domingo, 31 de julho de 2011

A Casa de Cobal

      Tinha Cobal um único filho, dezesseis anos incompletos . Era alto e forte e todos viam nele a beleza que atavessava marcante a estirpe da família. Os ombros largos como o sorriso, os olhos escuros e bondosos. "Quem sai aos seus não degenera"; "Vinho de boa cepa"; era o tipo de comentários com que costumavam elogiar Cobal por sua bela obra.
Numa daquelas tardes tranquilas na sede da fazenda, em que a família se reunia na varanda para tomar a fresca da tarde, enquanto observavam os vaqueiros conduzindo de volta o gado para o curral, veio vindo à galope um dos peões, que se separou dos outros, atravessou o portão e veio ter com Cobal:
-Tarde, sinhô, uma palavrinha só.  Vei vindo aí o Velho Oligário falar com o sinhô,  eu quis falar para ele vim na garupa, mas ele prefere vir de pés.
-E que que o diabo desse velho quer comigo, Procópio?
-Sei não sinhô, que eu perguntei dele e ele não quis dizer nada, só vai falar mesmo é com o sinhô.
Então os dois se olharam e ambos souberam o que se passava na cabeça um do outro. O Velho Oligário já beirava a casa dos noventa, mas morava sozinho, bem afastado da sede da fazenda. Diziam que era vidente, bruxo, transformava-se em bicho, conversava com os mortos, punha quebranto nas pessoas, além de outras mandingas de que era acusado.
Pois vinha o velho pela estrada, e enquanto atravessava a porteira, começaram a  cair os primeiros pingos de uma chuva que se armara em questão de minutos. O velho tentou caminhar o lance de trezentos metros que o separavam da sede, com a chuva e o vento ficando muito fortes, enquanto os que não tinham ido proteger suas coisas fitavam-lhe pálidos, com o temor estampado nas faces. Inclusive o patriarca Cobal.
Até que este conseguiu reagir e mandou  dois dos moleques irem lá depressa amparar o desconjurado, que mais capengando que andando com sua bengala não chegaria a tempo de se proteger.
Sentaram-no numa cadeira, deram-lhe um copo d'água para que se refizesse do esforço, até que ele começasse a falar, e enquanto todos iam escutando, à medida que ele falava, iam perdendo o sangue das faces, segurando a respiração, até que Oligário terminou e se calou. Ante a tragétia anunciada algumas mulheres começariam a chorar.
O que Oligário lhes contou foram suas últimas palavras. O motivo de seu dom.
    Após isso, partiu o velho de uma vez para encontrar pessoalmente os mortos com quem costumava conversar. Cobal assistiu toda cena impassível, não tinha dito nem uma palavra durante todo o tempo, até que conseguiu murmurar, numa voz sumida que lhe vinha do fundo da alma:
-Vão correndo atrás do Deco... Disse isso no momento em que a chuva caía de vez tal qual um dilúvio, com uma pancada seca que estremeceu a todos, fazendo resoar o telhado.
                                                                      ...
Deco ainda não tinha voltado do campo com seu cavalo Brunello , e o escurecer chegara já rapidamente, trazido pelas nuvens de chumbo. Cobal gritou que trouxessem depressa sua montaria, ia ele mesmo atrás do próprio filho . Gritava com esforço em meio ao aguaceiro, com  o coração a sair pela goela, tal como Oligário profetizara, e mal traspassou a porteira divisou três vultos a cavalo que subiam a estrada, muito lentamente.
Um deles trazia o cavalo andando ao lado, segurado pela rédia, enquanto com a outra mão via-se que equilibrava uma espécie de fardo em cima do animal. Cobal reconheceu pela forma de andar que era o caseiro Procópio, mas não pôde divisar o que ele levava em cima do cavalo ao invés de montá-lo. Enquanto isso, tentava afastar da mente as últimas palavras que escutara da boca do velho:
"... e da mesma forma que começou com seu tataravô, da primeira vez que ele pisou aqui nesta terra e ninguém o conhecia, hoje se acaba o clã, com o último e mais jovem membro dos Cobal, que terá sua vida ceifada assim que despencar esta tormenta..."
                                                                        ...
Deco quando vinha da cidade passar férias todos os anos; adorava montar em seu cavalo  e passear pela enorme fazenda que seu avô comprara, e que herdaria de seu pai. Gostava de ver o tabalho no campo, os peões que tangiam o gado para o pasto de manhã cedo, e o levavam de volta para o curral de tardinha.    
    Aquele dia tinha saído logo depois do almoço para passear com seu rosilho, embora sob as críticas da mãe dizendo que não fazia bem fazer esforço depois de comer, tinha que esperar a comida sentar direito, fazer a digestão:
-Que isso mãe, tá pensando que eu sou molenga igual a mana? Eu estou indo é agora lá no lageado tomar banho. Diz que depois ela se quiser pode vir também. mas eu duvido que essa preguiçosa vá!
-Meu filho, toma cuidado...
-Êh, mãe não se preocupa! Pede a benção pro pai também que eu já vou!
-Deus te abençoe, meu filho...
Enquanto se distanciava da sede, sentia o vento passear entre seus cabelos; a respiração e a energia do animal que tinha sob seu controle faziam-no sentir-se poderoso.
     E por tudo aquilo Decano sentiu uma felicidade incrível. Quis agradecer alguém ou a alguma coisa tão belo sentimento, então dedicou uma oração sincera ao Deus de Todos os Homens.
Na volta para casa, devido à chuva que armara muito rápido e já começava quase a cair, Deco decidiu cortar caminho pelo curral do reprodutor. E ninguém soube o porquê  naquele dia, o touro de tantos anos cobrindo as vacas do patriarca Cobal, sem motivo algum, resolveu atacar o primogênito Deco, sendo que nunca antes avançara em ninguém, pegando-o desprevenido e derrubando-o do cavalo, cravando os chifres em seu corpo e pisoteando-o furiosamente em seguida, deixando-o apenas quando os três empregados vinham tentar salvá-lo, mas já sem vida, com o corpo totalmente desfigurado.

