quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Crime de Horror

        Amava? Odiava? Quem? A si e ao pai que a abandonara, a mãe cheia de caprichos, a irmã de quem tinha ciúmes e o próprio filho, prova viva de um fracasso.
        O pai conhecia por fotos, mas mesmo assim não prestava, pois era o que a mãe sempre dizia, que todo homem não prestava. A irmã achava que tinha nascido junto com o mundo, que bastava crescer os peitos e a bunda para tornar-se uma mulher de verdade. Certamente é mais fácil trilhar um caminho já percorrido do que se perder pelo desconhecido. E ela, o que fazia?
        Seu filho era do homem que a trocara por outra, quem sabe outras, muitas, várias, não importava. Nada valia preocupar-se com quem não era mais seu. Tinha agora um longo futuro pela frente a estender-se por gerações. O próximo passo, assim como os anteriores, irreversível em direção à cova, mas desta vez com a consciência do fim desejado, educar e alimentar a prole.
        "Vivemos na escuridão. Apenas um Deus poderia encontrar o caminho."
        Ela foi procurar o Deus que daria sentido aos seus atos, mas como mulher procurou-o no único lugar onde estava acostumada: nos outros ao invés de dentro de si. Num marido, num filho, num pano rasgado e um monte de tijolos, num sonho:
        -A porta está aberta! Convido todos a entrar!
        Mas parecia satisfeita. Milênios de cultura, sabedoria e civilização e ela ainda se fingia de sonsa.
       Orgulhosa de ter encontrado e poder mostrar aos outros como supostamente fora fácil. Assim como quem dá uma topada num pedregulho e pragueja de dor, alardeava a felicidade de um dedo do pé quebrado:
        -Não estou chorando, isto são lágrimas de alegria! Ha ha ha ha ha ha...
        Algo em seu coração queria ver o filho morto, bastando para isso enforcá-lo numa árvore, pendurar-se por misericórdia em suas pernas, o peso extra trazendo-lhe um fim rápido e indolor. Viu o rostinho congestionado pelo sangue pondo a língua para fora, até findar-se a respiração num último espasmo que não chegaria a se completar.
        "Chorem os céus. Que as lágrimas encharquem esta terra e que passado e futuro sejam tragados pelas ondas do esquecimento. Que não sobre memória ou esperança onde agarrar-se ante a tragédia dos homens: que castigo pior que as trevas da morte merecemos pela nossa iniqüidade?"

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Jogue Futebol

        As manhãs nubladas são as melhores. É possivel ficar cinco minutos parado sem começar a suar feito um porco numa sauna. Algumas pessoas pensam melhor quietas no seu canto, outras enquanto caminham, outras ainda enquanto bebem ouvindo música e batendo papo com os amigos, como Joelderson Barroso, sentado conversando no bar há mais de meia hora sem entender qual o assunto da conversa:
        -Pois eu sou assim, quando digo é na lata!
        -E eu odeio falsidade!
        -Peraí gente, que é minha mãe ligando e eu disse que ia estudar na casa da Lia!
        -Na minha casa? Se ela ligar vão dizer que eu fui pro cinema contigo, Islene!
        -Comigo? Então vou dizer que a gente foi assistir aquele filme de vampiro com aquele pão, como é mesmo o nome dele?
        -Só se for pão de hot-dog, porque ele adora uma salsicha!
-Huá, huá, huá, huá, huá! Esse Alfredo é foda! Garçom, traz lá uma cerveja e diz que é pro Ricardo!
        -E outra dose dessa mesma cana, faz favor...
        O legal de tomar birita rodeado dos amigos é que você pode aprender muitas coisas, principalmente se gostar de piadas sujas, fofocas e segredos de todos os tipos e tamanhos, no caso de haver apenas homens na mesa, e de voltar pra casa sozinho. Pois aquela mesa era uma vergonha, todo mundo já tinha ficado com todo mundo, e quando o papo começava a tomar esse rumo significava que era melhor ir embora:
        -Lembras quando ficavas com o Alfredo, lia?
        -Mas na época eu ainda não conhecia o Ricardo, né amor?
        -E foi o Joelderson quem nos apresentou, porque eu tinha ficado afins da Islene que era namorada dele!
        -Mas logo que a gente começou a ficar tu pegaste ela, né, seu safado!
        -Huá, huá, huá, huá, huá! E ela ainda estava contigo, Joelderson! Se tem uma coisa que eu gosto na lene é que ela te botou um par de chifres! Huá, huá, huá, huá, huá...
        -Não fala assim, Ricardo, não foi nada disso! A gente tinha um relacionamento aberto, não é mesmo, Joel?
        -Será que vocês poderiam mudar de assunto, faz favor...
        Outra coisa super divertida é lembrar os foras e traições do passado. Ou não, tem muita gente que sente prazer em espezinhar os outros, já que pimenta no cú alheio não arde:
        -Huá, Huá, huá, huá! Olha só, ele ficou puto! Huá, huá, huá, huá, huá!
        -Qual é, mermão, é só brincadeira do Ricardo! Vais dizer que ainda és afim da Islene?
        Ele encarou os olhos sonolentos e meio bêbados da amiga ao lado, quase que sorrindo para ele, aguardando a resposta com uma contração estranha no canto dos lábios, e convenceu-se de que só tinha uma coisa a fazer:
        -lamento aí galera, mas lembrei que marquei uma bola com o pessoal da rua, valeu pela companhia, taí a minha parte. Tchau Lene e Lia, falou seus pilantras...
        -Já vais embora? Esse Joelderson é mesmo um camarada... Cuidado com o chifre para não furar a bola! Huá, huá, huá, huá, huá, huá, huá, huá!

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

O Cachorro e os Ossos

        Minha saudade era grande, maior que o Guajará, maior que um prédio de trinta andares, maior que ganhar de sete a zero. Fui atrás dela nos locais em que costumávamos frequentar, mas em nenhum deles foi-me permitido entrar novamente:
        -Mas eu preciso falar com ela!
        -Ela não está aqui! Seguranças!
        Na rua então era impossível achar qualquer coisa fora a imundície de sempre. Passei no mercado e peguei a birita mais escrota, sentei na sarjeta e comecei a encher os cornos de cachaça.
        -Fala, truta! Manda um gole pro seu amigo...
        Um desses senhores de baixíssima renda e sem problemas de IPTU sentou-se ao meu lado, mostrando um copinho de plástico que enchi só até metade:
        -Esse teu copo tá rachado.
        -Eu sei.
Disse e virou  de uma vez o goró que poderia matar um  adulto saudável, mas nele não fez nem cócegas. Perguntei se não queria mais um pouco e ele disse que achava aquilo tudo uma merda; a bebida, o próprio fedor, a vida:
        -Estou dizendo, é tudo uma merda mesmo. Queres ouvir minha estória?
        -Concordo com o senhor, mas não, muito obrigado, tenho que encontrar alguém e...
        -Não faz mal, conto assim mesmo, é difícil encontrar quem me escute! Bem, eu tinha uma empresa lucrativa e uma casa muito boa, carro do ano, empregados e essa pessoa que eu casei porque fiz um filho. Pois bem, a grana foi diminuindo, tive que demitir gente, me deseperei, comecei a meter coca pelos tubos e quase enlouqueci. Mas antes que acontecesse o pior, minha mulher fez a gentileza de me internar e conseguiu que um juiz me interditasse enquanto eu estava na clínica, para que ela ficasse com tudo o que eu tinha. Quando saí e voltei pra casa, ela me expulsou porque tinha colocado outro cara pior que eu lá dentro. Acabei de vir de lá, onde fui pedir um prato de comida e terminei ganhando um soco.
        -Putz, que merda! Toma mais um gole...
        -Mas o pior é ter que tomar essa porcaria! Isso é um lixo!
        O mendigo tinha razão. Porra, tanta coisa boa por aí e eu tomando uma cachaça horrível ao lado de um desqualificado em quem não tinha o mínimo interesse, com  pena de si mesmo porque não passava de um bosta? Saudade é uma coisa, idiotice é outra.
        Fui pra casa fazer qualquer coisa, deixando a birita para o infeliz que continuava a se lamentar da injustiça do mundo, mas que quando me viu indo embora despediu-se com uma pérola de Sabedoria da Lata do Lixo:
        -É como eu digo, camarada: a vida é uma merda mesmo, mas tem certas coisas que só fazem deixá-la pior...

domingo, 27 de novembro de 2011

Monte dos Sonhos

        O vento era capaz de derrubar as pessoas, deixando-as prostradas com o corpo dolorido, os ossos gelados e a respiração difícil. Mal insidioso que se não fosse logo tratado levava-as à morte em menos de duas semanas.
        Era estranho naquela terra como o fato ocorria: geralmente pelas sete, oito horas, quando a escuridão já estava completamente instalada, vinha aquele primeiro pé de vento que era considerado o mais perigoso: continha o germe da moleza e da preguiça invencíveis, contaminando mais facilmente quem se  arriscava abrindo as janelas exatamente nesse horário.
        Durava cerca de quinze minutos o miasma travestido de brisa, cujos sintomas vinham sendo notados em parcela cada vez maior da população. É possível que o efeito deletério dessa massa de ar seja acumulativo, então daqui algumas gerações todos nós estaremos prostados no fundo de uma cama, e será a extinção da raça humana.
        Não sabiam ao certo se o vento deixava mesmo as pessoas doentes. Nesse caso havia uma solução, talvez a pior de todas, e estava prestes a ser tomada: Assumiriam todos os riscos que seriam deixados aos netos e bisnetos  no futuro, ao impedir o ar maligno de circular, bastando gastar uma fortuna construindo um muro de um qulômetro de altura e mil de comprimento isolando a região.
        O miasma impregnante continuava a movimentar-se, desta vez na direção de onde concentravam-se os resíduos da energia do pôr-do-sol, a que os cientistas chamavam Poeira Solar Espacial, e como toda e qualquer poeira cósmica esta fazia mal aos pulmões, ainda mais numa terra onde, com ou sem fluidos atmosféricos circulando, corações e mentes viviam encharcados.
         Formalizou-se então uma parceria Privada-Pública, ou seja, o governo jogava dinheiro na privada e os empreiteiros davam descarga, depois do tal muro anti-brisas, que desde o começo era uma verdadeira cagada e nunca ia funcionar como devia, mas tinha sido levado adiante para que alguns privilegiados metessem a mão numa grana preta.
         As mortes continuaram sempre, já que o motivo das pessoas derrubadas sem forças era o mosquito transmissor da malária que alimenta-se precisamente depois do pôr-do-sol, ocasionando ao cidadão uma febre danada e uma moleza de morte pelo corpo.
        A obra gastou o que pôde e o que não pôde. Destruiram a paisagem e alguns sonhos; jogaram tempo e dinheiro fora para no fim das contas erguerem um tapume gigante. Dinheiro que faltou para fazer coisas realmente úteis, como tentar interromper o ciclo de miséria neste país ao invés de incrementá-lo, metendo goela abaixo do povo ignorante uma maracutaia injustificável e fraudulenta na maior cara-de-pau, só para variar.

