade/ A verdade que será e do que irá acontecer/ E no ano iluminado em que você voltar pra casa/ A verdade brilhará e nos trará também você."
E quando dei por mim, tinha acabado a cantoria e o senhor do violão tinha ido embora. As raízes estavam todas desfibradas e batidas; as folhas das mulheres tinham sido bem raspadas, a panela enorme fervilhava sobre a brasa, já não havia mais nada pra eu fazer ali.
  Sobrou só a garrafa do mel apurado, de onde tirei uma golada generosa. Depois fui andar na praia pra espairecer a mente, só que nesse momento me veio tanta imagem, sob efeito daquilo que eu estava, que nunca mais vou me esquecer.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Entre Duas Linhas




       Sentados em volta da mesa tomávamos um vinho barato que o dono da taberna vendeu mais barato ainda, pois estava com o prazo de validade vencido. No que prontamente compramos todas as nove garrafas, abrindo duas e deixando as outras para descansar no isopor com gelo.
       Veio a noite e o lugar foi-se enchendo de gente. Um grupo regional que tinha acabado de tocar lá próximo apareceu e resolveu continuar a festa ali; as pessoas então começaram a dançar, o som dos curimbós e maracas correndo pela praia, indo se perder na escuridão, misturado com o barulho das ondas que se arrebentavam contra as pedras.
        Todo mundo tinha se levantado para curtir o momento, já meio embriagados. Peguei uma garrafa das que estavam no isopor esfriando,  desci até a areia e comecei a caminhar tomando uns goles, sem mais porquê.
        Passei em frente umas árvores onde havia um grupo fumando, então alguém me chamou, uma voz de mulher que reconheci na hora:
        -Ei, vem aqui comigo, é você mesmo?
        -Como estás, a quanto tempo, não?
        -Senta aqui com a gente, quer um trago?
        Eram umas seis pessoas, três moças e três caras, um deles com uma garrafa de vodka, estavam fumando maconha e já iam subir de volta para curtir o carimbó de onde tinha acabado de sair.
        -Valeu, estou só dando um passeio, aproveitando o vento...
        -Realmente, esse vento é muito cabeçudo, não tem como escapar mesmo!
        -Falou, deixa eu continuar no meu rumo.
        -Posso ir com você?
        -Gostas de vinho barato e quente tomado no gargalo?
        -Adoro! Gente, encontro vocês depois lá na casa. Então vamos!
        Foi uma coisa de louco caminhar por ali, olhando as estrelas que eram tantas que parece que víamos todas ao mesmo tempo, depois de esvaziarmos a garrafa, deitados entre o céu e a terra, como se embalados numa rede.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Passageiro Estranho




        A rotina cansava; terminada a novidade, resta pouca coisa. O trabalho distraía, o estudo era uma necessidade, mas as pessoas esperam alguma coisa a mais da gente, até o dia em que deixamos de se importar.
        O que fazia e o que deveria fazer, a cabeça martelando as obrigações diárias; culpava a falta de tempo e ânimo: quem dera fossem as coisas mais simples.
        Porque só o tempo daria as respostas. É no final que entendemos pouco ou nada do motivo disso daí.
        Depois vamos acostumando a fazer as coisas de um certo jeito, quando então as mudanças deixam de ser boas: o dever de criar novos hábitos, apostando que finalmente agora dessa vez vai.
        Mas talvez por receio, comodismo ou preguiça, forças exteriores que impedem a vontade e vão minando a resistência, o dia seguinte começa a se tornar tão insuportavelmente igual ao anterior, que é capaz de em pouco tempo levar a gente a desistir, sem esperar mais nada dos outros.
        Mesmo assim o mundo está aí, e é imenso.
        As pessoas esbarram umas nas outras, têm todas as possibilidades imagináveis e também a falta delas, dentre tantas escolhas pela frente; até quem sabe ficar em cima do mundo, admirando o movimento dos que passam, o olhar perdido num ponto ao infinito, pensando sabe-se lá o quê da vida: talvez tentando lembrar de como tudo foi acontecendo, ainda esperando surprender-se a cada nascer do dia com um espetáculo que nunca muda.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Deserto ao Redor



        O que é a memória? Como pode misturas imagens, confundir sentimentos, lugares, pessoas? Como pode ao invés de simplesmente lembrar dos momentos passados, criar em nossa mente novas paisagens, assombros, tristezas e felicidades; tranportar aquilo que está longe no espaço e no tempo para bem perto, confundindo lembrança e imaginação?
        Quando vivia na casa dos amigos, cercava-se de gente, mas sem saber ao certo de quem se tratava.
        Sentia sua presença e, embora ela não estivesse ali, era apenas quem eu via agora, com sua pele macia e aquele sorriso, como num sonho. Mas na realidade ela nunca tinha estado lá, pois só viríamos a nos conhecer muitos anos depois.
        Lembro que passávamos as tardes deitados na cama, amando um ao outro. Ela cantarolava uma música, eu às vezes lia um livro, que brincando ela atirava ao chão, depois animada ajoelhava-se em cima de mim, seus cabelos tocando meu rosto, deles eu aspirava o perfume e fechava os olhos, novamente sentindo aquela dor no peito, o prazer do contato de seu corpo.
        Sugava-lhe os seios, passeava com a língua por sua boca, pelos dentes brancos, gengivas, pescoço; lembraria depois daqueles momentos em que numa tarde amena ríamos colados um ao outro, a luz do sol deixando uma breve mancha dourada na parede que logo sumia, alertando-nos da convivência fugaz que nos fazia guardar cada momento como uma preciosidade, sem saber se nos encontraríamos no futuro.
        Pois tudo tornava-se tempo passado. Ficavam as marcas das mordidas e dos arranhões, mas até estas sumiriam, até aquele momento em que, feito uma surpresa tão grandemente esperada, ela estaria ali novamente, defronte uma porta de madeira; mas bastavam apenas três batidinhas leves: era o suficinte para trazer de volta tudo aquilo que havíamos passado juntos, além do tanto que havia para vivermos.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Grande Cara Gente Finíssima



        Teve um mano que fazia bem mais de ano que eu não via e sabe-se como apareceu lá em casa.
        Quando desci, olhei e não acreditei:
        -Pô, és tu, seu João Pedro?
        -Não, é a tua mãe! Abre logo esse portão, pôrra, não tá vendo o sol?
        -Putz, desculpa mano, entra aí...
        Era uma figuraça da mais alta estirpe, a fina flor da pilantreza e safadagem, gente fina do carvalho; andou tanto tempo sumido que eu imaginei que tinha virado puta nos garimpos do Suriname ou tava morto, que é quase a mesma coisa.
        Perguntei como é que andava a vida dele: me disse que tinha parado de fumar e de beber, aí emendei em seguida:
        -Pô, mas não aceitas nem uma cervejinha?
        -Ué, tens cerveja aí?
        -Aqui não tenho, mas é só pegar nesse bar aí do lado...
        -Pôrra, Demorou!
        Altos papos.
        João contou que foi embora depois de casar contra a vontade dos pais, com uma mulher que eles diziam que não prestava, depois abandonou os estudos e passou dois anos morando na casa dela, em outro estado, outro clima, fazendo bico como árbitro de futebol. Passado um tempo lá, começou a discutir com os sogros, o que virou motivo para que a esposa vivesse brigando com ele.
        Até que resolveu:
        -Quer saber? Não te aguento mais! Olha, fica com Deus, que eu vou voltar pra minha terra.
        Então decidiu viajar de volta, então conheceu uma pequena com quem subiu o litoral, até chegarem em nossa cidade naquele exato entardecer; ao fim das contas, disse só precisar dum lugar pra ficar aquela noite com o amor da vida dele: tinha planejado que só no outro dia, depois de tomar coragem, encararia novamente a família.
        -Relaxa, mano, vocês podem dormir aí na cama, que eu vou armar minha rede  no outro cômodo.
        -Pô, valeu aí chapa! Quebraste meu galho!
        -Fica frio, você merece. Chama logo tua mina, só me esculpa a bagunça.
        -Quê isso, meu chapa! Eu que te digo, valeu mesmo...