sábado, 30 de julho de 2011

Brian, o Atrasado

Brian da Silva vivia mansamente sua vidinha na pequena cidade onde morava. Sua namorada, depois de muito brigar com ele por causa das crises de alergia que deixavam-no vermelho como um tomate maduro, justamente nos dias em que ambos costumavam se encontrar, optou por acabar de vez com o namoro, mudando seu status no facebook para solteira, coisa que ele só viria a saber uma semana depois, já que não tinha computador em casa e odiava lan-houses.
Brian, depois de estranhar a ausência prolongada de telefonemas da namorada e o fato do telefone dela só cair na caixa postal quando ele ligava,  resolveu entrar no facebook de um amigo em comum, pois ainda não tinha o seu, e constatou o que vocês já sabem, que o namoro já findara há muito, e ainda por cima ela estava "conhecendo melhor" um tal de "Dick23", que ele não poderiia dizer se era feio ou bonito, porque  
em todas as fotos só aparecia metade da cara do campeão, com uma mecha de cabelo preto alisado caída pela testa tapando um olho.
Como eram inúmeras as coisas que desencadeavam sua alergia, e talvez a presença de sua atual ex-namorada fosse uma delas, começou ele a espirrar feito um cachorro tuberculoso, ficando instanteneamente todo vermelho e se debatendo qual um epilético tendo uma crise em meio a uma descarga elétrica, o que pareceu muito engraçado ao seu amigo ao lado, que via tudo e começou a gargalhar:
-Quá, quá, quá, quá, quá... Que bestalhão! Vai Brian, pára de cena, já sei o que tu vais fazer, vais dizer que por uma coisinha à-toa dessas não vais na entrevista de emprego. És mesmo um vadio, quá, quá, quá...
Lembrou-se então que às duas da tarde daquele mesmo dia, tinha uma entrevista marcada no erreagá da melhor empresa local, uma multinacional instalada no último andar do único e recentíssimo arranha-céu da cidade, de onde partira o chamado para uma vaga num ótimo posto de trabalho, que se ele conseguisse bastaria para tirá-lo da lama de vez, pela enormidade dos vencimos e facilidade do serviço.
Então, recordando todo o amor e carinho que dedicara à atual ex no passado; das promessas feitas à mãe de que tudo faria para um dia ser alguém na vida e dessa forma honrar sua memória; lutando contra as contrações musculares, os espasmos nervosos e também uma urticária terrível que faziam-no coçar-se até sangrar; espirrando feito um porco asmático com resfriado, Brian decidiu ir do jeito que desse para a tal entrevista.
Foi para casa tomar um banho que pôs-lhe o corpo em brasa, já que de tanto coçar-se sua pele virara uma chaga só. Vestiu sua roupa mais vistosa, que não era necessariamente a mais limpa, já que ninguém lhe daria emprego trajando bermuda e camiseta, ainda mais numa multinacional. Enfim, ajeitou-se como pôde. Pegou uma caixa de lenços de papel para estancar a coriza incessante que lhe escorria do nariz, embora felizmente tivesse parado de espirrar. Com um pouco de talco disfarçou a vermilhidão da cara e dos braços, perguntassem qualquer coisa diria que tinha passado um final de semana na praia e foi-se embora: "Seja o que Deus quiser".
E talvez Deus não quisesse tanto  assim, pois logo que pôs os pés fora de casa, armou-se e caiu em questão de segundos a mais torrencial das chuvas que jamais havia visto na vida, com muito vento e relâmpagos, como a dizer-lhe "fica em casa, Brian", num improvável exercício sinestésico de elementos sabidamente inanimados.
Mesmo assim ele não desistiu: meteu por dentro da blusa o pífio currículo, que testemunhava sobre os oito anos que levara para completar o ignóbil curso universitário que outros terminavam em apenas três; além dos cargos subalternos que ocupara em empresas de porte nenhum, que faliam misteriosamente após meses sem pagar-lhe o salário; e saiu correndo para não se molhar muito, o que era inútil, em direção à parada de ônibus que ficava à cinco quarteirões de onde morava.
Como nenhum gentil motorista quisesse parar o coletivo dando-lhe portunidade de embarcar sem fraturar algum membro na tentativa, decidiu-se por chamar um táxi, já que também faltavam poucos minutos para a hora marcada. Contou suas moedas embaixo de uma marquise, e quando convenceu-se que tinha o bastante para chegar em seu destino, estando prestes a levantar a mão para o caso de passar algum carro desocupado, qual não foi sua surpresa ao sentir um objeto contundente a pressionar-lhe as costas, e uma voz carregada de ódio e fedendo a cachaça, dizendo-lhe ao pé do ouvido para entregar os pertences: "Perdeu playboy, perdeu, não olha pra minha cara não, senão tu levas uma furada".
Era de se esperar que neste momento Brian desistisse do emprego e de tudo o mais, voltasse derrotado para casa amaldiçoando a dia em que veio ao mundo, e fosse tratar da saúde após uma manhã tão atribulada, mas não foi o que aconteceu. Ele, como que para contrariar o mais racional dos prognósticos, buscando forças do fundo de uma insuspeita teimosia, decidiu que fosse o que fosse, nem que alguém tivesse de morrer, chegaria na droga do arranha-céu e deixaria lá ao menos o currículo ensopado, pois já havia perdido a hora.
Por sorte(?), naquele exato momento um caminhão parava no sinal ao lado dele, que não pensou duas vezes: tomou impulso e atirou-se para dentro da caçamba, indo pousar em cheio em um monte de excrementos, pois não percebera  a tempo tratar-se de um caminhão de transporte de gado, o que ocasionou-lhe nova crise de espirros.
Agora era pessoal. O caminhão seguia lento por causa do temporal, mas ia na direção certa. Após meia hora, já era possível divisar nitidamente os contornos do prédio contra as nuvens cinzentas que afinal começavam a dispersar-se. Ele começou então a pensar de que forma pularia daquela caçamba fedorenta sem estropiar-se
muito quando chegasse o momento certo, mas não precisou dar-se a esse trabalho. No instante seguinte o caminhão colidiria violentamente contra uma kombi, arremessando-o até estatelar-se no asfalto a muitos metros de distância, com as duas pernas quebradas.
Mas desistir? Nem pensar! Catou pelo chão molhado o que havia sobrado do currículo e tentou arrastar-se até a entrada do prédio, que estava apenas a alguns metros de distância, quando foi interrompido por um par de canelas peludas que barravam-lhe a passagem.
Era o motorista da kombi, com um bastão de baseball numa das mãos e um soco inglês na outra, que naquela manhã havia pego a mulher chifrando-o com seu melhor amigo e, depois da batida, vendo que ele também estivera no caminhão, não estava necessariamente com o que se pode chamar de bom humor.
Depois de ser desancado sem dó nem piedade pelo estranho durante alguns minutos até que a raiva do dito cujo abrandasse, Brian, com uma força tirada sabe-se lá de onde, finalmente chegava à entrada do arranha-céu, apenas para ser  informado de que passavam das seis da tarde e que, pelo menos naquele dia, o expediente já havia encerrado.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Um Conto de Vampiros