sábado, 26 de novembro de 2011

Estranha Noite Daquele Dia

     
        Ela apareceu deitada ao meu lado folheando um livro, com uma expressão tão grave que não resisti ao impulso de admirá-la durante alguns segundos, até que levantou os olhos das páginas e me encarou:
        -O que foi?
        -Nada, apenas olhando você.
        -Bem, estava concentrada neste livro, seria realmente bom se desses uma lida.
        -O que diz aí?
        -Conta estórias de pessoas que conversavam com espíritos sem perceber que se tratavam de pessoas mortas.
        -É mesmo?
        -Exatamente. Como entrar no ônibus e sentir que dentre os passageiros existe um que somente tu podes ver. Ou no cinema quando alguém no escuro acena em tua direção, mas ao acenderem-se as luzes a pessoa sumiu. E a sensação mais estranha, ao notares que estás sozinho neste quarto conversando com uma pessoa que não existe...
        A garota simplesmente desapareceu e um calafrio percorreu-me a espinha. Fechei os olhos e comecei a rezar mentalmente. Queria gritar mas não conseguia emitir um único ruído, meu corpo estava completamente paralisado, os músculos não obedeciam. O fantasma que sumira tinha razão: embora eu tivesse enchido a caveira até mais tarde na rua, cheguei em casa naquela noite desacompanhado.
        O quarto ficou novamente vazio. Aos poucos fui recuperando o movimento dos membros, até que enfim levantei e saí ainda meio atordoado, as pernas desobedecendo o comando do cérebro.
        Durante instantes não pude acreditar que aquilo realmente tivesse acontecido, talvez uma peça pregada por um amigo. Imaginei se alguém não entrara sem que eu notasse.
        Fui descendo confuso as escadas verificar o portão e tive que me apoiar nas paredes para não cair.
Reparei então: a porta da frente estava realmente destrancada, e eu tinha  quase certeza de que chegara em casa só. E o pior era que o molho de chaves fora largado em cima da mesa da cozinha, junto com o cadeado, eu que nunca deixei a porta da frente aberta.
        Estranho mesmo foi que logo em seguida a luz apagou-se deixando tudo escuro como breu. Explodiu um transformador e o meu e outros cinco bairros ficaram sem energia.
        A rua de casa e portanto a minha casa estava às escuras também.
        Tentei seguir em direção à cozinha assim mesmo. Já havia feito aquele trajeto milhares de vezes. Além das chaves e do cadeado, pegaria uma vela e fósforos além de um copo de aguardente para relaxar, mas no meio do caminho senti que alguém  impedia-me de andar.
        Olhei para baixo e vi uma mão de mulher segurando-me o pulso esquerdo, eu sem coragem levantar a cabeça e encarar o que quer que fosse,  novamente paralisado, sentindo os pêlos da nuca arrepiarem-se ao escutar meu nome dito numa voz gélida, e um recado  que havia sido trazido para mim:
        -Cuidado com o que procuras...

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Todas as Letras

        Como estava vivo, decidiu fazer alguma coisa. Convencera-se que os dias seriam definitivamente iguais uns aos outros dali por diante, ou seja: vinte e quatro horas com sol pela manhã até a tarde; algumas estrelas vadias e para variar a lua todo mês percorrendo cada quarto burocraticamente nos céus à noite.
        Dependia apenas de si fazer com que os dias não se repetissem de forma alienante, e ele tivesse que viver congelado numa eterna segunda-feira, ainda por cima de ressaca:
        -Beber no sábado!
        Foi uma grande idéia. Ganhava o sábado, que daquele momento em diante virava o Dia Mundial da Cachaça, o domingo então pasava a ser o Dia Internacional da Ressaca, e a Segunda-Feira Suportável vinha de brinde.
        -E os outros dias? Perguntou-se, lembrando em seguida que nas sextas já haviam instituído o Mergulho Fora da Realidade, mas ainda sobravam três dias.
        Imaginou então como seria bom se durante um dia inteirinho fosse ele uma pessoa correta e de íntegro caráter, então escolheu a Quinta Honrada do Caráter para fazê-lo.
        Geralmente a terça era o dia em que encarava a vida com a maior alegria e otimismo, com disposição para agradecer o privilégio de existir neste mundo, e por mais que o dia anterior tenha sido desagradável, a gente ainda tem o resto da semana pela frente para tentar fazer as coisas diferentes. Ficou sendo a Terça de Curtir a Vida.
        Mas e na quarta? O que fazer na quarta-feira, o dia que por sua posição deve merecer algum destaque, pois encontra-se no meio da semana. Para ele um dia inusual por outro motivo: as quartas também eram dias de grandes surpresas, para o bem e para o mal, como se oscilasse entre dois caminhos opostos de luz ou trevas, relva ou espinhos.
        "Talvez exista neste dia o componente da possibilidade do alegre ou trágico."
        Olhou pela janela e viu que, por mais absurdo que parecesse, as nuvens formavam a imagem peculiar do que lhe viera na mente naquele instante, então pensou: "isto é coincidência demais para ser mera coincidência", e logo em seguida deu-se conta de que era precisamente uma quarta-feira, depois imaginou que grande coincidência seria ainda se coubesse no mundo um dia inteiro onde cada pessoa pudesse ficar à vontade com seus pensamentos, livre para rir ou chorar, descobrindo-se assim uma nova forma de contar as semanas.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Tudo Pode Virar

        Escrevo no final da tarde, enquanto faço uma das coisas de que mais gosto quando estou sozinho: admirar o pôr-do-sol. As nuvens tomando forma ao sabor do vento, renovando-se sempre, alterando o modo de entender esse fenômeno corriqueiro e por isso mesmo sem valor algum, como se no fundo compreender as coisas comuns não significasse desistir das maiores.
        Via o fluir  das cores refletidas na atmosfera pelo sol poente, todos os tons: do verde ao azul, do amarelo ao vermelho, laranja, roxo, rosa, harmonizando-se incrivelmente em volta do disco alaranjado; e se aparece a primeira estrela, na verdade um planeta, alguém vai pensar que foi a tristeza desta Terra tão antiga que se fez lágrima e solidificou no éter.
        "(...)Deus me deu este coração e a vida não me ensinou o que fazer com ele. A última réstia de luz acabou de sumir. Foi embora a música e nada sobra neste mundo silencioso e vazio."
        O que antes era um fim em si, depois transformou-se no meio para alcançar outro fim supostamente maior, que era viver essa felicidade tão bonita pelo menos enquanto durasse.   Enquanto você esteve ao meu lado, só isso importava e minha vida estava completa, eu ria para as paredes. Mas veio a desgraça:
        -O que estás pensando? Por que queres saber?
        -Talvez você tenha mudado.
        Um dia descobri em uma folha avulsa seu sonho de menina: casar com um príncipe encantado, ter uma família maravilhosa com dois lindos filhos, morar numa casa no campo e viajar todo ano pro litoral.
        Agora não sabe dizer se ainda quer tanto isso, se o modelo de felicidade da infância desmoronou frente à realidade.
        Diz que não é mais prioridade casar e parir custe o que custar. Quer primeiro concluir o curso na faculdade e começar uma carreira na área. Ainda quer viajar sim e muito, pelo mundo inteiro, mas sozinha ou com algum amante e unicamente para curtir, não carregada de responsabilidades e com um monte de malas.
        E quanto ao cara certo, não é mais tão importante quanto era antes se no fim das contas ela nunca chegar a conhecer o cara perfeito. Mas também não dá o braço a torcer quando digo que ela vai acabar abandonando todos seus antigos sonhos:
        -Que antigo sonho? Pode me chamar de egoísta, mas não vou deixar de fazer tudo que eu quero e passar vinte anos da minha vida dando atenção, amor e carinho para quem no fim das contas, quando não precisar de mim mais pra nada, vai me pagar com a ingratidão!
        -O fim de quem ama...
        Eu sei que não é possível concordar com nada disso, e você tem razão. Sua vida é outra, suas experiências e então seus pensamentos são outros, o que não significa neste caso que um de nós esteja certo ou errado, embora eu acredite que você tenha razão sempre.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Pretendo Ter Fé Em Quê?