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Dos Que Desejam Mal Pros Outros



        Bastava uma coisa: comparecer diariamente e sempre dar o melhor de si, ajudando a fazer as coisas funcionarem, mesmo não tendo idéia de onde ia parar naquele movimento todo, aquela gastura tremenda, como se após a batalha do dia-a-dia não tivesse direito ao mínimo descanso.
        Feito um peixe em águas desconhecidas, cuja ausência de pálpebras impossibilita fechar os olhos para dormir, nadava pela correnteza da vida.
        Então quando o sono acumalado vinha, uma pisacada virava um atraso; um cochilo e você acordarva no fim da linha, com o cobrador cutucando teu ombro:
        -Figura, acorda! Chegamos na garagem, desce logo...
        Talvez o cara não tivesse feito por mal, mas vai saber. As pessoas gostam de prejudicar os outros, principalmente aqueles doentes do juízo e de pobreza mental tão grande que só se sentem bem ao ver a desgraça do alheio:
        -Pôrra cara, muito obrigado por me cutucar agora, mas já perdi o horário do trampo mesmo, então me deixa em paz que eu vou continuar dormindo.
        -Êh, rapá, pensa que estás na tua casa? Pois vi desde a hora que subiste no carro e sentaste aí para dormir! Pois se perdeu o ponto, o problema é teu...
        -Meu amigo, só seu fosse sonâmbulo para descer dormindo! Acho que foi de sacanagem que esperaste chegar o fim da linha pra me acordar, pelo único prazer dessa tua vida de merda de ver os outros se foderem, então sai fora e não me enche o saco! Ah, e vai tomar no cú, antes que eu me esqueça de meter um pipoco nessa tua cara de feladaputa!
        Levantando a camisa mostrou o cabo do trintaeoito. O cobrador deu dois passinhos para trás, pois estavam apenas os dois no ônibus.
        O rapaz trabalhava como segurança fazia tempo, já tinha matado um ou dois vagabundos, andava armado só para proteção pessoal, com  medo do que pudesse acontecer com ele e com sua família, mas nunca teve tanta vontade em atirar alguém como naquele dia, nesse miserável que se traveste de trabalhador, mas que mentalmente não passa de um bandido. Pela atitude do cara via-se que não prestava:
        -E sai da minha frente, pôrra! Sai logo, desgraçado!
        O cobrador rasgou fora, deixando cair pelo caminho moedas e notas, saiu correndo apavorado.
        Ainda meio estremunhado de sono, o rapaz catou no chão do coletivo exatamente o valor da passagem que havia pago, dois reais.
        Desceu para o asfalto, bocejou, olhou pros lados, até encontrar a parada mais próxima, onde poderia esperar pelo ônibus que levaria-o de volta para casa naquele dia perdido de trabalho.

domingo, 13 de maio de 2012

Algo a Mais no Meio Desconhecido



        A tarde estava linda. Entre julho e agosto o sol mostrava-se admiravelmente amarelo brilhante, inundando todas as coisas, entre nuvens e paredes e pessoas com o tom de ouro mais essencial ofuscante.
        Fazia calor, era abafado, a chuva quase não vinha, pois o Criador mantinha seus segredos; olhasse para nós cá embaixo, provavelmente sentiria pena, sem admitir que Sua mais perfeita obra havia dado errado.
        Claro e evidente que não; pessoas encontram-se entre caminhos tortuosos, como as linhas por onde Ele escreve. O prometido há tempos que finalmente se concretiza. Sinal de que as coisas erradas são fáceis de perceber. Difícil é saber quando tudo dá certo.
        Deitada na rede embalava-se, sem mais ter o que fazer. Depois de iniciada, nossa estória continuava.
        Às vezes tinha vontade de falar alguma coisa, mas permanecia calada; era mais fácil seguir ao sabor da vida, mesmo quando aparentemente nos encontramos num beco sem saída.
        Finalzinho da tarde finalmente caiu uma chuva e o clima ficou mais fresco, deixando a gente mais relaxado, um pouco inquietos até a hora de ir cada um pro seu lado.
        O melhor jeito de enfrentar o calor é tomar algo quente.
        "-Cara! Mas que dia foi ontem!"
        Dizia consigo mesmo, pois não havia ninguém por ali. Vivendo num quartinho vagabundo, com um banheiro sujo no fim do corredor, no décimo andar dum prédio sem reboco, sentia uma alegria besta com as cores que o sol ia deixando durante o dia na parede que ele mesmo havia pintado de vermelho, rosa, salmão, sei lá.
        Voltava do trabalho, tirava os sapatos e dormia. Acordava após algumas horas e novamente saía, tirando forças de onde não havia, esperando que não estivesse vivendo errado novamente.

sábado, 12 de maio de 2012

Vinte e Dois Anos




        Sentou na frente do espaço em branco e começou a escrever.
        Amarrou na cabeça a camisa que ela havia usado, dessa forma sentiria melhor aquele perfume delicioso, de quem era capaz de qualquer coisa a mais, como sentir saudades até gelar a espinha, e lamentou-se não ser alguém melhor, ao invés dum completo idiota.
        Tentava com raiva mas não conseguia. Esquecer era impossível.
        Mal piscava os olhos, sentia o gosto daquela pele macia; quando mordia sua costas e tentava agarrar seus seios, esvaindo-se a cada beijo, até que ela foi-se embora Deus sabe pra onde, quando obviamente o certo era permanecer do seu lado.
        A blusa que ela vestia, dobrada em cima da cama, amarrou-a em volta da cabeça, apenas para continuar sentindo na memória o cheiro maravilhoso, pois ela havia ido embora e levava junto consigo o sol, deixando apenas uma mancha dourada na parede e o vermelho daqueles lábios tatuando-lhe o ombro como uma flor arroxeada, deixando-lhe na ponta da língua o sabor de seus lábios perfeitamente desenhados.
        Se ela chorou, não podia saber. Dela guardava uma lágrima de saudade, que se recusava a desprender dos olhos secos, como atestado de uma vida destinada ao nada, como podem ser as vidas que voam ao sabor do vento.
        E naquele momento derradeiro, quando sua presença havia cessado, ainda sobrava algo deveras demais importante. Era uma poesia em flor, no ápice dos seus vinte anos, começando assim um romance, perdido no meio de um livro de provérbios, escrito num vagabundo Lenço de Papel:

                                 As pálpebras cerram violentamente,
                                            uma contra a outra,
                                           não contém o estupor
                            das pequenas lágrimas que, persistentemente,
                             enredam-se pelo rosto, colo, e vão obscuro,
                                           entre uma fálica visão
                                                e uma caverna
                                      tecida à velcro e pele úmida.

                                  Nem que seja apenas em nossa mente.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Uma Árvore no Quintal


       E novamente a estranha sensação, apesar de não completamente desconhecida, de leveza e calma tocava-lhe o peito, como num pôr-do-sol de abril, as plantas na terra úmida regadas pela última chuva da tarde.
        O mato começou então a se espalhar, cobrindo todos os cantos e frestas com uma voracidade selvagem; flores impossíveis apareciam amiúde por entre a verdura que crescia no mínimo espaço; formigas, aranhas, besouros, centopéias e vários outros insetos alastravam-se naquele ambiente natural, além dos grilos e mariposas e vaga-lumes que só saíam à noite.
        O clima aos poucos ia amenizando; o calor já não era tão sufocante; a luz do sol já não mais cegava; por enquanto podia sair à rua e identificar todas as cores e formas, ao invés de apenas o contorno dos objetos.
        Percebia a beleza do mundo outrora desfocado; até a parte antes encoberta pelas sombras tinha agora o tom do ouro, na aprazível composição daquele ambiente.
        "Chegava-se por uma linha de ônibus, todo dia entre cinco e seis horas da tarde, começo da noite, isso dependendo das condições da estrada, se tinha chovido muito ou não, se alguém tinha tentado tapar os buracos, e geralmente alguns moradores costumavam fazer esse favor."
        Tomou mais um gole, esvaziou o copo. Desceu as escadas no escuro, pois já estava acostumado. 
        Chegando na cozinha tomou quase uma jarra inteira da'água. Depois abriu a porta que dava para o quintal e olhou para o céu, sentindo-se agradecido: O jambeiro possuía, entre o verde e o marrom daquela mixórdia, a única cor arroxeada do fruto temporão.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Céu Líquido Obsceno



        (Prólogo: Substitua "Palavrão" nos períodos politicamente corretos pelo palavrão de sua escollha.)