(com primeiro movimento - Allegro con brio - da 5° Sinfonia de Beethoven)


Meu nome é Edgard d'Brie e sou um vampiro. Como todos os vampiros, não tolero alho, cruxifixos nem a luz do sol. Por isso bebo sangue humano, já que na época em que fui criado pelo meu mestre, há cerca de duzentos anos na Transilvânia, não existiam restaurantes que não pusessem alho na comida, que não tivessem um cruxifixo pendurado na parede em cima do caixa ou que servissem os clientes depois da meia-noite, que é a hora em que tenho mais fome. Como agora.
Passei anos em que vaguei por todos os cantos da Europa. Vi nascer na Inglaterra a revolução industrial que viria mudar o mundo. Testemunhei a Revoluçao Russa ao lado do próprio Lênnin, que me confundiu com um proprietário de terras; coisa que minha aristocrática família humana realmente era, embora hoje não tenham mais terras e apenas negociem ações na Bolsa.
Fui para os Estados Unidos enquanto o continente europeu era devastado pela ofensiva nazista durante a Segunda Grande Guerra, e achei que seria o meu fim, pois todas as cidades Americanas possuiam esta incômoda luz artificial. Que não era fatal mas que deixava meu corpo sem forças, incapaz de perseguir minhas presas para satisfazer minha sede insaciável, coisa que à muito custo consegui contornar, ao me dar conta do alto grau de desenvolvimento da indústria cosmética daquele país, de onde até hoje, aqui do Brasil, mando vir meu protetor solar fator 10.000, o que me permite atualmente até tomar banho de mar quando vou à praia, já que o produto não sai na água, além de ser antialergênico.
Chegui neste país atraído pelo clima alegre e tropical, que muito me agradava quando ainda era vivo. Foram nos anos cinquenta, uma época de ouro,  da malandragem autêntica e da vida boêmia de que tanto sinto falta atualmente. Quando era possível sair todo vestido de preto e envergando minha capa sem ser chamado de emo ou louca por causa disso.
Mas durante minha longa morte sem descanso, descobri que o que é bom dura pouco, então veio o golpe militar e novamente eu tive de me esconder. Foi somente por volta de 1985 que vislumbrei a oportunidade de recuperar novamente todo o meu antigo poder. O regime acabaria e um velho chamado Tancredo iria assumir o controle do país, e tudo o que tinha de fazer era pegá-lo a sós no dia da posse e assumir sua forma, com um truque que me ensinara um amigo meu, o Saci.
E lá estava eu escondido na sala presidencial no dia da posse. Podia ouvir a multidão reunida lá fora gritanto, e já imaginava o meu próprio nome sendo zurrado por aquelas pessoas que seriam minhas escravas; um país gigantesco sob meu comando para que pudesse dispô-lo ao mel bel-prazer. Só que algo deu errado.
O velho que seria empossado, mal sentou na cadeira e foi logo direto pro hospital, sem que eu tivesse ao menos me aproximado, juro. Achei aquilo muito estranho, e meus séculos de experiência não me enganaram: Alguém tivera a mesma ideia que eu e planejava segurar as rédeas do país, o que eu não poderia deixar. Logo descobri que era uma armação do vice, o Sr. Zé Sarney, que inclusive era um vampiro também, mas não tão poderoso quanto eu. E assim então revelei-me e contei meus planos de poder e glória, e disse que para tanto precisava matá-lo, e foi o que fiz, assumindo em seguida sua forma. Ha-Ha-Ha-Ha-Ha-Ha-Ha-Ha-Ha-Ha-Ha!
E já se vão mais de vinte anos desde aquela época em que larguei a presidência mas não o poder. E até hoje tenho causado ódio entre meus pares, a maioria vampiros, duendes, gnomos, elfos, lobisomens, et caterva, que invejam minha longevidade política. Venho sobrevivendo à tudo, desde escândalos de corrupção até acusações de falcatruas diversas, graças ao sangue deste povo já nem tão alegre, que me mantém e me manterá ainda para todo o sempre, Ha-Ha-Ha-Ha-Ha-Ha-Ha-Ha-Ha...