        Tudo que temos que fazer por nós mesmos talvez só precise de nossa força de vontade, mas quem disse que é fácil perseverar? Anos e anos fazendo a mesma coisa, procurando aprender sempre para não cair na rotina e tendo esperança de que isso um dia possa ser útil, num futuro nem tão distante, quando as coisas melhorarem.
        -Vamos de novo?
        -Só se você ficar por cima dessa vez...
        Tanta coisa boa acontecendo que para os outros pode ser insignificante, mas para você faz uma diferença enorme. Digamos passar o dia inteiro mergulhado no quarto desfrutando a companhia da pessoa que você ama, esquecido do mundo lá fora, fazendo o que se quer quando dá vontade. Ou seja, toda hora:
        -De novo agora?
        -Deixa eu buscar uma água primeiro.
        Aproveitei e trouxe umas frutas que ela comeu com gosto, depois bebeu metade da água da garrafa e pareceu satisfeita:
        -Queres mais alguma coisa?
        -Só ficar em cima de ti...
        Chega-se à conclusão de que se até o mais ordinário dos homens consegue apreciar um momento de prazer e daí extrair sua felicidade, por que não haveria de existir uma beleza invisível por trás de cada coisa ao nosso redor, por menor que seja?
        Se foi possível extrair organização do caos, luz da escuridão,  perfeição do erro; se uma sequência de eventos aparentemente aleatórios juntos formaram a matéria sólida do universo de que somos feitos,além de algo imaterial e desconhecido, mas que tornou possível a vida humana com suas pequenas e grandes descobertas.
        E se tudo isso tiver origem numa vontade exterior à natureza ou não e for impossível de provar, resta-nos afinal escolher e crer num dos lados.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Quase Final Feliz

        -Se tu vieres me beijar vou morder tua língua!
        -Quero só ver!
        E ela mordia mesmo. Às vezes com tanta força que chegava a sair sangue, acho que só para se desculpar depois:
        -Machucou? Deixa então que eu vou te fazer um carinho...
        E sabia agradar tão bem que na vez que eu caí do quinto andar e não puderam me mexer do chão, ela ficou lá durante três horas até chegar a ambulância para eu não sentir doerem a perna e o braço quebrados.
        Era uma pessoa tão agradável no convívio que eu sempre queria estar perto dela, respirar o mesmo ar e sentir seu perfume. Ficávamos abraçados em silêncio, eu aproveitando cada segundo, sabendo que aquilo um dia teria de acabar. Cada vez que ouvia uma palavra daquela boca mais gostosa do mundo, e ela dizia-me coisas incríveis, eu ficava me perguntando se ela sabia o quanto prazer me dava só de vê-la ali.
        Pensando bem, não lembro por que a gente terminou.
        Acho que foi numa dessas mudanças de casa, eu me mudava para cada vez mais longe, ia ficando difícil da gente se ver durante a semana. De qualquer forma nossos vidas foram mesmo aos poucos se afastando.
        -Vou poder te ver hoje?
        -Não sei... Liga mais tarde que eu estou na biblioteca.
        -Pra onde a gente vai no feriado?
        -Não te contei mas já tinha marcado de viajar com minha família pro casamento duma tia...
        Acontecia alguma coisa que separava aos poucos nossos caminhos, sobre a qual não tínhamos poder nenhum. Era estranho, pois ainda curtíamos um ao outro, ela continuava a pessoa mais maravilhosa do mundo, mas aquele relacionamento estava em evidente declínio, então começamos a ficar com outras pessoas. Um dia ela me chamou para uma conversa séria:
        -Eu tenho que te dizer uma coisa. Estou começando a conhecer outro cara e não quero que fiques chateado, mas acho que não dá mais certo. E não precisa dizer nada que eu sei que tu e a Roberta dormiram juntos semana passada.
        -E eu conheço esse outro cara?
        -Provavelmente não, mas sei lá.
        -Isso significa que a gente não está mais junto?
        -Juntos não, mas se me deixares eu posso ainda te ligar de vez em quando...
        Seis meses atrás recebi sua última ligação. Ela estava casando com esse rapaz e disse que o amava, mas não tinha certeza se era o cara certo, só que infelizmente o tempo passa voando e chega um momento na vida em que já não é mais possível esperar.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Hoje Só Temos Motivos Para Agradecer

        O que aconteceu com toda aquela raiva e melancolia e descrença em si e nos outros pela certeza de estar vivendo no pior dos mundos? O que aconteceu?
        Caminhavam de mãos dadas na rua e de alguma forma era estranho ver um casal andando tão companheiros um do outro. Queriam se mostrar aos outros passantes ou realmente gostavam-se a ponto de não se importar com a opinião alheia?
        Ela estava na praia junto do namorado. Tinham acabado de sair da água, o dia estava espetacular com os raios solares atravessando todo o arco celeste do azul mais impressionante que os tons alcançados pela poluição da cidade. Ali era tão distante de tudo, que apenas há alguns anos a luz elétrica havia chegado e mesmo assim o serviço era bem irregular. Estranho isso não parecer grave incômodo aos nativos, que viviam aparentemente felizes como se houvessem outras coisas mais interessantes a fazer na vida.
        O vento sacudia as folhas violentamente.  Alguns galhos partidos caíram pelo telhado. Pássaros voaram assustados. Um camaleão moveu-se agarrado ao tronco e foi percebido. As nuvens cinzentas cobriam tudo, sinal de que em breve cairia forte chuva.
        Enquanto isso, dois mil anos atrás, do lado oposto do mundo uma criança nascia.
        Noutro lugar ali por perto e na mesma época, um chinês chamado Si-Phu inventava a pólvora sem saber para que servia, produzindo e estocando vários quilos do material porque gostava do cheiro que exalava: "Parece merda de vaca!". Até que um dia, trabalhando até o fim da tarde para finalizar a primeira tonelada do produto, sem conseguir enxergar mais nada por causa do sol que se punha, precisou acender uma vela...
        No tempo presente, nos fundos de um colégio da periferia, uma criança recém-entrada na puberdade experimenta seu primeiro cachimbo de crack, sem nunca ter fumado tabaco ou maconha, e sem fazer idéia do que foi o Planet Hemp, essa banda sem vergonha.
        Um figura resolveu começar a pintar quadros. Comprou  telas e tintas, fez vários cursos e pintou algumas paisagens e naturezas-mortas durante o ano para entregá-las como presente aos amigos no natal:
        -O que esse debilóide gastou com essas porcarias de pintura poderia ter comprado um tablet pra mim!
        -Eu gostei da minha. Parece uma serpente lutando contra uma águia sobre um rochedo no mar revolto...
        -Isso é uma maçã e um cacho de uvas, seu imbecil!
        Uma senhora já avançada nos setenta entra na igreja, anda a passos miúdos pelo corredor central e escolhe a segunda fileira de bancos mais próxima do altar para sentar. Faz o sinal-da-cruz, ajoelha-se, põe as mãos juntas na frente do rosto e de olhos fechados faz a seguinte oração:
        "Senhor Deus, abençoa todas as pessoas deste mundo: as que te conhecem para que façam sempre tua vontade; e as que ainda não conhecem para que venham a saber quem é Jesus Cristo."
        Amém.

domingo, 20 de novembro de 2011

Vista Contra a Terra

        Ela estava sentada com as pernas cruzadas, de frente para a correnteza barrenta e poluída, na grama sob as árvores aproveitando a sombra fresca e o vento da tarde. Distraía-se lendo na calma do lugar. Na outra margem via-se a mata nativa àquela distância intocada como num conto de fadas.
        Somente quem prestasse atenção percebia que haviam casas e até alguns bares lá, além das clareiras onde as árvores tinham sido arrancadas para melhor servir ao nosso conforto.
        "Servir a humanidade para que ela alcance seus objetivos, embora parecendo que essa busca resume-se a sexo, drogas e diversão, como se após superficial leitura do Carpe Diem concluíssemos que aproveitar a vida é gozar muito sem importar como; cerrando os ouvidos ao sofrimento alheio, embora anuncie pelos cantos sua boa vontade em reoganizar a sociedade de uma ponta à outra."
        A moça levantou a vista do livro aberto em seu colo e manteve a cabeça erguida enquanto apreciava o movimento turbulento das águas. Apenas ela cconhecia a dor que carregava por dentro, de quando perde-se algo muito querido e o que viesse agora não nos faria esquecer.
        Separada em duas metades como este rio que corre sobre nossas cabeças, onde voam os mais belos pássaros e as nuvens cruzam ao sabor do vento, ao contrário do rio cinzento que carrega os detritos da civilização e onde podemos afogar nossa vaidade.
        Sabia que era bonita, tinha o queixo gracioso e a boca perfeita, mas ao invés de sorrir estava séria como se dali só fosse levantar ao finalmente solucionar os problemas do mundo. Talvez tristeza por causa de algum paspalhão que a tivesse magoado ou então penetrava aos poucos no mistério desta vida. Durante algum tempo ficou ali pensando até que guardou o livro na bolsa e acendeu um cigarro.
        Deu o primeiro e o segundo trago, até que ouviu o barulho de gente se aproximando.
        Vinham dois rapazes conversando alto e rindo, passaram pela calçada próxima de onde estava e um deles não deixou de notar sua beleza, cutucando o colega que gargalhava feito uma franga histérica para que se  calasse.
        Estando praticamente do lado da moça, este  fez uma presepada para chamar atenção fingindo que estava tendo um ataque de tosse:
        -Cof, cof, gasp, argh, cof, vou morrer!!! Pôxa, meu amigo aqui até queria te conhecer mas ele falou que uma menina linda assim não devia fumar cigarro, né Oséias?
        O outro exibia um sorriso idiota na cara e balbuciou alguma coisa como resposta, só para tomar na lata:
        -Filhadaputa escroto, pois vá à merda tu e o bosta do teu amigo Oséias vai pra casa do caralho tomar no cú da mãe e não me enche o saco, porra!
        -Calma, bebê, foi sem querer querendo, era só brincadeira, né Oséias?
        De alguma forma os dois imaginaram naquelas cabeças privilegiadas que aquele papo seria uma espécie de xaveco ou cantada, mas acho difícil acreditar que foi isso mesmo o que eles realmente pensaram, ninguém seria tão estúpido.
        De qualquer forma, fazia tempo que não ouviam tantas verdades ditas na sequência e rapidamente por uma garota com raiva e coberta de razão; mais precisamente desde a última vez em que transaram com as namoradas, antes de serem trocados por vibradores a pilha e cacetes de borracha.