        Várias imagens surreais e coloridas feito um intervalo da tevê, como a insistência de quem produz arte para as massas, de quem prepara algo e divulga depois de muito editar, esperando que os comentários sejam moderados.
        Nada disso acontece, está completamente fora da realidade.
        Ainda bem.
        Por enquanto, estão a sofrer coisas que não viveram, fingindo ver o que não existe. Pior, acreditam-se injustiçados pela exposição da imaginação tosca confrontada com a realidade imaginada na própria cabeça, feito um diretor que inexiste fora dum programa e que proíbe de existir algo além do que pensa.
        Como se coubesse nesse mundinho que criou para si aquilo que não passa de um puta Palavrão.
        É isso o que fazem de nós, que por imitação somos obrigados a copiar.
        Será possível viver decentemente nessa Palavrão?
        -Eu tava no escuro da boate, Palavrão, mas vi muita gente seminua pintada de luzes estroboscópicas!
        -Finalmente conheci a essência do átomo! Palavrão, descobri que ele não existe realmente, é apenas uma teoria da essência das coisas, feito uma cor azul para designar um sabor!
        -A teoria da linguagem também não existe, pois justo na teoria é onde mais se usa a linguagem, como quem se detona tentando provar qualquer Palavrão!
        -No dia o calor faz suar o Palavrão; quando chega a noite esfria um pouco, então tomo um banho e me deito do lado da mina, para enfiar minha Palavrão na Palavrão dela, e assim nós gozamos a vida.
        -Sinto teu gosto ao lamber tuas pernas, até que encosto minha língua na tua Palavrão...
        Nada disso, nada de nada, nada.
        Ainda é cedo amor, mal começamos a vida.
        O mundo é uma mulher resolvida que procura o cara dos sonhos, acredita que o mundo é um moinho, onde ninguém tem razão: todos cavam seus abismos com loucura e cinismo, abismo que cavamos com nossos próprios pés.
       O mundo é uma Palavrão, Cartola...

quarta-feira, 9 de maio de 2012

O Dia Em Que Foram Felizes



        Acordou como quem acorda toda manhã, ainda cansado do dia anterior, mas com disposição suficiente para perseguir o que fosse, como se o ânimo nunca fosse esgotar.
        Nem ele sabia como, talvez apenas por hábito, mas cada aurora era um recomeço.
        Batiam pela terceira vez o cadeado no portão.
        Levantou-se em meio ao sono, na semivigília, semidesperto. No começo imaginava estar sonhando, mas quando saiu do quarto e viu a moça prestes a ir embora, sentiu uma falta de ar nos pulmões; piscou os olhos, não tinha palavras naquele momento. Sem se dar conta do inesperado despertar, a moça sorriu:
        -Oi, desculpa te acordar.
        -Desculpa nada, já estava acordado, foi mal eu te fazer esperar.
        -Estavas dormindo, isso sim! É a terceira vez que eu bato, quase vou embora pensando que não estavas aí.
        -É que esse é o único quarto onde não dá para ouvir cada barulho da rua, deixa eu te mostrar.
        Mostrou o quarto, que mais parecia uma caverna, em vários sentidos.
        Então a moça quis tomar um copo d'água por causa do calor, mas ele ofereceu café:
        -Queres só água mesmo?
        -Onde tem café?
        -Ainda vou fazer.
        Ela preferiu a água tirada do garrafão, a única bebida fria naquela casa onde vivia-se sem geladeira, como na pré-história. Aliás, poderia estar vivendo em qualquer lugar, sem água encanada, sem geladeira, saneamento básico ou o que fosse, não importava, pois quase nada tinha importância.
        Há dois dias sabia que ela vinha e no fundo lamentava não ser melhor anfitrião. Beijou seus cabelos, abraçou-a, sentiu o cheiro da mulher tão linda então arrependeu-se da má postura; embora desconhecesse os bons modos, ao menos procurava não comportar-se feito um animal.
        Ofereceu-lhe a água num copo limpo, pediu licença que ia tomar um banho e escovar os dentes, mas só depois que entrou no banheiro percebeu que havia esquecido a toalha. "Foda-se". Saiu ainda pingando, enquanto vestia a bermuda.
        A moça achou graça, aí ele disse:
        -Traz o copo, vamos subir.
Depois de conversarem o suficiente, mais ou menos uns cinco minutos, tiraram a roupa e se amaram, então foram felizes.
        O rapaz desceu para fazer um café, quando subiu de volta ela fumava um cigarro que tinha enrolado, ainda nua na cama:
-Não ficou igual aos teus, mas dá pro gasto.
-Deixa eu te mostrar como é que faz...
Tirou o cigarro de suas mãos e beijou-a, depois se amaram novamente.
E ao menos naquele instante como para sempre, estiveram felizes.

terça-feira, 8 de maio de 2012

De Todas as Maneiras



        Ela conheceu o rapaz meio por acaso e ficou curiosa.
        Culpa da salivação excessiva, do fado ou do que fosse, começaram a desejar-se. Os poucos minutos em que estavam juntos tornavam-se horas, depois dias e semanas.
        A conversa ia durando, os assuntos emendavam-se e sem que percebessem entravam por aquele terreno desconhecido, cujos caminhos levavam a uma praia distante, lugar de sol e água, mas que preferiam ignorar feito quem ignora uma paisagem bonita num quadro da parede que está ali há tanto tempo.
        Mas se era boa a distância, melhor era sua presença.
        De onde vivia podia enxergá-lo à vontade, mas foi preferindo sentir em volta de si os braços do rapaz, seu peito arfando, seu cheiro, seu hálito; uma brisa secando o suor dos corpos nus e exaustos sobre os lençóis molhados.
        Lá fora o barulho da chuva caindo nas árvores se fazia ouvir mesmo em meio à gritos e gemidos; uma lembrança inesperada fez correrem lágrimas por seu rosto, mas o sorriso expressava a pura felicidade de duas almas que se encontram, e o rapaz começava a perceber isso.
        Mas ela preferia esperar, pois se tinha esperado tanto!
        Os namoricos da infância, depois o primeiro compromisso sério, as primeiras decepções, até a total desilusão, de forma a não mais se deixar levar, insistindo em algo que poderia ser apenas uma poeira brilhante no céu da madrugada, tão linda de se ver, mas que findaria aos poucos até não deixar mais rastro.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

A Derrota da Cobra de Araque



        É muito difícil viver só. Por mais que se queira evitar qualquer convivência, às vezes é bacana ter um interlocutor, ao invés de ficar falando sozinho:
        "O que cê achou do jogo?, -Cara, achei meio assim, assado,é complicado esse time jogando nada!, -Esse ano então não levamos o campeonato?, -Estás louco? De jeito nenhum, ouviste essa goleada fácil, nosso time estava uma merda..."
        Quando o cara começa a conversar sozinho, mesmo em pensamento, já é algo estranho. Quando o cara começa então a discutir sozinho, em voz alta, vira um problema:
        -Pôrra, mas ano que vem esse time melhora...
        -Mas que nada! Pior é que sou eu mesmo dizendo essas coisas, vendo esses boleiros sem vergonha que não vestem a camisa! E a torcida na ilusão de sempre achar que no próximo ano vai ser melhor!
        -Égua, mas brasileiro tem memória fraca mesmo! Não tem uma trinca de anos que a gente levou o título nacional!
        -Não, tens razão, não dá para discordar deste teu argumento, mas é um time de futebol, não um museu! Não posso discutir comigo mesmo, nunca vamos concordar nisso que a gente discorda.
        -Isso mesmo, então te liga e baixa o tom.
        -Você que fale direito consigo, seu...
        Começou a estapear-se ele mesmo, até que correu para a cozinha perseguido por ele atrás de si.
        Pegou então uma faca, virando-se eviscerou o perseguidor, as tripas correram pelo chão como cobras, ele tentando botá-las de volta para dentro:
        -Estás vendo, seu filhadaputa, é isso que eu faço...
        Com ele mesmo.