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Comportamentos Mesquinhos

Fazia quase três anos que dividiam o mesmo teto, Igor e Bruna, que era praticamente o mesmo tempo em que se conheciam. Quando foram apresentados por amigos em comum, não falaram, mas ambos sentiram no peito uma pontada macia, dolorosa, mas de alguma forma boa de sentir, como se a pessoa à nossa frente tivesse estendido mãos invisíveis e tocado suavemente em nosso coração. A paixão fora tão intensa que em menos de um mês já estavam morando juntos, para espanto dos conhecidos e pasmo dos pais.
Lutaram no começo contra algumas dificuldades, claro, mas sempre que depois de um dia inteiro na rua econtravam-se de noite a sós, na casinha que tinham alugado, e começavam a fazer amor deliciosamente no colchão comprado com dinheiro emprestado  da mãe de Bruna, o mundo todo desaparecia e sobravam nele apenas os dois.
Os pais, que a princípio se mostraram contrariados quando eles foram morar juntos, acabaram aceitando a situaçao, frente ao impulso do casal. Inclusive depois foi a mãe de Bruna uma das que mais ajudou certa época em que a barra pesou, passando então a visitá-los amiúde.
A única coisa que Igor e Bruna não sabiam, ele trabalhando tempo integral e ela fazendo estágio de manhã do curso de direito que frequentava à noite, era do maior problema que enfrentariam quando aquela loucura inicial passasse: a chegada do tédio. Eles começariam então a imergir naquela monotonia da vida a dois, que alguns chamam de rotina, a cada dia mais e mais fundo...  

  Coisas Que Bruna Odeia Em Igor:
-Sabe quando te perguntam algo já sabendo exatamente a resposta, só para puxar assunto, mas na verdade sem querer ou muito querendo só encher o saco? 
ex: O feijão tá temperado? (sendo que passou a manhã toda cozinhando exalando cheiro de carne-seca e alho pela casa toda). 
Resp:  Prova lá e me responde tú... (dá vontade de mandar na lata).
-E quando a pergunta é feita porque ele quer dizer que a comida tá ruim? (e e ele cozinha tão mal que outro dia fez sopa de limão com peixe fedorento e ainda me  disse que tava bom...)
ex: Hum, mas parece que tá faltando sal.. (e o pai dele tem pressão alta!)
resp: Então enche de sal no teu prato e vai morrer prá lá...
-Mas sabe quando a desgraçada preparou a comida com todo o cuidado, lavou as panelas e a louça dele do almoço,secou a pia, ainda vem o infeliz dizer que move uma palha aqui em casa, pra mim que virei praticamente uma doméstica: 
ex: Mas o fugão tava todo sujo e eu limpei ele hoje de manhã...
resp: Que infelizmente foi a única coisa que fizestes...
-E quando essa pessoa, que não move uma palha aqui dentro, resolve fazer qualquer merda para não ficar para trás? Pôrra, olha esse pensamento mesquinho, "pra não ficar pra trás". Sábado passado eu tive de ir resolver umas coisas de manhã, vim pra almoçar, e advinha quem tinha feito uma cagada na areazinha aqui detrás, deixando tudo cheio de terra pela casa toda?
ex: Olha, môô, reclamastes que tava suja a área, então limpei metade (lógico que a parte mais fácil), joquei no lixo e botei pra fora, olha!
resp: Grandes merdas, porque agora cagastes todo o resto e não sou eu quem vai limpar essa porra toda! 
-É foda, a gente na melhor das intenções e neguinho fazendo disputinha de merda, em vez de tomar vergonha na cara e mudar de atitude; pelo menos parar de fazer as coisas sempre com uma intençãozinha filha-da-puta por trás. Porra, que saco, o país não vai pra frente nunca assim! Muda essa mentalidade, homens do Brasil! pelamordeDeus! E no fim das contas a gente ainda oferece a outra face! É dose!