sábado, 19 de novembro de 2011

Retornando a Manhã

     
       Olhava para frente e via os primeiros sinais do amanhecer surgindo no horizonte: o contorno dos prédios diluindo-se com a luz nascente e adquirindo o mesmo tom fugaz do ambiente; uma neblina esbranquiçada sobre as ruínas de uma madrugada entregue à bebida e ao fumo.
        Levantou-se da cadeira atrás de mais um cigarro. Encontrou vasculhando nos bolsos um Hollywood amassado e acendeu-o, mas queria mesmo era se jogar em qualquer lugar e dormir.
        Deu mais um gole na cachaça e foi trocando pernas sentar-se no sofá, ao lado de uma moça que roncava baixinho. A bebida liquidara o que havia sobrado  dos sentidos embotados, conduzia-lhe o pensamento por entre sono e vigília:
        "Estava voltando pela rua de casa bem cedinho, não tinha ninguém além de mim. Vi uma árvore grande que tinha florido e eu pude chegar bem perto daquelas flores verrmelhas, até que por trás do muro de alguma daquelas casas um cachorro latiu, mas eu caminhava sabendo o cheiro do café e do pão quente,e pela primeira vez pude sentir que algo valia à pena. Cheguei na frente de casa e saquei do bolso as chaves, olhei o cadeado de metal frio reluzente de amarelo e cinza, apenas esperando ser tocado para emitir seu ruído agudo. Então ao invés de entrar, por algum motivo que não posso explicar, instinto, sexto-sentido, intuição, podia ser qualquer coisa, guardei a chave de volta no bolso e sentei no batente.  Vi uma moça a se aproximar, acendi um cigarro e fiquei esperando que alguma coisa acontecesse."
        O cigarro acesso em uma das mãos desprendia fumaça que subia em espirais, o cheiro do tabaco parecia-lhe agradável, embora maldito e cancerígeno. O gosto do álcool na boca lembrava-o do desespero ao embriagar-se durante a madrugada, e o que sobrava queria meter-se dentro da garrafa na mesinha à sua frente.
        -Ainda estás acordado?
        Alguém tocou seu ombro e ele por um segundo imaginou se não era um dos caras que tinha levantado na sala, mas o timbre cristalino daquela voz não deixava dúvidas:
        -Oi Roberta. Na verdade eu achava que era o único ainda de pé por aqui.
        -Maneira estranha essa de ficar de pé se deitando no meu sofá...
        -Tens razão... E por acaso é uma garrafa de vinho isso aí na tua mão?
        -É sim. E tu queres ir lá dentro beber comigo?
                                                                          ...
As lembranças daquele dia infelizmente ficaram meio apagadas. Vasculhei o que pude da cabeça do infeliz, alguma referência sobre o que aconteceu no quarto da Roberta, qual a procedência daquele vinho, se é verdade que ela leu o Kama-Sutra. Mas de acordo com o que ele se propôs a relatar, apenas de alguma forma ali percebeu que ainda era possível ter paz de espírito e outras bobagens do tipo: como é inesquecível brindar com uma pessoa maravilhosa e agradecer o nascer do sol às seis da manhã de domingo, vendo o céu mudar de cor aos poucos até ficar azul-claro como numa explosão da natureza.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Companheiro na Casa do Carvalho

        -Já vai!
        Estava uma noite agradavel. Eu tinha acabado de sintonizar o rádio em "Uma Hora de Clássicos da Música Internacional"; servido a primeira dose de uma cachaça de Abaetetuba que uma amiga tinha me dado, quando algum desenganado começou a bater desesperado o cadeado no portão e a gritar:
        -Ôôô de casa! Ôôô de casa! Ôôô Carvalho! Ôôô...
        -Já vai!!!
        Fui descendo es escadas tentando imaginar quem seria àquela hora, e antes de chegar ao último degrau vi a cara sorridente do Henrique Gargalhão entre a grade, escancarando os dentes e cumprimentando naquele jeito livre dele de ser, com uma cuia pendurada no pescoço por um cadarço de sapato, sei lá.
        -Felicidades! Felicidades! Como vai vossa senhoria?
        -Putz! Fala Garga, que bons ventos o trazem?
        -Hã hã hã hã hã hã hã hã hã hã!
        Depois de dar essa risada gostosa, ele foi entrando para tomar uma água:
        -Água geladinha é muito bom pra forrar o estômago, mas quando a gente está com o bucho forrado, né companheiro? Não tem uma farinha aí pro seu amigo fazer um chibé aqui não? Perguntou ele botando mais um pouco d'água na cuia.
        -Deixa de ser palhaço, rapá. Acabei de esquentar o feijão, frita um ovo, janta aí.
        -Pô, eu não como carne nem ovo que é só hormônio e esse feijão tem porco! Não tens outra coisa aí?
        -Meu velho, então pega essa vasilha aí do teu lado e se quiser enfia farinha até pelo rabo, depois tu empurras com a água dessa cuia.
        -Hã hã hã hã hã hã hã hã hã! Mas é um cômico esse meu amigo! Deixa que eu como o feijão então, não tem problema...
        -Não tem mesmo?
        -Fica despreocupado! E deixa que eu como direto da panela que é pra não sujar muita louça pra ti lavar!
        -Ah, muito obrigado!
        Depois dele tentar matar uma fome de três dias fui subir e ouvir meu programa, além do que não via a hora de dar um gole na cachaça e me esticar na rede pra relaxar:
        -Agora sim, finalmente posso sossegar com uma biritinha.
        -Ôpa, companheiro! Essa cachaça é daquelas de Abaeté? Olha que não estou nem bebendo mas aceito um gole!
        -Pois é, eu ia tomar desse copo e perguntar se tu não quereres também uma dose e...
        -Pô, valeu companheiro!
        Disse isso e com uma velocidade incrível arrebatou o copo da minha mão, matou o conteúdo numa só talagada, fez careta e ainda assoprou o bafo maravilhoso na minha cara, finalizando com um arroto gostoso de feijão e ovo.
        Nesse momento começaram a cair no telhado os primeiros pingos de uma chuva que pelo visto ia durar a noite toda:
        -Mas olha só que sorte, companheiro! Vai cair essa chuva mas eu vou poder dormir aqui na tua casa enquanto a gente toma essa cachaça! Hã hã hã hã hã hã hã hã hã hã hã hã!!!
        Eu só disse uma coisa:
        -Levanta da rede.
        -Qual é, companheiro, deixa eu deitar aqui! Não me acostumo a dormir em cama, e olha que eu tento bastante!
        -Levanta agora...
        Dei pra ele um guarda-chuva, uma capa, uma blusa seca numa sacola e disse:
        -Cai fora.
        -Mas tá chovendo muito!
        -Então torce pra que quando passares por este portão ela comece a afinar...
        E assim que meu chapa Henrique Gargalhão pôs os dois pés na rua, a chuva ficou dez vezes mais forte.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Mor Morsa do Grato

"Quase eu sei não há paz, mas tento esquecer que vamos morrer, morrer muito cedo por causa do medo, por causa de loucos que eu sei não são poucos, que querem assim, pra todos um fim,  por meio da guerra fazendo varrer da face da terra tudo que existe."

        No beco encolheu-se escondido na penumbra, tentou olhar o que se passava esticando apenas um pouquinho a cabeça por detrás do muro, enquanto apertava debaixo do braço a sacola com as compras do fim de semana. Apenas não estava entedendo nada.
        A única coisa que queria depois do trabalho, de perder grande parte do dia no engarrafamento, num coletivo imundo e eternamente lotado, de ver no mercado os produtos aumentando de preço ao sabor de sabe-se lá que interesses e o dinheiro cada vez mais curto, era uma chuveirada e o carinho da mulher e da filha, as únicas que lhe davam forças para recomeçar no dia seguinte.
        "Fim do mês está aí e essa já é a segunda prestação que eu deixo de pagar. Veja só, a vida só é dura para quem é  mole, mas o que vou fazer agora?"
        Saltava sempre a menos de duas quadras de casa, caminhava ainda imerso em seus pensamentos, que na verdade eram meias-inverdades sufocantes à respeito da realidade em que vivia, e quanto mais pensava nessas coisas mais permanecia alienado e deprimido.
        Faltava-lhe um tipo de experiência que estava prestes a ter.
        Pois ao virar a esquina teve um susto tão grande que segurou-se num poste para não cair, depois escondeu-se no beco ao lado imaginando que ali estaria seguro.
        Onde antes existira sua casa e todas as outras da vizinhança existia agora apenas um matagal gigantesco; na verdade parecia que uma floresta tinha crescido ali, mas não era possível árvores daquele tamanho terem crescido num único dia , pois todo o bairro estava repleto de árvores e matos e cipós, e sentiu como se houvesse alguém invisível movendo-se por ali, mas era como se na verdade ele estivesse sendo transportado para outro lugar.
        Muitas árvores, milhares e de várias espécies amontoavam-se umas sobre as outras, cipós, bromélias, bichos da noite que rastejavam sobre as folhas do chão; diferentes ruídos, piados, assobios agudos e roncos graves. A vibração de uma respiração geral como a de um gigante verde que estivesse se aproximando, prestes a capturá-lo.
        E se voltasse até o ponto de ônibus? Talvez tivesse descido no ponto errado, nesse caso bastava pegar outra condução e voltar para casa. Mas quando prestou atenção novamente já era tarde, seu coração quase parou.
        O caminho por onde viera e tudo o mais virara um emaranhado de árvores e plantas indistintas, o gigante tinha-lhe alcançado: insetos escalando-lhe a perna por dentro da calça, cipós tentando enredá-lo, braços compridos e finos como caniços que saíam aos montes do meio matagal e impediram-no de gritar quando finalmente arrastaram seu corpo para dentro da escuridão.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