domingo, 6 de maio de 2012

Pedras Portuguesas



      Feita de madeira carcomida, havia uma escada em frente à casa que caía aos pedaços. Devia subí-la para encontrar o Velho.
Batidas na porta.
"Entra", ele disse.
Ruim, péssima situação que não dá para descrever, pior do que a tristeza:
-Como vai? Você consegue entrar e sair dessa casa, meu Velho? Percebe que em breve tudo vai desmoronar?
O que estava acontecendo? Vítima da idade? Depressão? Pois se faltava algo, o que se podia fazer.
      Visivelmente faltava alguma coisa, como, como:
"Adivinha, moleque: estou naquele estágio da vida quando nada funciona sem os nossos por perto..."
Pedi que ele esperasse um pouco mais, mas ele não podia. Porque finalmente havia enlouquecido: vivia no futuro, eu no passado.
Um cara que eu conheci e que me deu tanta coisa.
Mas aquela personalidade não existia mais, visivelmente não era a mesma pessoa.
Minha dúvida era se eu ainda teria tempo e disposição para ajudá-lo.
Só que ele mudou demais.
Inacreditável alguém tão bom que em poucos anos torna-se o inverso do que pregou a vida inteira, fazendo todo mundo sofrer porque virou um extremo filhadaputa.
Mas assim são as coisas.
A gente torna-se exatamente o oposto do que queria ser.
Passam os anos, continuamos cegos, então com sorte a proximidade da morte fazia com que encontrássemos novamente a verdade.
Não que fosse o caso, mas é uma injustiça tão grande ver quem amamos enlouquecendo de uma vez e para sempre.
"Tenha coração."
   Eu lembro de tudo. Penso em você e lembro de tudo.

sábado, 5 de maio de 2012

Peso Sem Alma

      -Shhhh!
       -Pô, negão, tá pedindo silêncio por quê?
       -Shhhh, caralho, tu és surdo?
       Passou a viatura, eu não tinha percebido, depois que dobrou a esquina ele me fez levantar:
       -Agora confias em mim? Me dá o dinheiro e espera aqui.
       Dei o dinheiro, fingindo que esperava. Ele se afastou e comecei a seguir de longe o figura.
       Nesse tempo ainda andava com minha faca, qualquer coisa varava ele ou qualquer outro maluco, pois nego tinha que ser dez vezes pior que eu para me dar o conto.
       Melhor conhecer essa galera do que passar batido, já que maluco quando tem uma pistola se acha o dono do mundo. Mostrei a faca:
        -Vais guardar essa porra senão eu tomo ela de ti, estás doido?
        Olhei pra cara dele, não estava para brincadeira. Cheio de cicatrizes, dava pra ver que o vagabundo tinha sobrevivido a tudo quanto é coisa.
        Ele falou que agente tinha levado um "conto", então tivemos que armar uma "casinha".
        Assim é a vida: se maluco te fode, tu fodes o cara de volta.
        Tipo lei de mercado.
        Queria fosse só pilantrice, mas mistura aí a mesquinhez e cara-de-pau de quem não tem nada a perder, porque caboco safado é foda!
        Bem, tirando as safadezas e etecétera, a gente vivia em relativa harmonia, até o dia em que rolou a treta:
       -Passate mesmo quantos anos na cadeia?
       -O tempo que deverias ficar lá para aprender o que é respeito.
       Mandei uma piada(?), para quebrar o gelo:
       -Putz, mordeste grade esses anos todos e ninguém comeu o teu cú?
        Tinha sangue no olho do infeliz, mas no fundo era uma boa pessoa.
        Quando o juiz deu a sentença, quase vinte anos de reclusão, ele nem piscou, achou que merecia.
        Eu podia ter dito que foram só duas facadinhas, uma no peito e outra na garganta, mesmo à sangue-frio, num verme que valia menos que um cuspe. A gente passou uma semana de tocaia, dia e noite rondando a casa dele, tudo premeditado, até o dia em que o Negão viu ele saindo sozinho da garagem, distraído, achando graça no celular, então percebi que meu brother tinha razão: o cara era um traficante de merda, puta safado, deixando todo mundo fodido, depois pagava uma de patrão, chupando a pica dos viadinhos que enrabavam ele no motel.
        Achei foi graça vendo o cara estrebuchando no chão, com um talho enorme na garganta, pedindo pra não morrer. O som saía engrolado, misturado com o barulho do jorro de sangue da ferida aberta com a facada. Depois saí fora, pouco antes da polícia chegar:
        -Te devo muito, Negão, livraste minha cara.
        -Velho, te falei, não me arrependo. Já-já saio daqui, mas se pudesse traria aquele filhadaputa de volta à vida, só que não sou Jesus e infelizmente ele continua bem morto mesmo.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Impedida Liberdade



        "Seja humilde na alegria, moderado na tristeza, comedido na vida."

        Esta é a estória de um grande amigo.
        Ele nasceu na década de oitenta, estudou, trabalhou, fez tudo como o costume manda, mas reclamava demais, não conseguia sofrer quieto. A gente insistia:
       -Brother! Realmente não acredito que aches tua própria vida a merda que dizes que ela é! Tua situação é ótima, tem gente que só se fode, olha em redor...
        -Pôrra! Queres me comparar com a escória? Caralho, eu devia ter nascido milionário!
        Coitado.
        A capacidade de reclamar é inversamente proporcional à motivação para tentar fazer alguma coisa da vida, e diretamente proporcional à capacidade de colecionar desgraças..
        Deus sabe o motivo, mas ele encontrou uma mulher, ou foi ela que o encontrou, mas antes que ele pudesse escapar, ela engravidou.
        Então finalmente entendeu o que todo mundo sempre "teimava em me dizer, eu acreditando que era papo-furado, preso na minha concha, só escutando minha própria voz, reclamando..."
        Era feliz e não sabia.
        E sua esposa, como toda mulher que se preze, estava deixando-o louco. Aí começou a fazer merda atrás de merda, mais do que o habitual, e reclamava, reclamava, deixando os que realmente gostavam dele muito tristes, embora por um motivo qualquer não fossem capazes de desistir assim tão fácil:
        -Quando esse cara vai cair na real, meu Deus?
        Pois finalmente um dia, antes que fosse tarde, ele percebeu o motivo de tudo aquilo que estava acontecendo.
        Deu-se conta que desde sempre havia sido abençoado, pois tinha muitas vitórias mas supervalorizava os fracassos; que maltratava os próximos por pura ignorância; que nunca teria chegado lá se caminhasse sozinho.
        E que se continuasse insistindo em ser um cabeça-dura, as pessoas que o ajudaram de coração aberto achariam tal atitude repulsiva, não exitando em cobrar cada centavo devido na justiça.
        Percebeu que ainda era jovem, e que agindo dessa maneira, insistindo nesse comportamento que até ele sabia estar errado, só alguns teriam pena: mas a maioria sentiria grande prazer em vê-lo se foder, testemunhando do seu desprezo pelos que o amavam ao acercar-se unicamente de bajuladores, pois ao contrário dos ratos que nunca têm para onde ir, os bons já haviam abandonado o barco, e da margem a única coisa que poderiam fazer era lamentar e rezar, enquanto viam-no afundar lentamente junto da escória que tanto odiava.
        Pois estiveram na sua frente durante toda vida, ele achando que encobriam o sol ao invés de propiciarem a sombra aprazível de que sempre necessitou, caminhando a passos largos os gigantes, mas que infelizmente sequer era-lhes permitido olhar para trás.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Funk, Rock, Metal Alternativo