Foi quando Bruna postou na internet esse manifesto cotra Igor, na sua página do facebook, que os dois perceberam que a relação tinha chegado ao fim. Até a eterna reconciliação pelo sexo não mais funcionaria agora. O convívio diário entre duas pessoas apaixonadas, se não forem tomadas as atitudes certas desde o início, pode ir aos poucos reduzindo esse belo sentimento ao desprezo mútuo. Naquela noite Bruna disse que não queria transar só porque tinham brigado; disse que já estava de saco cheio daquilo tudo, e no dia seguinte ia voltar para a casa dos pais, pra dar um tempo e decidir o que ela ia fazer dali por diante.
Igor também não insistiu muito, não estava mesmo querendo foder; já não tinha mais aquele tesão que sentiu muito forte em Bruna, logo que a conheceu. Agora, nas noites em que ainda se buscavam, era somente pensando no corpo de Júlia que transava, com os olhos bem fechados, para lembrar-se do rosto da jovem e gostosa amiga, mais doce e bonito que o de sua mulher, de quem sem saber por quê enjoara um pouco.    


quarta-feira, 27 de julho de 2011

O Pingüim Que Fumava Maconha

   Estava deitado em casa, me embalando na rede com uma revista no colo que ainda não tinha aberto, quando  minha namorada me ligou:
- Rogério! ai que bom que você atendeu meu amor, você tem que vir agora nesse exato instante aqui em casa que eu tenho que conversar uma coisa muito séria com você pessoalmente!
Achei que tinha acontecido qualquer merda, sei lá por que ela ia me ligar num domingo de manhã com  aquela urgência toda, se não fosse com certeza algo bem grave. Ainda mais porque eu costumo encher a cara aos sábados, e os domingos de manhã raríssimas vezes me pegavam acordado, exceto nos dias em que eu estava amanhecido:
- Pô amor, tem que ser agora? Hoje é domingo e eu nem sei que horas são, o que foi que aconteceu?
-Não posso te falar agora, meu amor, tem que ser pessoalmente aqui. Vem logo que é muito importante e depois a gente almoça juntos.
Achei estranho o modo como ela disse essa última frase, falando baixo como se tivesse aproximado o fone da boca para ninguém ouvir o que dizia...
- Mas o que foi que aconteceu? Tem alguém aí do teu lado, tua mãe tá por aí?
-Amor, não posso falar mais mesmo, vem logo agora que eu estou te esperando, beijo...
E desligou o telefone na minha cara. Quando tentei retornar, só dava fora de área. Embora eu tivesse o número do residencial não gostava de ligar para ele, para não correr o risco de ter que falar com os pais dela, que por um motivo qualquer que me havia fugido não aprovavam o nosso namoro, que já ia para o terceiro ano entre idas e vindas.
Olhei pro relógio, já eram quase onze, resolvi pegar o ônibus até a casa dela e saber o que houvera, aproveitando também para filar um rango, já que só tinha tomado um copo de café preto naquela manhã.
                                                                 ...
Subi pro apartamento e quando entrei os pais dela mal me cumprimentaram, sentados no sofá. Dr. Délio fumando um cigarro e D. Dica com uns olhos esbugalhados tomando uma daquelas beberagens de ervas para emagrecer que empurram pra gente substituir as refeições.
Cristina me puxou pelo braço até o quarto dela onde o irmão Marco jogava playstation e o expulsou de lá, fechando a porta. Aquilo estava muito estranho, e mal ela se virou, quem foi falando fui eu:
- Pô, Cris, que estória é essa que tá rolando aqui? São teus pais que estão com raiva de mim de novo, mas por que dessa vez?
- Amor desculpa, senta aqui do meu lado que eu vou te mostrar o que foi...
Ela estava sentada no computador e me mostrou sua página de relacionamentos, eu que por prudência tinha excluído a minha. Um amigo nosso em comum tinha postado uma mensagem agradecendo a minha presença na marcha da maconha; que tinha sido legal e coisa e tal e que contava comigo para  marchas que o coletivo fosse organizar futuramente. E os pais dela tinham lido aquela prezepada.
Foda-se o cara querer fumar maconha, a vida é de cada um, conheço um bando de maconheiros muito menos escrotos que neguinho que não fuma nada. O pior era que eu não fumava, só tomava umas biritas de vez em quando. Eu tinha ido naquele dia pra dar uma força, sacar o "Movimento Pela Liberdade", que inclusive foi bem fraco, talvez porque a maioria interessada tivesse se esquecido.
- Puta que pariu, por que tu não apagastes isso?
- Amor, não fala palavrão. Foi porque na hora que eu tava abrindo a mamãe veio por trás de mim e acabou vendo...
-  Pôrra, mas agora que a merda tá feita que queres que eu faça?
Cristina não teve tempo de responder a pergunta, que era mais ou menos retórica, mas ela de qualquer forma não saberia dizer o que queria que eu fizesse, já que naquele momento bateram e foram entrando, depois de confabularem na sala, o Dr. Délio e a D. Dica, que ficaram em pé e me fizeram sentar na cama, enquanto a Cris continuava no computador. Foi o velho quem quebrou o silêncio, depois de espalhar a fedentina do cigarro por todo o recinto:
- Senhor Rogério, gostaria que você soubesse que gostamos muito de nossa filha e não admitimos, não admitimos ouviu bem?, que ela ande na companhia de um viciado em drogas. Você viu o que seu amigo escreveu ali para nossa Cristina sobre sua presença naquela reunião de drogados. Eu não estou lhe acusando de nada, veja bem, mas eu gostaria de ouvir de sua boca, meu filho, você fuma maconha?
Olhei para Cristina e vi o pânico em seus olhos. Aquilo havia sido uma armadilha que eles tinham armado contra mim e ela caíra como um patinho. Bastava eu dizer a verdade, que não fumava merda de droga nenhuma e tudo voltaria a ser como antes, ou seja, permaneceria aquela eterna desconfiança sobre até que ponto o meu caráter poderia influenciar negativamente a santa que eles tinham em casa.
O fato é que depois de quase três anos eu já estava de saco cheio daquilo tudo;  até porque independente daquilo, o nosso relacionamento não chegaria a lugar algum. Então fiz uma coisa que eles não esperariam nunca: Que eu dissesse a verdade. Ou seja, menti.
-Dr. Délio, D. Dica, perdão pelo aborrecimento, mas eu fumo maconha sim, e muita! Uma sacola cheia por dia. Inclusive antes de vir para cá fumei um baseado deste tamanho.
   Disse para eles com a cara mais cínica possível e estendendo bastante os braços como um daqueles caras que contam estórias de pescador.
                                                                      ....