O Credo que Derrubou o Santo

        Ela chegou na casa da amiga trazendo pelo braço um rapaz magrelo, de aparelho nos dentes, cheio de espinhas e com uma carinha sonsa:
        -Olha, Dri, esse é o Sérgio de quem te falei!
        -Prazer, sou Adriana, fica à vontade.. disse oferecendo o rosto para um beijo.
        Meses depois, quando Renata tentou reconstituir o momento em que apresentou o namorado à melhor amiga, percebeu que realmente houve um comportamento estranho de Sérgio naquele dia, principalmente depois que ela deixou os dois sozinhos um instante no quarto, percebendo ao retornar que a Dri tinha trocado de vestido. Foi ele quem quebrou o gelo:
        -Pois é, amor, a Dri estava aqui me dizendo que vocês são amigas do peito!
        -Eu falei pro Serginho que você tinha me emprestado esse vestido aqui aí fui botar e mostrar pra ele que a gente tem quase o mesmo corpo, só que eu sou um pouquinho mais alta, né?
        Ela disse mais alta, então Renata lembrou que a amiga tinha o busto dois números maior que o seu, e mordeu os dentes de raiva por causa do teatrinho que ainda teve de suportar.
        Até o dia em que estava passando pela mesma rua da casa da amiga e resolveu fazer uma surpresa, mas acabou encontrando lá também o namorado.
        Ficou parada na entrada do quarto como se não quisesse acreditar. Olhava atônita a cama desfeita  e os dois com jeito de quem acabou de se vestir às pressas:
        -O que está acontecendo aqui? Por que essas caras de vocês?
        Seria preciso muita ingenuidade para não perceber o que se passava, e mesmo para quem vinha sendo enganada durante quase seis meses, aquilo ali já era demais. Calaram durante alguns segundos; os dois que não tinham o que explicar e Renata a recuperar-se do choque:
        -Serginho, seu pilantra, safado, filhadaputa! Eu bem desconfiava, mas tiveste a cara-de-pau de pegar a minha melhor amiga? E tu Dri, amiga de merda, o pessoal tem razão, és uma vagabunda mesmo, e quer saber mais? Fodam-se os dois porque vocês se merecem, um babaca e uma puta!
        No fim das contas o novo casal não chegou a ficar nem dois meses juntos: em pouco tempo Adriana já estava encontrando-se às escondidas com o melhor amigo de Sérgio, que de qualquer forma ia acabar sozinho, pois era mesmo um babaca.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Próxima Estação Inverno

     
        Hoje exatamente à meia-noite acaba o verão. Amanhã começa a época de chuvas e todo mundo que se vire, pois se isso significa alguma coisa é que vamos nos molhar. Pelo menos é fácil saber quando mudam as estações graças a essa invenção Maia chamada calendário, em cuja homenagem nomearam o mês de Maio.
        Ou então assistindo o noticiário, que tem sempre razão. Tanto é que essa tarde já não foi nem abafada ou sufocante, foi  bem mais fresca que a anterior. A noite cai e a cidade vai ficando mais ventilada, já é possível andar na rua e olhar pra cima, as nuvens ajuntando-se no céu, vai chover de madrugada, e aquela cor de lama de barro que lava a cidade de tanta poeira vai varrer tudo de vez!
        "Vai chover todo dia?"
        Isso mesmo, então o melhor é estar acostumado, mas aqui você vive no futuro e sente-se ótimo andando pelas calçadas e pulando por cima dos buracos que viraram poças. Sente como o ambiente fica maravilhoso, como os papéis guardados e as roupas que não usamos mais transformam-se em mofo juntos e são carregados pelos insetos.
        Sim, pois quantidades enormes de baratas, mosquitos, grilos, mariposas, morcegos, sagüis e jacarés; bichos comuns que nessa época aumentam sua população, o que podemos notar ao vê-los caminhando por toda cidade, felizes, espalhando-se em toda parte.
        Mas o legal mesmo é que todo mundo se encontra por aí para comer, beber, fumar, só bater papo ou o que mais se queira ou possa fazer.
       Todo mundo feliz da vida porque afinal de contas as coisas já estiveram piores; e vamos edificando desses restos, pedaço a pedaço, a miséria de cada dia, rezando para que o resultado não desmorone em cima da gente, com aquela sensação amarga no peito de que não importa se é sol ou chuva, quando a vida em algum lugar lá atrás perdeu de vez o significado.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Zumbis Tomam na Veia

        "(...) e pelo mecanismo eficiente da natureza; por motivos físicos que podem ser explicados pela ciência moderna, chegamos enfim a compreender o fenômeno da religião, por exemplo, quase como foi possível conhecer a mente humana e a nós mesmos."
        -O que estás lendo aí, Barriga?
        -Pô, Jiló, saca só o que esse cara escreveu: "faço coro com a miséria em redor, que nos alimenta de restos e nos embriaga o juízo, até nada sobrar além de gritos desesperados."
        -Caramba! Esse negócio de vampiros e zumbis ainda vai te fazer mijar na cama! Quá-quá-quá-quá-qua...
        -Pô, mermão, estou falando sério! Já dei um tempo com as estórias de terror. Isso aqui é o relato de uma maluca que peregrinou pela Índia atrás da iluminação e acabou sendo comida por uma legião de indianos famintos! Fizeram até um filme, Jiló!
        -Ué? Mas eu pensei que lá na Índia eles não comiam carne...
        -Só de vaca. E diz que a moça era vegetariana, ou talvez tenham comido ela em sentido figurado, ainda não li tudo.
        -É isso aí, lá todo mundo tá fodido também! Quando terminares me conta o final.
        E Jiló levantou-se para urinar, pensando:
"Pôrra, tem graça isso? Passar a tarde toda enchendo a caveira com cerveja quente pra depois ter caganeira e uma ressaca? E jogando conversa fora com o Barriga! Putz! Melhor ler aquela porcaria de livro de zumbis, será que não existe nada melhor para se perder tempo? Peraí, se bem que alguns zumbis até que são bacanas..."
No frente do banheiro havia um cidadão que pela cara estava ali para cheirar um pó. Ficou prestando atenção na conversa do sujeito que falava nervoso no celular último tipo, e estava transtornado como se esperasse para tirar o pai da forca:
-Pô, rapá, já vou deixar pro senhor! Só falta separar a tua perna, falando sério, achas mesmo que eu vou capar? Mas é porque tem algum filhadaputa trancado no banheiro achando que é escritório de maluco...
                                                                    ...
"Estavam todos naquele barco que deslizava nas águas barrentas movido pela correnteza do Ganges, enquanto as pessoas aglomeradas ao redor permaneciam de pé segurando a respiração, com merda batendo pela canela. Bosta suficiente para todo mundo mas a cada momento produzindo-se mais, o que em breve faria transbordar a imundície daquele rio sagrado por todos os cantos do globo."

domingo, 13 de novembro de 2011

O Plano Inverso

        Ele abriu os olhos e o mundo ao redor pareceu-lhe estranho, completamente diferente daquele que existira ao dormir. As paredes do quarto mofadas e sujas tinham perdido o reboco, restava apenas o tijolo enegrecido pelo limo que crescera provavelmente por causa da chuva, já que teto também não existia mais.
        O chão repleto de imundícies e tábuas apodrecidas fedia a excrementos, como se todos os mendigos da cidade tivessem cagado ali. Havia lixo e destroços por todo canto, teve a impressão de que no escuro moviam-se muitos insetos e bichos asquerosos, porém não era possível vê-los, apenas sentir sua presença esqueirando-se no lodo úmido.
        O céu estava cinzento, mas não soube dizer se amanhecia ou anoitecia. As cores haviam perdido sua nitidez, tornando aquele mundo pálido e lúgrube. Era como se os objetos estivessem mortos e jazessem numa semi-escuridão, e até o tempo houvesse congelado naquela hora miserável:
        "Estive dormindo e acordei neste sonho; agora que vi o inverso do real, acordar novamente é impossível"
        Beliscou-se uma, duas, três vezes, e continuou até a pele dos braços começar a ficar com manchas roxas. Não conseguia entender o que acontecera: enxergava como se através de uma cortina d'água. Estava posicionado por detrás de uma cachoeira e forçava a vista em direção ao outro lado, porém a todo momento  as imagens escorriam fluidas de suas retinas.
        Quando saiu para a rua pôde ver que não só a sua mas todas as casas e a própria rua aparentavam terem sido bandonadas de repente pelas pessoas, fugidas de uma grande peste ou de uma guerra atômica.
         Lixo por toda parte, carros, muros e as poucas construções que ainda não haviam desmoronado caindo aos pedaços.
        Por toda parte insinuava-se uma sombra terrível que o perseguia, e que não merecera qualquer nome que tivesse sido inventado, por nunca mostrar-se à luz como o próprio medo. E aquilo que se apresentava como a realidade para ele agora, não sabia como mas sentia isso, era o contrário da vida:
        "Estive dormindo e acordei neste sonho; agora que vi o inverso do real, acordar novamente é impossível"
                                                                        ...
        Ao longe uma figura se aproximava, mas não pôde dizer se era homem ou mulher. À medida que ia chegando mais perto percebia que a figura era meio borrada, andava com um movimento ligeiro, como se não pesasse mais que algumas gramas e praticamente flutuava sem o esforço das pernas.
        Passou então por sua frente e nem sequer olhou-o; pôde prestar atenção no motivo: aquela pessoa não tinha fisionomia, não tinha nariz, olhos nem ouvidos. Era apenas um contorno vaporoso a mover-se que sumiu no ar assim que foi tocado, desaparecendo totalmente.
        Foi então que ouviu uma voz e sentiu um calafrio atravessar seu corpo. As pernas tornarem-se leves como se tivessem perdido a substância de que eram feitas. Veio-lhe de súbito uma irresistível necessidade de caminhar, enquanto seu pensamento ia desaparecendo de vez na escuridão:
       "Estive dormindo e acordei neste sonho; agora que vi o inverso do real, acordar novamente é impossível."

sábado, 12 de novembro de 2011

Ontem, Hoje, Amanhã.