        Tinha acabado de chover.
        O bar estava lotado, as pessoas que passaram a tarde bebendo nas mesas da calçada estavam concentradas debaixo do toldo, e finalmente começavam a dispersar.
        Foi nesse momento que ela chegou:
        -Oi! Finalmente nos encontramos! Que som é esse?
        -Senta aí.
        Puxei uma cadeira e começamos a conversar. Ela podia até não gostar da música, mas pelo menos a cerveja ali tinha um preço justo e naquele dia estava vindo incrivelmente gelada. Perguntei:
        -Quer ir pra outro lugar?
        -Não, está bom assim.
        Frequento aquele bar desde a época em que alugava uma casa ali perto, o dono já me conhecia e vendia birita fiado, então estava tranquilo.
        Ela não falava muito, mas toda vez que bebia um gole sorria pra mim, piscava os olhos e botava a mão na minha coxa, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
       Não me lembro direito como aconteceu, mas em dado momento a gente saiu para passear, rodou a cidade, se desencontrou, nos encontramos novamente, até que sugeri irmos pra casa.
        E o cheiro dessa mulher, Deus!
        Deixou minha cama, os lençóis, a rede, a roupa, os caibros do teto e as telhas de barro, todos morrendo de saudade de viver aquela coisa maravilhosa de novo, mesmo sem saber o que viria a acontecer depois.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Intervalo do Silêncio




        Uma das coisas que ela gostava era passar as tardes nua na cama. E depois de três, quatro horas se amando, a gente finalmente conseguia conversar.
        Não que fosse importante falar qualquer coisa.
        Ela ficava calada, o olhar perdido.
        Eu às vezes queria saber o que ela estava pensando, só não tinha coragem de perguntar. Talvez por medo da resposta, era melhor ficar calado também.
        Durante certo tempo, quando a gente se encontrava, com poucas palavras nos satisfazíamos: ela não questionava nada de mim, embora eu soubesse tudo da vida dela.
        Pelo menos assim imaginava, até quando perguntei certa vez:
        -Olha como é engraçado: achando que uma ação vale mais do que qualquer palavra, tenho mais do que pedi; agora depois que te encontrei, além de escutar teus sussurros, preciso saber o que pensas.
        -Então diz, sobre o que queres saber?
        -Minha vida toda venho procurando por isso: me expressar sem utilizar palavras. Aí aparece você, que me entende perfeitamente e não me pergunta nada, não me cobra nada e tens a alma tão livre que te vejo deitada do meu lado na cama e fico imaginando: "O que será que ela pensa?".
        -Como assim?
        -Não que eu ligue, mas dá curiosidade de te ver olhar tão fixamente pra cima, como se fossem criar vida os caibros no teto...
        -Ha, ha, ha! Mas tu, hein? Sabia que também não faço idéia do que pensas de verdade? Mas no fundo isso não importa; advinha o que eu quero agora. Te dar um beijo!
        E me deu um beijo tão inesperado, que até uma estátua teria se mexido.
        Era impossível raciocinar naquelas condições:
        -Vês só! É isso o que eu quero dizer: dessa mulher incrível que és!
        -Ha, ha, ha, ha! Seu louco! Pára com isso e vem logo aqui tirar a minha blusa...

terça-feira, 1 de maio de 2012

Escrever Você



        Batiam palmas na rua. Após alguns segundos, percebi que era na frente de casa. Desci e vi a moça ao mesmo tempo em que ela ligava no celular, naquele sol da tarde, reclamando:
        -Até que enfim, né?
        Tentei explicar que a rua inteira batia palmas quando chegava em casa, acho que era uma espécie de mandinga, ou então eles também não tinham campainha como eu:
        -Se você vier outra vez, bate com o cadeado desse jeito, que eu vou saber que é aqui.
        O som metálico que o cadeado fazia ao bater forte na grade do portão reverberava por toda casa, sobressaindo entre os barulhos da rua, inconfundível, até me alcançar lá em cima. Eu poderia estar dormindo, no meio do sétimo sono, na semivigília, mas instantaneamente gritava: "Já vou!"
        Subimos.
        Ela sentou na cama e me olhou de um jeito calmo, como se esperasse alguma coisa de mim, mas eu não podia esperar: comecei a beijá-la e pedi que tirasse a roupa, o que ela fez prontamente. Enfiei a boca em seu seio  e ela começou a se contorcer, até colar seu corpo no meu.
        Havia árvores e luz do sol; nuvens que passeavam pelos ares, levadas pelo vento, derramando-se carregadas de chuvas.
        E o vento trazia as gotas que refrescavam, secando nosso suor ao mesmo tempo em que acariciava o corpo da mulher que me escolhera naquela tarde; então anoiteceu, aí ela segurou meu rosto com ambas as mãos:
        -Posso te dizer uma coisa?
        -Claro!
        -Tenho que ir embora, mas um dia eu volto...
        Me olhava meio que se desculpando:
        "Ela nunca mais vai voltar." pensei, "Outra vez, resista..."
        Mas tive que falar:
        "Depois de tanto tempo distante você aparece de novo na minha vida, isso é inacreditável! Quem espera a volta de alguém incessantemente, ressuscitado por este sopro frio e doce, aquela por quem sentimentos possuía, e que até hoje não passavam de boas lembranças? És capaz de reviver tantas coisas boas aparentemente esquecidas, ressurgindo com essa força maior que a gente nunca teve? Agora é de verdade, volta mesmo!"    

segunda-feira, 30 de abril de 2012

Rua Molhada



        O dia inteiro nublado.
        Vez por outra recomeçava uma pancada d'água, durando no máximo uma hora e depois tornando-se um chuvisco miúdo mas persistente, continuando nesse vai-e-volta até alta madrugada, só pararando após encharcar todas as pedras e o asfalto por onde vivessem plantas e por onde andasssem bêbados loucos, que por um nada percorriam aquelas calçadas irregulares, tomando cachaça e quedas.
        Nenhum carro passava, nenhuma pessoa se cruzava: tinha-se a impressão de que continuaria chovendo até o amanhecer, mais forte ou mais fraco, dependendo da força do vento frio e da umidade enregelante: existe quem confie na luz fraca dos postes, um último bêbado a caminhar pelo meio da pista deserta, mas que admira o quê?
        A cidade estava parada aquela hora, nada esperava-se dela, nem ela esperaria nada de si, devido tanta água caindo, fenômeno atmosférico deveras rotineiro, incapaz de acordar o sono de quem dorme sob telhados preguiçosos, ouvindo apenas um tamborilar enquanto aconchega-se mais no calor dos cobertores.
        Lá fora gotas suicidas estouram frenéticas nas marquises, nas calçadas, no asfalto, desgastam cimento e ferro, fechando nossos olhos sob aquela luz, sob os elementos água, fogo, vento, terra, o que nos impede de sentir algo além dum frio do caralho, mas é como se por instantes houvesse sentido em algo além daquilo, apenas por estar ali admirando o lugar, sentindo, andando, protegendo-se do frio da escuridão.
        Iluminado pelas luzes precárias dos postes em curto-circuito; pelas lâmpadas sujas que piscavam tão amareladas que era impossível enxergar um palmo à frente; e olhando pro fim da rua, via-se que todos os postes estavam simplesmente apagados.
        Um aguaceiro entre moderado e forte caindo ininterrupto fazia dois dias.
        Transformadores explodindo como bombas, lançando faíscas em todas as direções, então a única solução é seguir em passo acelerado, tentando se proteger do fogo e da água que caem juntos do céu.