No fim da tarde já estava em casa, de novo me embalando na rede com a revista que ainda não tinha lido no colo, sem namorada, sem aporrinhação, mas também sem ter almoçado graças àquela palhaçada de marcha. Pôrra, que merda, tenho cara de pingüim ou praça do exército para ficar marchando feito um babaca por aí, ainda mais por causa de um motivo tão idiota quanto esse, com o país estando a merda que está? Ora vá...
Mas não cheguei a terminar o pensamento, porque naquele instante alguém tocava a campainha. Bosta! Só faltava ser a polícia que o Dr. Délio falou que ia chamar se eu me aproximasse da filha dele de novo. Mas para meu profundo espanto, era o irmão mais novo da Cris, o moleque Marcos, que eu achava que não sabia falar, só jogar playstatyion.
- Ô rapaz, entra aí, repara a bagunça não que casa de homem é assim mesmo, qual é o galho, querem internar a tua irmã por minha causa? Queres um café, água, cerveja, qualquer coisa?
Ele não queria nada. Como nunca tinha estado ali antes ficou olhando meio apalermado até encontrar um lugar para se sentar, ao lado da mesa, onde colocou um papelzinho dobrado que começou a desembrulhar, até tirar de dentro um baseado todo amassado, parecendo uma minhoca suicidada, e então falou:
- Aí Rogê, é assim que todo mundo te chama né? Fiquei bolado com a onda hoje lá em casa, mas tu fostes muito firme, cara, falastes na cara dos velhos e achei foi bem-feito, pra eles deixarem de ser caretas, achando que podem montar nos outros. Aí falei pra Cris: 'pô, o  teu namorado deve tá na pior'; mas ela falou: 'foda-se', aí eu pensei, 'pô, eu tenho uma massa paraguaia aqui, vou levar pro Rogê aí ele vai ficar numa nice', já que tú fumas também...
Puta merda, e mais essa! Agora ia ter que explicar pro guri que eu menti pros pais dele, só porque sabia que aquele era o melhor jeito de me livrar completamente das aporrinhações, atual e futuras; que não fumava aquilo e ainda por cima achava uma perda de tempo. Mas já tinha decepcionado gente demais naquele dia, e o garoto não tinha culpa de nada, achava que tinha ido lá me fazer um favor. Então me peguei dizendo as seguintes palavras:
- Faz o seguinte então, vai acendendo aí enquanto eu vou aqui na cozinha ver se  acho um cinzeiro ou qualquer merda assim... Não queres mesmo uma cerveja?