        As coisas continuavam acontecendo como sempre aconteciam, aparentemente sem motivo ou sem nenhuma razão a conectar fatos isolados; onde nada está ligado e o acaso e a imprevisibilidade são a mola por trás de atitudes tidas como resultado do cálculo humano, sempre que as coisas acontecem conforme o planejado.
        Mas quando as coisas fogem ao controle e acabam causando problemas, a gente costuma ir atrás do culpado:
        -E daí? Não estás dizendo nada com isso! Como assim não pôde me ligar?
        -Quem dera fosse tão fácil. Bastaria pegar o telefone e dizer a mesma coisa que eu digo sempre e que você já deve estar cansada de ouvir.
        -Não! Por que a gente não conversa um pouco de verdade? Queria saber o que se passa contigo... Eu poderia transar com qualquer um, achas que é só pra isso que te procuro?
        -Pode ser, mas nada é tão simples. Senão bastava ignorar um problema para tê-lo resolvido como por mágica. Você não precisa disso, tem um futuro pela frente...
        -E tu achas que todos não temos problemas? E a minha vontade não conta nada pra ti? Que diabos de vida é essa que tu levas mais parecendo uma novela mexicana?
        Enquanto existisse a impossibilidade de relacionar-se com quem fosse, pois mesmo quando apenas a carne falava, era impossível fingir não escutar baixinho o lamento de um sentimento, não conseguiria verdadeiramente libertar-se.
         Primeiro você conhece alguém, depois esse alguém conhece você, então ambos viram objeto da análise do amor um do outro, para ao final ser dada à luz uma tese intitulada: "o que fazer para mudar seu parceiro", que você conhece de cor:
        -Então o teu sonho é viver isolado do mundo, por acaso? Querias virar uma espécie de ermitão e se relacionar com o mínimo de gente possível? Não preciso te falar o quanto isso é ridículo, além de ser impossível nos dias de hoje, onde o legal é conhecer mais e mais gente, o que te dá uma chance infinitamente maior de encontrar pessoas legais!!!
         É um ponto de vista. Mas sabemos que o número de desocupados inúteis que você realmente encontra por aí é bem superior ao de alguém que preste, chega a entristecer. Ou para usar um termo corrente nos negócios a que tudo parece reduzido: "o ônus é maior que o bônus" ou "deve-se analisar o custo-benefício", o que significa que no fim das contas não vale a pena.
                                                                     ...
         Depois que se despediram ele ficou pensando o quanto foi fácil gostar dela, do seu cheiro, do seu sorriso, e amaldiçoou-se por aquela decepção de si mesmo.
         Ela caminhou até um banco e parecia meio triste, meio pensativa, talvez fazendo um inventário mental de como estava sua vida até o presente momento.
         Foi então que parou ao seu lado um rapaz da mesma idade e disse-lhe alguma coisa de que ambos riram, depois o rapaz sentou e começaram a conversar. Passaram-se uns minutos e a conversa foi ficando animada: ela sempre a mexer nos cabelos e exibindo o belo sorriso; ele a sorrir também e vez ou outra tentando segurar-lhe a mão entre as suas.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Equador Puta Calor Maravilha

     
        Naquele dia pra variar fez um calor desgraçado, com a diferença de que à tarde não choveu. Aproveitaram o feriado e foram tomar uma cerveja no Veropeso, curtindo também o vento da báia do Guajará, que pelo menos na maré cheia e naquele pedaço não fedia tanto.
        Fazia tanto calor que a camisa do Badigo pregou no corpo como se ele tivesse acabado de sair de dentro do rio. O suor deixava sua cara mais brilhante que pupunha de tabuleiro. Virou a cerveja em menos de um minuto e pediu desesperado outra garrafa pra senhora que estava nos atendendo, mas não tirava o olho de um filme tosco na tevê:
        -Pelo amor de Deus, minha senhora! Veja outra bem gelada que esse sol tá do caralho!
        -Pô, Badigo! Olha o modo! Pelo menos aqui tá batendo um vento...
        Disse o Jairo, mais conhecido como "Casco Seco", enxugando o copo recém-enchido à sua frente, ao perceber que outra cerveja estava sendo pedida.
        Eu que estava começando a curtir ali, vi que aquela conversa não ia levar a lugar algum:
        -Qual é malucada! Cês tão na sombra, tomando uma gelada sentados, pegando um vento, olhando pro rio e estão nessa? Esquenta a cuca que o calor depois passa, e lembra que quando chove vocês também acham uma merda!
        -Pôrra, mas nem pra chover mesmo...
        O pessoal continuou bebendo, depois o sol foi baixando e o clima melhorou. Uma moça acompanhada da amiga passou por ali e conhecia o Badigo, sentaram e tomaram umas e outras, depois todo mundo foi pruma festa na cidade velha onde mulher não pagava.
        Logo na entrada encontrei uma conhecida que me perguntou:
        -Tás fazendo o quê aqui?
        -Vim ali com o Badigo e o Jairo.
        -Aquelas são as namoradas deles?
        -Não, a gente se encontrou por acaso mais cedo.
        -Vais entrar?
        -É o jeito né? A mulherada toda taí dentro.
        -Mas eu estou aqui fora...
        Então minha amiga disse que só estava afim de sexo, convenceu as outras duas enquanto eu chamei o Badigo e o Jairo, então pegamos uma birita e fomos morrer em casa, que é um pulgueiro, mas pelo menos tem um teto e o chão deu pra todo mundo.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Quantos Segundos Para...

   
         Cascatinha das Abóboras era um lugar calmo e pouco afamado, cuja única ocupação dos habitantes e de que muito se orgulhavam era o cultivo das abóboras. Outro orgulho era a nascente que fornecia água fresca e excelentes fotografias de recordação aos visitantes, devido à maviosa queda d'água ali existente a confirmar o topônimo da cidade.
         Era muito tranquilo viver num local que basicamente era sustentado pelas iguarias retiradas sem muito trabalho do mato, como abricós, bacuris e taperebás, além do que o preço popular do jerimum, muito consumido e deveras nutritivo, permanecia estável durante anos no comércio local.
         Um dos habitantes chamado Genésio, talvez por doença ou mau gosto pessoal indiferente ao apelo popular, era intolerante ao afamado legume e preferia comer beterrabas.
         E como beterrabas era gênero trazido de fora de Cascatinha das Abóboras e portanto pagava um frete maior, este cidadão resolveu plantar sua próprias beterrabas no quintal de casa:
         -O que estás a fazer! Deves cultivar o vegetal nacional, não esse tubérculo estrangeiro! Serás denunciado às autoridades com toda certeza!
         -Então você deve ajudar-me! Veja: em poucos meses as beterrabas estarão prontas para colheita, e assim que o fizer apresento-as no mercado de Cascatinha como produto importado...
         Assim fizeram.
         E como naquela terra fértil não só "plantando-se tudo daria", como vegetais e outros bichos ali cevados eram saborosíssimos, pôde vender toda a produção no mesmo dia.
         E durante o tempo em que durou a mentira, Genésio acumulou dinheiro suficiente para abandonar a agricultura e entrar no ramo que verdadeiramente o interessava: uma esplêndida criação de tatus.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Acorda, é Tarde

         Continuava o espetáculo da natureza. O vento embalando jambeiros, mangueiras, bananeiras, coqueiros. Voltava os olhos e pousava-os no embalo salpicado de pontos que iam do amarelo vivo ao vermelho sangue, movimentando-se como o estranho pássaro verde.
O brilho das coisas impressionava pelo excesso ofuscante. Na tentativa de fixar a visão por alguns segundos em qualquer objeto, cegava-o tamanha claridade.
         Não fosse pelo vento a levar o calor, dispersando-o da superfície com a umidade que subia e turvava as imagens como numa miragem, seria provavelmente insuportável sobreviver sob este sol.
         As nuvens a todo tempo empurradas pelo vento tomam as mais diversas formas. Olhando diretamente para o enorme disco de fogo a vista ficava com uma persistente mancha azulada por vários minutos.
         O pássaro pousado no canto do muro começou a cantar.  Dentre todas, a arte do suí é a mais irritante: apenas um piado fino sem melodia, pior que uma cambachirra.
         Mesmo assim escutei embevecido aquele canto chinfrim. Senti saudades quando terminou e saiu voando. Imaginei que tudo aquilo fazia parte de um projeto superior, lamentando pela incapacidade do pássaro de não poder transmitir convincentemente o que seria a existência de um ser vivo abençoado com o dom maravilhoso de voar pelo firmamento, e o privilégio desta visão, e o sacrilégio de ao menos não se esforçar por transmiti-la.
         Tenho aguardado durante mais este dia, e  por isso escolhi esta como a hora da contemplação e do agradecimento por mais uma tarefa cumprida, mesmo que a espera tenha sido em vão.
         Torço para não ficar cego tamanha a beleza e o prazer de admirar este espetáculo e ver o que vejo.
         A energia deslumbrante que me alivia de qualquer sentido e me obriga a reverenciá-la, como se o ocaso diário fosse a representação da vida fadada a fenecer, efêmera e fugaz, embora infinita; e no fim fosse a nós reservado o vislumbre da assinatura do mestre em obra imponderável.
         Peço que o valor dado a cada momento da vida seja medido não pela tua vontade ou pela minha, mas pelo espírito por trás de tudo  que chama-se "A Medida de Todas as Coisas".
         E para crer seja necessário apenas que ao mesmo tempo creias em tua própria vida, e na superioridade do espírito humano sobre todas as contingências de nossa existência.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Ácido Hermenêutico