domingo, 29 de abril de 2012

A Cidade e o Estado



Movia-se lentamente, mas quem aproximasse os olhos notaria tratar-se apenas do efeito de conjunto; vista isolada, era como movimentassem-se ali, todos os dias, cerca de um milhão e meio de pessoas; trabalhando, passeando, estudando, exercitando, bebendo, fumando, transando, drogando, amando.
        Mas a maioria era como a cidade: arrastava-se por entre montes de sujeira e entulho, talvez confiados que algum dia aparecesse quem botasse na rua um asfalto cobrindo os buracos; passasse cal no muro e no meio-fio da calçada, só que ao invés disso eram atacados por onças e jacarés. Enfim, queriam um serviço público equivalente ao preço cobrado pelo governo, mas a maioria da população achava desnecessário preocupar-se disso.
        Interessante o desenrolar das teorias que poderiam justificar a mais ampla gama de atitudes, desde a completa imobilidade até a neurastenia: o Estado era Leviatã; se Maomé não ia até a montanha, a montanha viria à Maomé; Deus escrevia certo por linhas tortas e faz por ti que Eu te ajudarei.
        Tinha quem prometesse ir todo ano na corda do Círio, de joelhos! Um outro disse que ia distribuir sopa pros famintos. Menos aquele que a renda atual não permitia.
        -Égua, véio! Mas se eu compro por cinco tenho que vender a déiz, falou?
        Assim funcionava o nosso pensamento: tentava justificar qualquer ato, por mais pilantra que fosse, passando sempre um verniz novo por cima, já que o sol esturricante podia secar qualquer coisa em poucos minutos, deixando os  objetos brilhantes: alguns chegavam até a cegar com o reflexo do meio-dia, embora sob a camada de resina restasse apenas sobras de madeira podre, cheia de cupins.

sábado, 28 de abril de 2012

Região do Guajará


Tentavam caminhar para frente, a maioria de nós perdidos: alguns arriscavam-se pelo asfalto, outros protegiam-se na sombra das poucas árvores que ainda restavam pelo subúrbio, mirradas e secas, misturando-se na vista com a poeira do ar. 
        Nem bichos, nem pássaros; naquela secura ninguém encontrava o rumo; o calor excessivo tornava qualquer esforço demasiado inútil. Além do que confundia o pensamento um eterno suor escorrendo pela testa, fazendo arder os olhos das pessoas.   
        Faltava ali uma brisa, uma corrente de ar que amenizasse a quentura, que  livrasse daquela dor nos pés e do pó cinzento que impregnava tudo, criando uma cortina que encobria os objetos.
        Talvez o ofuscamento causado pela luz impiedosa provoque alucinações, mas é difícil acreditar que alguém faça coisas inconscientemente por causa disso. 
        O sol do meio-dia podia dissolver as formas dos objetos, mas qualquer um encontraria alívio vil sentando à beira de algum dos inúmeros cursos d'água existentes no lugar, para refrescar-se.
        Passava o tempo e passava o calor, mas o sol de todos os dias novamente implacável impedia-os de ver isso, assim só pensavam em botar dentro da correnteza as pernas.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Acontece

Teve um tempo em que ela não queria mais nada, pois havia construído um muro em volta de si.
       Achava que a vida não tinha valor, que era mais fácil foder os outros antes que eles fizessem o mesmo com ela.
        Mulher esperta, que por acaso encontrei outro dia na rua:
        -Como anda a vida?
        -Nem uma coisa nem outra, mas daquele mesmo jeito...
        Em outras palavras, continuava batalhando um emprego decente, estudando a faculdade, conhecendo pessoas diferentes a cada dia, procurando alguém em quem confiar.
        Mas reconhecia que era difícil: só encontrava no caminho quem não prestava, quem fazia o mal e sentia prazer nisso, o que a deixava triste.
         Embora concordando, não podia deixar por menos:
        -Eu sei como é foda descobrir que toda essa gente no fundo não presta.
        -E agora finalmente já sei como fedem...
        -Talvez estejas enganada: ainda vais encontrar alguém que te ame de verdade.
        Ela assentiu com a cabeça, mas seu semblante era de completa desilusão:
        -Não espero encontrar quem seja! Quem eu amava, sem mais por que me deixou, e vens com esse papo furado? Ora vá...

quinta-feira, 26 de abril de 2012

As Musas



        Começou comigo deitado na cama em casa, pensando:
        "Pôrra, que vida de merda! Fazendo pra caralho o que gosto, mas mesmo assim sem ninguém do meu lado nem pra conversar! Jesus Cristo!"
        Nesse exato momento meu irmão me liga, avisando que deu tudo certo e vai ficar tudo bem, e que eu devo almoçar com meu pai amanhã de manhã.
        Desligo o telefone, alguém está batendo na porta de casa, mal me vê descendo a escada e vai perguntando:
        -Estás ocupado?
        -Não.
        -E o melhor sexo da tua vida, já fizeste?
        A chuva começou a cair, tocou de novo o telefone, atendi:
        -Abre que estou aqui na frente, me molhando!
        Minha ex-namorada que veio de surpresa. Quando subiu a escada e viu a moça nua na cama, foi logo perguntando dela, enquanto ia tirando a roupa:
        -Ele aguenta com nós duas?
        -Até com três!
        Nesse momento nada podia dar errado, então o telefone toca pela última vez naquela noite:
        -Mas quem está falando?
        -Abre a porta e vê...
        Mas ela mesma abriu. Segurava o cigarro entre o dedo indicador e o médio da mão esquerda, sempre assoprando a fumaça por cima do ombro direito, pois embora cultivasse certas manias, também odiava o cheiro do tabaco.
        Impossível de acreditar, parecia um sonho!
        Deu o último trago, largou o cigarro, tirou toda roupa, deitou com a gente na cama, linda, linda; me deu um beijo na boca, depois disse:
        -Agora começa...

quarta-feira, 25 de abril de 2012

O Céu Azul

        Mar cinzento. As dunas carregadas de areia cegante porque naquele horário batia tanto sol...
         -Aaaaaarrrrrrgggghhgshagshahhhhaaaa...
        Morreu, ou quase, o homem que deu esse grito primal: queria encontrar qualquer coisa fora do tempo, como a própria morte:
        -Temos que voltar!
        -Mas ainda quero nadar nesse marzão!
        Fingindo que não tinha medo da morte, parecendo não se preocupar, assim comportava-se.
        Logo soubemos o quanto estava atemorizado pela expectativa da chegada da inesperada das gentes.
        Houve um momento deveras indesejável: eu acompanhando de longe ele nadando, percebi que ali já não dava mais pé; justo quando o cara tinha perdido quase todo fôlego:
        -Pôrra, filho! Foda que aqui não dá mais para alcançar o fundo...
        -Fica frio, lembra das técnicas.
        No caso, existem inúmeras técnicas para permanecer na superfície do mar: boiar; nadar cachorrinho; bater as pernas na vertical e os braços na horizontal; segurar o pulmão cheio de ar durante trinta segundos, expirando e inspirando rapidamente, mas sempre mantendo a respiração presa no mínimo durante trinta segundos que o tronco permanece na superfície;
        Além da técnica mais arriscada: hiperventilar-se, depois soltar todo ar dos pulmões de uma vez, imergindo assim rapidamente, até tocar o leito arenoso, tomando o maior impulso possível em direção à margem, mas sempre procurando ir pra frente, guardando um pouco do ar para alcançar a superfície.
       Certa ocasião em que estando muito longe da margem, acontece de termos nosso último pensamento tão pouco coerente que respiramos o ar da atmosfera agradecendo pela última vez.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Meu Grande Amigo