terça-feira, 26 de julho de 2011

Roteiro de Cinema Experimental

Cena 1: (primeiro plano)Ariosto, sentado em sua escrivaninha, está compenetrado, olhando com um lápis numa das mãos e a outra enxugando o suor da testa, para o almaço que tem à sua frente. Tenso, vê as horas no mostrador do relógio de pulso, risca alguma coisa no papel em largas traçadas, utilizando de tanta violência neste gesto, que a ponta do lápis se parte. Enfurecido, Ariosto grita palavrões incompreensíveis (sua voz confunde-se com o ruído de uma música que não se sabe de onde vem), quebra o lápis em dois apenas com a mão esquerda, amassa a folha de papel e desamassa-a em seguida, pois decidiu picá-la em pedacinhos, e é o que começa a fazer até que lhe surge uma dúvida: "Não seria melhor queimá-la?"(ha, o cinema mudo). Então joga tudo no lixeiro repleto de papéis, as sobras amarfanhadas do texto maldito,porco, inútil, desprezível. Vai cuspindo essas e outra injúrias entre dentes (agora podemos entendê-lo, fala um português chiando com os "esses"), rosto vermelho, contraído de ódio.
Cena 2: Ariosto tem uma aparência horrpilante enquanto vai procurando na geladeira (um rádio espantosamente pequeno está em cima desta), em meio à restos de miojo e latas de salsicha, a garrafa de aguardente, mas não encontra-a no único lugar onde pode procurar, pois além da geladeira enferrujada e da mesa que usa como escrivaninha, só possui  uma estante, uma poltrona e uma rede puída, no apartamento de apenas uma janela onde mora. Furibundo, chutando livros, latas de cerveja e maços de cigarro vazios espalhados pelo chão, enxerga a garrafa de cachaça (close na garrafa) postada entre dois livros na estante, provavelmente exemplares de alguma enciclopédia vendida à metro (a câmera vai abrindo e vemos enfileirados na prateleira as lombadas idênticas da Enciclopédia Barsa. Corta novamente para Ariosto, que vem com o mão -sinistra- estendida pegar a cana).
Cena 3: Com o semblante mais aliviado, Ariosto tem agora a garrafa segura em suas mãos, puxa-lhe a rolha com alguma dificuldade e entorna um grande gole direto do gargalo, fazendo os exercícios faciais de praxe para ajudar o líquido a descer melhor enquanto massageia o queixo com a mão livre (direita), como se tivesse levado um soco. Olha demoradamente então para o rótulo amarelo enquanto pensa em algo. Em seguida vira a cabeça em direção ao cesto de lixo (close no cesto), onde uma baratinha passeia trôpega entre os restos da literatura chinfrim que foram descartados, reforçando a sensação de abandono/desleixo com o ambiente.
Cena 4: (volta para Ariosto, abrindo...) Ele caminha devagar e pára  ao lado da lixeira. Os movimentos agora são graves e ponderados, como se tivesse tomado uma decisão irrevogável. Destapa novamente a garrafa, dá mais um gole (este um pouco menor) e começa a derramar o líquido inflamável sobre o papel amarrotado, espantando a baratinha, que escorrega para o fundo, meio embriagada. Depois derrama o restante sobre os papéis em branco e por fim em toda a mesa. Perscruta os bolsos em busca de fósforos, onde não os encontra, mira então na direção da cozinha e vai apanhá-los (aqui a câmera pode ser posicionada por trás da caixa e do maço de cigarros sobre a pia de resina imitando mármore, enquanto ele se aproxima. Por essa perspectiva vemos que usa no dedo anular uma aliança, ao pegar o cigarro e a caixa antes de retornar ao quarto-sala-escritório).
Cena 5: (aqui a câmera pode focar de qualquer lugar: da estante, de cima da pia, ao lado do rádio pequeno mas barulhento; o importante é enquadrar Ariosto em pé, de frente para a mesa de onde pingam gotas de  cachaça) Seu semblante agora é diferente, calmo, resignado, como se o que estivesse prestes a fazer fosse apenas uma obrigação ordenada por algum superior, a que ele não tivesse nenhum interesse  vinculado. Com a mão (direita) retira um cigarro do maço (filtro vermelho), leva-o à boca e com o gesto calculado risca um fósforo. Acende-o, tomando o cuidado de manter o palito aceso, dá uma boa tragada, depois solta a fumaça pela boca e nariz ao mesmo tempo. Olha pela última vez os escritos do que imaginava uma carreira de sucesso, em sua mão o  fósforo negro retorcido com a chama quase no fim, e solta-o sobre a escrivaninha, iniciando a combustão.
Última Cena: As chamas crescem e começam a ganhar corpo. Ariosto continua fumando seu cigarro, olhando impassível enquanto seus poemas, contos, artigos, o projeto inacabado de um romance, tudo o que ninguém jamais viria a ler, queimam na sua frente, entre fumaça e cinzas que tomam completamente o pequeno recinto (efeitos especias). Uma sombra de melancolia perpassa sua fisionomia, os olhos tristes, como se tivesse lembrado de alguma coisa que deveria salvar do fogo, mas que já não é mais possível. (Nesse momento a câmera começa a dar voltas ao redor de Ariosto e da mesa em chamas, a princípio devagar, depois cada vez mais rapidamente, até que alcança uma velocidade espantosa e sai voando pela única janela em direção ao céu, enquanto acompanhamos seu apartamento, o dos vizinhos ao lado, o prédio inteiro, vários prédios ficando para trás, a imagem distanciando-se cada vez mais alta e mais longe entre as nuvens, a cidade inteira, o estado, o país, o continente, até que tudo some,  mergulhado num profundo infinito azul.)