        Da sacada podia ver a copa das mangueiras na rua formando um corredor de folhas e se estendendo por cinco blocos, juntando-se às árvores da praça para felicidade das garças.
        -Não queres comer alguma coisa?
        -Me faz mal quando estou bebendo. Mas vou pegar este sanduba aqui, valeu.
        Toda vez que tomava bebiba forte não conseguia ingerir nada sólido, sob risco de vomitar. As tripas revoltavam-se na tentativa de expulsar qualquer coisa que não fosse álcool. Talvez sofresse de gastrite ou coisa parecida, devia procurar um médico.
        -Mostra teu copo.
        -Ôopa, obrigado!
        Já estava porre e a dona da casa não parava de servir-lhe mais birita. As pessoas conversavam ao lado e pelos cantos, ele respondia automaticamente o que vinha à boca quando perguntavam, sem entender muito bem o que estava a falar ou o que diziam como resposta.
        A cabeça rodou ao tentar levantar-se, não parava de virar um copo atrás do outro. Resolveu deixá-lo em cima de um móvel e foi pegar o vento da noite encostado na sacada, olhando lá para baixo a movimentação dos transeuntes.
        Foi então que Márcia se aproximou:
        -Estás sozinho aí? Cadê teu copo?
        -Faz tempo que não bebo tanto, ele deve ter fugido de mim. Valeu aí, Marcinha, por me convidar.
        -Na verdade eu chamei o Jairo! Viestes de enxerido, seu tosco! Ha ha ha ha ha ha ha ha ha...
        Com a perda da memória recente que precede o coma confundindo aquela noite com tantas outras, entendeu que devia manter a boca fechada pelomenos nos próximos quinze minutos, sob o risco inevitável de começar a falar merda.
                                                                       ...
        Tiveram tempos atrás um ódio um do outro, embora ou justamente porque tivessem sido amantes. Dela não suportava principalmente os conselhos, que ignorava fazendo o contrário de propósito, culpando-a quando depois se fodia.
        Mas naquele momento não havia ninguém em pleno uso das faculdades mentais:
        -Pô, Marcinha, brigadão por tudo, adorei essa noite.
        -Se fosse noutra época você ficava aqui e amanhecíamos só os dois bebendo...
        Ficou na dúvida se tinha escutado ela dizer mesmo estas palavras. Não podia ser àquela altura, pensou:
        "Estou bêbado! É isso! Estou viajando e com vontade de vomitar aquele sanduíche! Vou pra casa agora e quando acordar mal lembrarei do que rolou aqui, então é só me despedir e até logo!"
        Beijou-lhe o rosto e caminhou em direção à porta que dava para o corredor, até que sentiu uma palma suave segurando-lhe o pulso:
        -Você passa a noite aqui comigo?
        Embora estivessem praticamente apenas os dois ali, era como se todos os seus amigos subitamente aparecessem em redor e presenciassem a cena, dizendo-lhe para ir embora imediatamente dali. Imaginou a cara aterrorizada da namorada que não acreditaria naquilo, se contasse o que estava prestes a fazer.
        Por que motivo não sabe. Ignorou as sugestões da própria cabeça cedendo aos instintos inflamados pelo álcool e resolveu ficar. Prometeu que no dia seguinte escutaria com mais atenção os outros, e deixaria de culpá-los depois quando fosse tarde demais.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Pesquisa De Opinião

Boa tarde! Desculpe estar ligando incomodando o senhor, mas o senhor poderia estar respondendo algumas perguntas, só dois minutinhos?
   R-Ok.

Sou o que faço ou o que penso?
   R- Os três, mas as pessoas só vão conhecer de ti o que fizeres.

É certo achar que não existe nada errado?
   R- Não, é errado achar que existe algo certo.

Então posso matar meu cachorro para comer assado?
   R- Se estiveres na China...

Qual seria a diferença do Homem pros outros animais?
   R-Bem, o cio dos bichos dura bem menos.

E quanto ao pensamento?
   R-Que pensamento?

Bem, os animais são irracionais, eles agem por instinto...
   R-E onde essa razão nos trouxe?

Para o progresso, oras!
   R-Estás falando sério?

Só falta o senhor estar me dizendo que não existe moral!
   R-E por que eu soltaria uma asneira dessas?

Ué, você não disse que não existe certo e errado?
   R-Disse que aceitas a moral vigente ou não, de acordo com teu referencial.

O senhor só pode estar enganado! Já esteve errado anteriormente?
   R-Minha vida sempre foi uma sucessão de erros. Na verdade sobrevivo um pouco cada dia.

Negando o passado?
   R-Apenas deixando-o em seu lugar.

Nosso tempo acabou! Vou estar agradecendo a entrevista, muito obrigado pela sua atenção.
   R-Disponha...

domingo, 6 de novembro de 2011

Cinza de Manhã

Choveu muito nesse dia.
        Naquela hora em que o sol impede até de abrir os olhos, e o calor deixa os pensamentos lerdos, a vontade mole e o corpo encharcado de suor. Nesse dia desde a manhã vinha armando-se a chuva que caiu antes do meio-dia. Às cinco horas anoiteceu, e pela primeira vez em meses pôde-se dizer que aquela noite faria frio.
        Estava atrasado para o seu encontro, mas não deixava de observar os telhados das casas, os troncos das árvores, paredes molhadas, os vãos escuros, o vento arrastando o lixo da rua. Tralhas largadas num beco encardido.
        Uma única folha presa num galho. Uma poça onde metia o pé andando sem rumo, sem ambições. Gotas  passando-lhe próximas ao corpo que não chegavam a tocar-lhe.
        Respingos de lama, lembrando-lhe antigas trovoadas.
        Nesse mundo ancestral, ainda no começo do longo caminho da evolução, mais próximos do animal irracional que do modelo de homem que se guia pela razão. A natureza vive mudando, uma montanha, um carvalho, uma gota d'água ou  o desejo humano são menos que uma pincelada do artista em sua obra genial.
        Efêmeros como o menor dos átomos e a maior galáxia.
        E a vida que segue nos pega com seus afazeres.
        Até que um outro dia, este mesmo antigo sol torne a esquentar as coisas e as pessoas da cidade, pois sempre haverá pessoas nas cidades para contar o tempo.
        Mas alguém será novamente surpreendido pelo sol a despejar um último raio luminoso na janela, e ficará feliz sem saber por quê.
        Por um momento sentirá como se tivesse posto a cabeça para fora e depois submergisse, tendo agora a agonia de viver sabendo-se em breve um cadáver afogado.
       Nunca mais respirar esse ar, o modo de existir nesse momento. E o preço de caminhar por uma rua escura enquanto bate o vento frio, mesmo tendo o cuidado de a todo momento olhar para trás.

sábado, 5 de novembro de 2011

Passageiros da Nave Granada


        A espaçonave caía vertiginosamente em direção à Terra, todo o conjunto de propulsores do lado esquerdo estava em chamas. Se a um minuto atrás não tivessem subido a 20 mil léguas de altura, não teriam tido tempo de acionar o sistema de emergência.
        Quando ocorreu a primeira explosão, que matou o piloto Black Luck e deixou o co-piloto Dick Pogo sem a bola de um olho, a nave foi tomada por uma nuvem de fumaça e a tripulação ficou completamente desnorteada.
        Rolland Pif lembrou-se do que havia bolado para esses casos: o  Sistema de Exclusão de Dor Aérea, em forma de comprimidos, e andava sempre com vários deles no bolso do macacão em viagens interplanetárias:
        -Tome Otto, pegue um Bill, e principalmente você Dick, este olho vazado está mal. De todos aqui parece que você é quem mais precisa,não há tempo para discussão.
       -Obrigado, mas vocês precisam fazer alguma coisa para controlar a queda. Depois da explosão e de perder um olho, sinto como se minha cabeça tivesse ficado gigantesca...
        Dick pegou a pílula das mãos do amigo no momento em que uma luz alaranjada acendeu no painel danificado donde chuviam faíscas.
        Os quatro sabiam que quando aquilo acendia não tinha mais jeito: era sinal de que o Vivificador Beligerante tinha parado de funcionar, prensado contra o Propulsor Interativo de Padrão Eletromagnético.
        Tratava-se de um moto-perpétuo e servia-lhes para viajar instantaneamente a qualquer lugar do universo, bastando para isso digitar as cordenadas, embora a  máquina avariada os levasse agora para o oposto do local indicado, ou seja, a quinta dimensão.
        Mas nesse momento algo improvável aconteceu. Enquanto Otto tentava matar Bill com uma espada samurai, culpando-o pelo módulo problemático que este havia comprado na loja Móveis No Que Se Move, para rumarem até o asteróide-resort NOFX, Dick Pogo concentrou-se de tal forma que encontrou um jeito de livrá-los daquela situação.
        -Parem com isso! Dick teve uma idéia que pode nos salvar! Gritou Rolland Pif.
        -Isso mesmo! Temos de explodir a asa direita, assim ambas ficarão iguais e a nave possivelmente se estabilizará!
        -Mas temos menos de um minuto até chegarmos ao chão! Retrucou Otto.
        -Então não podemos perder tempo. Mãos à obra! Disse Bill.
        Usaram as granadas de mão que costumavam transportar por medida de segurança quando iam para outros planetas relaxar ouvindo músicas suaves, porque nunca se sabe o tipo de maluco que pode aparecer numa sala de concertos.
        Os três que ainda tinham condições de ficar em pé atiraram as bombas através da janela, enquanto Dick rolava pelo chão tossindo muito, pois como se encontrava deitado, já havia inalado muita fumaça.
        Um segundo após houve uma explosão tão grande quanto a primeira e o trio também foi arremessado ao chão, inconsciente.
                                                                          ...
        -Cara, o que foi isso? Rolland, é você?
        Dick estava coberto de sangue e tinha os pensamentos embaralhados. Após os momentos que passara inconsciente, finalmente ia voltando a si.
        -Acalme-se, deixe a cabeça alta que agora está tudo bem...
        A fumaça no interior da nave, as faíscas que jorravam do painel, as luzes coloridas piscando freneticamente, e principalmente aquela luz laranja que momentos atrás fizera-os pensar que o fim havia chegado, tudo sumiu. O que restou da espaçonave pairava imóvel à exata metade da distância do chão para o lugar de onde tinham estado quando tudo começou:
        -O que aconteceu? Dick perguntou.
        -Você estava certo! Quando explodimos a outra asa, o moto-perpétuo voltou a funcionar e conseguimos reestabilizar o módulo.
        -Ufa! Da próxima vez a gente usa um Fixador de Improbabilidade Não-Organizável, é menos perigoso.
        -E tão cedo não desejo ir até NOFX!
        -E para onde vamos então?
        -Bem, se quando Otto e Bill acordarem ainda quiserem viajar, acho que tenho uma sugestão...
        E meia hora depois, agora apenas os quatro, Dick Pogo, Rolland Pif, Bill e Otto, sem Black Luck, partiam em direção a um planeta alternativo chamado Terra-Orbus, na nona dimensão.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