        Estrôncio é o nome de um elemento químico da tabela periódica, e sabe-se lá por quê, era também o apelido dum figura que eu conhecia.
        Um certo dia ele passou do meu lado no corredor, e eu sem mais aquela, só fiz peguntar:
        -E aí, seu Estrôncio, como vai essa vida?
        -Chega um instante, deixa eu te contar...
        E me segurou pelo praço e começou a desfilar um ladainha tão chata, que me deu vontade que ele tivesse um colapso cardíaco ou qualquer coisa que o matasse instantaneamente e largasse do meu braço.
        Eu lá escutando do custo de vida, do preço do aluguel, do choro das crianças, das reclamações da mulher, das cobranças, de tudo; já achando que aquele merda era o último dos caras do mundo e um tremendo filhadaputa por me segurar daquele jeito, me fazendo ainda por cima perder tempo, mas foi quando ele começou a falar umas coisas que eu nunca tinha escutado antes:
        -Mas agora fora isso, o mais importante é...
        Falando então do que era realmemte importante em sua vida, de onde tirava forças para recomeçar cada dia melhor que o anterior, era como se houvesse um plano traçado em sua mente do começo ao fim, restava apenas continuar a executá-lo.
        Sua existência naquele exato momento era bem diferente de seus sonhos, e mesmo assim ele perseverava.
        Se ia dar errado, ele não podia saber, mas pelo menos continuava tentando, depois vendo minha agonia encerrou o papo com uma frase que não entendi bem:
        -Fique peixe, fique cru, estamos neste planeta agora.
        Aí pensei: "Puta cara esse Estrôncio, quer dizer...".
        Ia parar de ser safado com ele, então toda vez que a gente se encontrava passei a cumprimentá-lo pelo nome próprio.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Foda-se o Mundo


       

        Existiam várias pessoas no planeta, e eram tantas que nem todas podiam se conhecer(?)
        Se hoje é possível pensar na coisa mais óbvia que salva o caráter do ser humano.
        -O pensamento?
        -Agora pensa mais um pouco...
        -Jesus.
        O que me liberta da minha prisão, apenas num sentido metafórico, por enquanto ainda estou livre, faço o que gosto além de ser minha profissão. Apenas ocasionalmente ganho dinheiro, mas não importa, só me importam, além dos sabores, as pessoas e o sabor que as conduz.
        -Prova deste molho.
        -Humm...
        -Daqui a pouco vai estar melhor...
        Depois de duas, três horas de fogo baixo, o molho estava uma delícia: um aroma suave passava e entrava pelas narinas, um sabor conhecido identificado pela memória, enquanto retido pelo crivo de aço sobrava apenas uma borra preta,  deixando passar só o líquido aromático estupefaciente.

domingo, 22 de abril de 2012

O Circo Desconhecido



"Olhando no teu rosto quero de ti o que a gente ainda não descobriu, justamente porque nos falta ainda muita coisa."

        De vez em quando aparecia um circo na cidade, dentre vários.
        As pessoas adoravam palhaços, domadores, trapezistas, equilibristas, mágicos, enfim: qualquer criatura que possuísse habilidades suficientes para figurar num circo mambembe.
        Como aquele que apareceu da última vez por aqui; onde o equilibrista escorregou, o domador perdeu os braços e o Homem-Bala quando caiu no chão já estava sem uma perna.
        Foi num dia em que todo mundo via acontecendo tanta cagada, continuando impassível enquanto o cara se ajeitava no canhão, como se aquela fosse sua única obrigação: arriscar a vida pelo espetáculo.
        Mas acontece que o circo é o circo.
        A gente olha pra trás, bate uma saudade na hora de partir, mas só aceita partir quem quer passear pelo mundo sem ligar pra liberdade.
        Gostar de quem se ama, viver feliz com aqueles que estão do nosso lado, independentemente de onde estiverem, porque o pensamento não conhece fronteiras.
        Você diz que nunca mais vai voltar, mas um dia a gente volta.
        Mesmo depois de rodar meio mundo e de descobir tanta coisa desnecessária para você, sabemos que agora finalmente, rodando durante todo esse tempo em vão, novamente nos encontramos frente a frente, olhos nos olhos.

sábado, 21 de abril de 2012

A Ponte e o Egoísmo

 O rapaz dizia que sofria muito mais do que o comum dos mortais, comparando-se com quem vive sem um puto, trabalhe o mês todo sem folga, e ganhe menos de um salário todo dia trinta:
        -Mas eu ganho um salário mínimo!
        -Se estou ganhando menos que o mínimo, é porque só tenho o segundo grau!
        -Tenho três graduações e ganho menos que o mínimo, do mínimo do mínimo, mas trabalho igual o Carvalho!!!
        -Quem mandou não estudar!
Culpa sua nascer filho de pai rico que empreste quinhentos mil para abrir um negócio, porque tem semianalfabeto que vai no banco e pode dispor dessa grana graças aos genitores, mas é gente que tem o segundo grau só pra constar: se tiver terceiro grau, geralmente curso técnico de no máximo dois anos, foi de pagar faculdade particular, que só se preocupa em reprovar o "GRADUANDO", caso ele não fique devendo o boleto mensal.
Fora os que fazem faculdade pública, que envolve baixa política, envolve picuinhas regionais e principalmente, onde se ajuntam um bando de babacas que se acham o último chocolate do pacote.
        Infelizmente, nível superior no Brasil pra maioria é uma piada. 
        Pra mim é só tristeza, não vejo a menor graça em fazer parte duma turma se achando o caralho, no final úteis apenas como massa(?) de manobra, já que não passam de alienados, .
        Leia a Bíblia, estude bastante e seja honesto com seu trabalho.
        Fora isso não existe saída.
        Acredite: até quem não vale a saliva que cospe, não se acerca de gente mau-caráter porque sabe que de uma forma ou de outra ao lado de gente assim vai acabar se fudendo no final.
        Tem maluco com veneno ao invés de sangue circulando nas veias, cuja persona queremos distante: gente que a cada momento só planeja maldades, pensando a cada segundo em neuroticamente fazer o mal pros outros. 

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Cabano Comum


         A moça caminhava ao lado do rapaz e pude ver que ambos bebiam de mesma taça, parecendo não se  importar com horários e caminhos, sem destino: apenas curtim aquele momento e seguiam sem rumo, provavelmente em direção à praça.
Enquanto isso bebiam, e o rapaz vez por outra tirava a rolha e completava a taça que traziam, e brindavam segurando a mesma haste: só depois que bebiam do líquido vermelho brilhante é que se beijavam e começavem a rir, depois continuavam a caminhar.
Sentaram ao lado do cemitério; loucos brindaram aos mortos e ficaram sérios novamente; completaram a taça com a última gota de vinho e fizeram um brinde para Jesus Cristo; depois abaixaram as cabeças e calaram-se.
Até que a moça falou:
-Como é meu nome?
-Não sei.
-Também não sei o teu.
-O meu já esqueci faz tempo.
Ela pediu para ver a identidade do rapaz, e ele mostrou o documento e realmente não havia nada que o identificasse: apenas um monte de letras ajuntadas em palavras, debaixo de um rosto que nunca fora o dele.
Ela olhou para aquilo e perguntou:
-Esse na identidade não és tu, como é que andas assim?
-Apenas acredito que sou este aqui...

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Três Minutos

     
        Uma idéia vale mais do que uma imagem e mil palavras.
        Se da mesma forma que para ser fotógrafo não basta uma câmera de celular, para começar a escrever você acha que precisa do quê?
        -Ser alfabetizado!
        -Saber português!
        -Falar outra língua; no momento de preferência inglês ou mandarim.
        -Fumar maconha e beber cachaça!
        Não.
        Antes de tudo, evitar a babaquice.
        Depois de tentar deixar de ser babaca, esteja sentado, porque é muito esquisito escrever em pé na fila do banco, então pese seu coração, deixando de lado todo oportunismo imbecil e inútil, então começa o sentimento a falar mais alto, entre tantas vozes gritando em nossa cabeça.
        Existem outros caminhos para fazer o que se gosta, inclusive alguns que não foram descobertos ainda, o que nos serve de estímulo para não parar nunca e perseguir sempre o novo. Ou o antigo, dependendo da moda do momento.
        Aliterações, ritmo, rimas e repetições nunca são sempre bem-vindas, pois podem confundir quem lê, causando a impressão de que apenas quem escreveu conhece sobre o que estava escrevendo.
E o cheiro da comida significa que você não tem mais tempo, acabou.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

A Volta de Rosa



         Num dado momento, apenas as células cerebrais que interagiam com o álcool dariam conta de estruturar um pensamento, que ocasionalmente se expressava sem palavras, já que o autor esquecia do que queria dizer.
         Mas algo permanecia ali no fundo: um sentimento confuso que se misturava com os outros tão fácil quanto seria misturar palavras para completar uma lacuna na língua nativa.
        A palavra mais longa do mundo é a junção de outras vinte, mas não significa nada.
        Já para o que tem significado não se encontram palavras.
        E acredito em Deus, assim como acredito que choveu.
        Mas ela que me faz sentir assim, percebendo o quanto sou ignorante permanecendo ignorante, e isso não tem preço...
        Para quem quer continuar sendo um babaca, existem todos os sentimentos ruins misturados num só.
        Você pode fazer discursos a vida inteira, tentando ignorar o que acontece por dentro, mas algo que não dá para ser expresso com palavras acaba sendo dito nas entrelinhas:
        -Quanto é necessário sofrer até cessar o que nos atormenta?
        Quem ignora a resposta deve ao menos ter caráter.
        E olha pro céu: vê só como a vida é leve enquanto chove...

terça-feira, 17 de abril de 2012

Resista


 -Chega! Põe esse copo na mesa que você já bebeu demais!
        -Só mais uma dose.
        E continuou até esvaziar a garrafa.
        Completamente bêbado, teve a idéia de sair para comprar mais birita no mercado, mas não conseguia encontrar a chave do cadeado do portão.
        A solução foi pular o muro: se desequilibrou e na queda acabou torcendo o pé, mas não sentiu na hora pois encontrava-se completamente anestesiado pela cachaça.
       Saiu andando pela rua cambaleante, trazia dinheiro suficiente para comprar mais dois litros de aguardente, então voltaria pra casa e continuaria bebendo o restante da tarde; eram esses seus planos para aquele dia de folga.
       Mas depois de dois quarteirões começou a sentir-se mal, uma tontura, deu mais uns passos, encostou-se num muro de um terreno baldio e vomitou, além de um líquido amarelado de bile, o que parecia serem pedaços de sua garganta.
        Sentia agora uma moleza. Foi escorregando até o chão, inclinou a cabeça sobre o peito e começou a viajar de olhos fechados em pensamentos alcoolizados absurdos  :
        "Impressionante. Parece que hoje em dia todo mundo toma drogas ou 'alguma coisinha' para suportar o dia-a-dia! Mas com certeza não sou viciado, quero dizer, isso que eu bebo não é droga, não! Vende em qualquer lugar e não precisa de receita,além do quê dizem que é um produto natural..."
        E bebendo continuou a se enganar.
        Seu organismo aos poucos foi falhando, até que depois de um tempo o sofrimento finalmente acabava: deitado num corredor de hospital público, há três dias sem receber o mínimo atendimento, morria a criatura de cirrose hepática.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Nunca Saberemos




        O que tenho todo dia de fazer?
        Acordar.
        Escovar os dentes e sair.
        Mas fora isso, quando chego e viajo nessa estória, é que penso o quanto a vida é doida e estranho o que acontece com a gente por culpa da vontade dos outros.
        Talvez venha o momento em que a gente se canse das coisas, ao ver que não adianta fazer nada para mudar nossa realidade, pois somos o que somos.
        E aquela moça?
        Vivia mais ou menos a uma légua de distância, mas parecia que vivíamos em hemisférios diferentes.
        -Arrrghhhhhhhh! Porque então você não liga pra mim!
        -Ligar? Eu queria você aqui do meu lado, fazendo o que fazes de melhor.
        -Isso não poderia ser menos superficial pra você?
        -O que queres ouvir?
        -Diz o quanto sou linda, que sou o amor da tua vida!
        -Realmente és linda e gosto de ti, mas amo outra...
        -Ora, então vai te fuder!!!
        Depois disso desligou o telefone na minha cara e nunca mais voltou a atendê-lo.

domingo, 15 de abril de 2012

Max, Poeta da Estrela

           "Santo Pai Lázaro, católico de todos os Armênios."

        Conhecíamos-nos desde pequenos.
        Não sei o que fazer numa hora dessas.
        Que ridícula a mente por desconhecer a beleza de termos um coração!
        Tento entender mas no fim das contas não é possível ter idéia do que está acontecendo; a única forma de contribuir é continuar trabalhando.
        Mas como vou (vôo, vôô, vol)  saber o que se passa nesta cabeça? É solitário, é absurdo, mas necessário.
        Como as coisas que você faz de propósito e diz que é sem querer, dando uma de zé-sonso.
        Tendo que aprender a viver na realidade e descobrir que esta não nos faz mal; muito pelo contrário: melhora-nos a existência.
        "-Como isso pode ser ao menos lógico? Como podes escrever essas barbaridades???
        -Casca de alho!"
        Na verdade o que sentimos não tem lógica nenhuma; ou talvez até tenha, às vezes...
        Mas é nessas horas que dá aquela vontade de dizer um baita palavrão, tipo:

sábado, 14 de abril de 2012

Fictícia República Democrática




         Certa democracia em latinoamérica, depois de um processo civilizatório(?) intenso, passou a figurar no mapa, como um vira-lata admitido numa exposição.
         Infelizmente era um país corrupto governado por pilantras que chegavam ao poder graças ao dinheiro de campanhas que diziam o quanto eles eram bacanas e o que fariam pelo povo quando eleitos.
         Chegando ao poder acontecia de serem exatamente o contrário do que prometiam.
         Mas a maioria da população era culpada por ser muito idiota de a cada dois anos votar nos mesmos safados de sempre, não se importando com o que eles fizessem nos anos seguintes.
         Talvez pela falta de memória crônica, talvez pela puta mídia em cima, talvez por qualquer motivo que fosse, mas faziam merda sempre e por isso continuavam na merda.
         As leis eram bonitas no papel mas não funcionavam. Ops, funcionavam sim: para foder os que já estavam fodidos, beneficiando(?) assim as bestas que após a morte certamente iriam encontrar seus parentes no inferno, ou seja, políticos e quem votou neles em geral.
         Mas adiantava criar novas leis num país assim?
         Claro que não, pois sempre haveria espaço onde alguém mal-intecionado poderia circular, apenas para usar um eufemismo do quanto a população desse lugar era cheia de gente que não valia nada

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Que Vontade

     
        Depois de muito lutar, tinha o corpo destruído: a costela quebrada perfuraria-lhe o pulmão, terminando por matá-lo. 
        Até então, ele não era mais capaz de perceber o próprio sofrimento.
        Aos poucos as coisas foram mudando: primeiro os legumes a as carnes estragaram; depois até a comida recém-feita tinha cheiro, e consequentemente o gosto, de coisa podre.
        Mas não havia comida estragada por perto: apenas o olfato falhava, o paladar abandonava. 
        Perdia a capacidade de sentir o gosto do que tinha gosto bom, ao mesmo tempo em que esquecia o sabor de tudo aquilo que amaou e no que acreditava. 
        Assim sua vida ia-se tornando apenas amargor.
        O pai tinha um ditado: viver com porcos acostuma o fedor. 
        Então tinha que fazer um esforço redobrado tentando não virar porco.
        Mas trabalhava como cozinheiro, e sem o paladar esforçava-se por recriar o sabor do que tanto gostava apenas de memória, pois fisicamente era agora incapaz de perceber o sabor de cada prato: a nuance de cada ingrediente contribuindo para o efeito de conjunto tornara-se conflitante ao invés de inebriante.
        Podia olhar, tocar, sentir, mas faltava um sentido superior, justamente do qual dependiam todos os outros.
        Mesmo assim continuou cozinhando, embora nada mais fizesse sentido.
        De suas mãos saiam pratos maravilhosos como na melhor lembrança de nossas vidas fugazes: daquilo que um dia aconteceu e sabe-se lá por que sumiu de nossa vida.
        Embora não tivesse a mínima esperança de um dia conseguir reproduzir novamente aquele aroma, aquela cor, aquela textura, continuava tentando.
        Como alguém apaixonado que insistia, pois insistiu a vida toda, mas acabou traído pelo próprio olfato.