As Cores Escuras

        Andava a passo acelerado, como se estivesse sendo perseguido por fantasmas ou duendes. Deu uma espiada, dobrou ao fim da rua e correu toda extenção do quarteirão, ao cabo do que novamente dobrou a esquina e foi esconder-se num vão de guarita.
        Um objeto brilhante tinha em mãos; guardou-o na sacola que trazia presa às costas, olhou novamente a rua deserta àquele noite de domingo e saiu em passo acelerado.
        Dois caras estavam sentados numa parada de ônibus, esperavam a manhã chegar para que enfim os ônibus voltassem a circular, e mal se deram ao trabalho de olhar para o doente mental  maltrapilho e fedorento que passara, andando assustado, falando sozinho, carregando um saco de estopa imundo preso por uma imbira entrelaçada sobre o ombro esquerdo.
        "O que é esse estado mental pertubador? De quem estou fugindo?", pensou com sua loucura o homem que vivia de catar do chão um lixo brilhante qualquer, como se fosse a oitava maravilha do mundo e punha-se a admirá-lo. Mesquinho e neurótico, escondia sua jóia da vista alheia.
         Porém, se à frente topasse um pedaço de vil metal ou um caco de vidro colorido enterrado, naquele momento esta passaria então a ser sua nova riqueza, esquecendo-se e abandonando  instantaneamente o objeto antigo que carregara com tanto cuidado.
         Como todos em sua situação, não tinha consiência da própria enfermidade. Por vezes, da mesma forma como encontrava na rua sem querer algo realmente de valor, assim passava-lhe pela cabeça em raros momentos um pensamento coerente. A faísca elétrica que saindo do filamento avariado nos dá impressão de que a luz em breve voltará, apenas para em seguida tudo obscurecer novamente, arrastado no turbilhão desconexo da insanidade, para sabe-se lá quando surgir à tona novamente, feito apoio fugaz e inútil onde o homem vencido pela correnteza tenta se agarrar.
         Engana-se quem pensa que o louco padeça mais pela sua doença do que por outro motivo qualquer de que padece um ser humano sadio, seja pela fome, o frio ou a moléstia. Acomete-lhe como a todos a miséria e a decadência que aniquila a pessoa, seja esta ou não um espírito perturbado.
         Mas afinal, o que torna então esta criatura tão diferente dos indivíduos considerados sãos? Talvez a incapacidade de perceber o infortúnio em que se encontra imerso, existindo na sociedade como a mais baixa das criaturas, meio gente, meio animal selvagem.
         Em seu delírio imagina ocultar tesouros brilhantes que tira das sarjetas. Está totalmente rendido a essa estranha doença, impedido de reter o menor raciocínio coerente, desenvolver qualquer pensamento lógico que contrarie sua fantasia; preso na escuridão da demência onde foi atirado com todas as forças e onde há de permanecer durante um bom tempo exilado.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Aventura No Mundo Interior

(...)
        -Quando sonharia em conhecer cada pedacinho deste lugar que achava fosse mentira, onde talvez há anos ninguém pise, isso não é incrível?
        -Foi pra isso que viemos. Aliás, obrigado por me acompanhar...
        A relativa facilidade que tivemos para chegar até ali, uma série de coincidências que facilitaram a maior parte do trabalho, desde aquele domingo distante em que pegamos as nossas coisas e saímos de casa.
        A moça da lanchonete onde primeiro paramos e que tinha ouvido falar de estórias do local, ensinando a direção; o motorista da carreta que durante dois dias dera-lhes carona; a trilha oculta no meio da mata descoberta por acaso, que eles nunca encontrariam se Hermes não tivesse parado lá para urinar; a praia deserta e a casinha de ripas de que ambos se lembravam, como um delírio compartilhado da infância; onde haviam parado e agora preparavam alguma coisa para comer:
        -Sabe Lúcia? Deve faltar apenas um ou dois dias naquela direção e a gente chega lá.
        -Tens certeza?
        -Faz muito tempo, eu não sei como, mas veja só: a sensação que tenho é de já ter estado aqui. Eu era muito criança, então as lembranças estão meio apagadas, mas tenho certeza de que o caminho é pra lá...
        No dia seguinte Lúcia ficou estarrecida com o espetáculo que descortinava-se à sua frente: A beleza do sol nascente, um gigantesco globo amarelo, mais próximo da Terra do que nunca estivera para qualquer outra pessoa, somado à exuberância da vegetação rendilhando a margem e o contraste entre o mangue e a brancura inóspita da praia, fê-la imaginar por alguns segundos que não mais habitava neste planeta, como se aquela missão na verdade fosse encontrar um caminho possível até o mundo desconhecido, onde há muito ninguém ia e de onde haviam sumido os últimos vestígios da presença humana, exceto pela casinhola onde passaram a noite:
        -Bom dia, Hermes! Olha só que lindo!
        -Bom dia, Lu. Estás acordada há quanto tempo?
        Ela estava maravilhosa àquela manhã. O corpo bronzeado e firme, coberto de gotinhas que faiscavam e corriam por sua pele até caírem como brilhantes na areia limpa. O vento refrescante a secar-lhe os cabelos e a felicidade que em seus olhos transbordava, tornando aquele momento num misto de sonho e fantasia:  
        -Levantei com esta luz impressionante e fui me jogar na água! Não é espantoso existir um lugar como este?
        -Creio que sim, não lembro de ter visto nada igual! Mas vamos andando, antes que comece  a esquentar...
        Arrumaram suas coisas e foram seguindo na direção combinada, deixando para trás apenas os restos que sobraram da noite que tinham passado ali.
        E muitos anos depois, quem sabe por coincidência ou destino, quando outras duas pessoas redescobriram aquele mesmo caminho, apenas o telhado de sapê ainda permanecia de pé.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Absolutamente Livre

"Os desejos das pessoas são como o mundo dos mortos: sempre há lugar pra mais um" Provérbios 27.20

        Lá estava ele, deitado naquela cama de motel, imaginando com que frequência trocavam aqueles lençóis, enquanto a moça que o acompanhava tinha levantado e estava trancada no banheiro, onde não se ouvia o som de água.
        A tv ligada passava um eterno pornô, daqueles que devem passar em todos os motéis do mundo, sem a mínima graça ou muito engraçados, ao menos para quem tinha acabado de transar.
        Pegou o controle e começou a zapear por alguns canais, até que encontrou um onde exibiam um filme que fazia tempo havia assistido, sobre a vida de Jesus Cristo numa perspectiva surreal, que de alguma maneira encaixava-se perfeitamente com aquele momento.
        Deviam na época ter chamado o diretor de sacrílego pra baixo, indignados de como alguém teve a coragem de sugerir uma estória alternativa em que o Filho do Homem, vencido pela dor, se dobrava ao inimigo e abandonava a cruz.
        "Será que tudo agora não passa de uma piada de péssimo gosto?"
        Era como se já tivesse visto tudo que tinha pra ver, e a sensação que sobrava era de estar vivendo num mundo insípido e pasteurizado, como numa comédia da Sessão da Tarde, onde nada mais era novidade embora quisesse sê-lo, e o que chamavam de novidade na maioria das vezes não passava de cópia malfeita do produzido no passado.
        E se ainda não achava que o planeta inteiro havia se tornado uma cópia retrô vagabunda de si mesmo, era porque faltavam-lhe referências.
        Mudou novamente para o canal pornográfico quando ouviu o barulho da porta abrindo e a moça saiu do banheiro, esfolando nervosamente o nariz com a mão espalmada, o cartão que tinha usado para dar os tecos enfiado no cós da calcinha:
        -O que estás fazendo?
        -Estava esperando você sair e voltar pra cama, se tiver condições.
        -Então abre outra cerveja pra mim.
        Transaram de novo. Quando terminaram ela voltou ao banheiro e passou a chave. Ele teve vontade de dizer que ela poderia se drogar ali mesmo na cama, que não tinha problema, quando acabasse aquela porcaria era só ligar pedindo outra.
         Embora soubesse não ser nada de mais, incomodava-o um pouco aquela garota ali trancada, provavelmente fazendo caretas pro espelho, querendo dar uma de junkie, mas que no fundo era só mais uma dessas pessoas frustradas por não saber o que fazer da vida, parecendo-se com mil coisas para no fim não ser nenhuma, que voltaria para a casa dos pais na manhã seguinte como se nada houvesse acontecido, mas com razão, afinal nada acontecera.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Quando Você Tentar

"His revolution, he used to say, will be a sexual one."

        Como foi para ele escolher o destino que obviamente o mataria? Queria mesmo servir de alvo móvel para a artilharia manjada dos descontentes?
        -Ele disse "Foda-se!".
        -Quê?
        -Eu falei que...
        -Pôrra, isso eu escutei! Quero saber o que você está fazendo aqui! Eu te pago pra fazer o que eu mando, então volta pra lá e tenta convencer aquele bosta, seu merdinha!
        -Sim, mestre...
        -Sarcasmo! É por isso que eu gosto desse idiota. Vocês aí estão olhando o quê, não têm nada pra fazer? Mexam-se, vamos!
                                                                        ...
        Ele estava sentado na areia com uma garrafa  de vodka entre os joelhos, a cabeça apoiada no ombro, um cigarro que tinha queimado até o filtro na mão direita. Ressonava tranquilamente como se fosse ficar por ali pelas próximas duas horas, ao invés de se apresentar com a banda:
        -Max, cê tá dormindo?
        -Não enche, Bro. Tens fogo aí?
        Tomou um gole de álcool, acendeu um cigarro todo amassado que tirou do bolso e deu uma baforada. Um cheiro semelhante ao de incenso tomou conta da tenda de lona que servia como camarim:
        -Escuta só o som lá fora, Max! Daqui a quinze minutos a gente vai ter que encarar mais essa meu, acho bom parar um pouco de beber...
        Falou aquilo da boca para fora por dois motivos: primeiro que assim ele ficava puto e bebia ainda mais, e foi o que fez. Segundo porque infelizmente sabia que ele se apresentava melhor quando estava bêbado. Só que de uns tempos pra cá vinha esquecendo as letras no meio das canções, estava se destruindo, e era pura sorte ninguém ainda haver percebido. Ou fingiam não perceber:
       -Cara, no último show a gente não conseguiu mandar as três últimas, você quase desmaiou no palco, isso não pode continuar assim!
       Ele olhou bem pro cara que ele aprendera a considerar como a um amigo depois de passarem por tanta coisa juntos. Levantou-se e saiu fumando, levando a vodka consigo:
       -Tens razão, Bro! Eu não posso continuar com isso...
       -Peraí, Max! Aonde você vai?
        Bebeu até o fim, atirou a garrafa para longe e foi correndo em direção às ondas que quebravam com um marulho sinistro, apenas o brilho do cigarro aceso em sua boca, que depois desapareceu sem deixar vestígios na escuridão.