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Francisco, o Barata

"Certa manhã, ao acordar de sonhos intranquilos,
Gregor Sansa notou que havia se transformado em um gigantesco inseto..."


Que baratas são seres insignificantes, nisso parece que todos estão em perfeito acordo. São insetos nojentos, asquerosos, repugnantes, dos quais não se pode tirar nenhum proveito, e o que é pior: essas criaturas infestam o mundo, andando por qualquer lugar sem se deterem ao maior obstáculo. E dizem alguns, caso haja uma guerra nuclear que ponha fim à vida neste planeta, as baratas serão as últimas a perecer. Mas o que será agora narrado não contém nenhum discurso contra ou a favor desses insetos e sua insignificância, e sim tratará do sentido atribuído ao que rotulamos como sendo “insignificante”; se não será tudo apenas questão de estreitas vistas; há quem dê máxima importância às menores coisas; vejamos:
Chico Capanema bebia tranquilamente com seus amigos de copo num bar situado à Rua Que Tinha Nome de Santo e, ao notar que todo mundo estava meio bêbado, aproveitava para tentar paquerar uma amiga sua, pensando que se talvez levasse um fora da moça, o que era muito provável, pelo menos poderia utilizar a embriaguez como desculpa no caso de cometer qualquer descompostura.
Só não sabia Chico que desculpa nenhuma ele teria de dar-se ao trabalho de elaborar, pois a foice da morte ceifaria sua vida naquela mesma noite, dali a alguns instantes, no momento em que ele teria a infeliz ideia de urinar na rua, ao invés de utilizar o imundo e fétido, porém seguro, banheiro do bar no qual o grupo curtia essa noite de lazer.
Pois pensemos no que aconteceu; do momento em que a ingestão de grande quantidade de fermentado de cevada produziu em Chico Capanema uma irresistível vontade de tirar água do joelho; de como ele raciocinou um pouco sobre as condições de higiene dos locais frequentados pela juventude de sua querida cidade nas noites de sábado, e ele se orgulhava de ter nascido com certa inclinação a esse tipo de devaneios; a forma como calmamente pediu licença aos amigos para levantar da cadeira: “Um instante que vou aliviar um pouco a bexiga”. Como dirigiu-se à esquina do cruzamento entre a Rua Que Tinha Nome de Santo com a Rua de Data Histórica Já Esquecida, ignorando a sugestão dos colegas de utilizar-se da latrina do bar. E as derradeiras palavras que dele escutaram: “Além do mais, vejam, a esta hora da madrugada quase não passam mais carros. Já volto...”
E essa foi a última vez que viram Capanema com vida, já que após ouvirem seus gritos, logo encontraram seu corpo completamente despedaçado. Fragmentos do que restara de seu cadáver espalhados por toda calçada numa grande maçaroca de ossos esmagados e vísceras, coitado, quase irreconhecível, não tivesse a cabeça caído intacta num canto meio afastado do restante após rolar para dentro da sarjeta, onde um pouco de seu próprio mijo, que para lá havia escorrido e se acumulado, molhava-lhe os cabelos empapados de sangue. Uma visão horripilante que fez com que todos vomitassem a cerveja consumida durante a noite nos despojos do pobre diabo, dando um toque final absurdo à construção de cena tão chocante e grotesca.
Afinal, enquanto Chico urinava em cima de um monte de jornais velhos e amassados, ficou pensando distraído em toda pequenez do ser: “Como pretendemos ser quem desejamos se somos incapazes de aceitar o que há de mais natural no mundo, à exemplo desta baratinha tão ridícula que saiu de dentro dos jornais? Com certeza tem medo de morrer por causa de um simples jato de mijo. Aliás esse instinto que preserva os animais é o que nos difere desta mísera insignificância, pois sabemos-nos racionais e superiores, e quando tudo o mais é inevitável, não temos melhor opção do que aceitar o que nos é dado irremediavelmente. Coisa patética é esta baratinha, cujo corpo asqueroso desfarelo agora numa simples pisada, esmagando sua inutilidade pastosa neste chão. Vá para o inferno, inseto, com certeza ninguém sentirá sua falta. Ai, ai, hoje eu tenho de dar um jeito de ficar com a Ritinha, da rapaziada só eu ainda não peguei essa mulher...”
Imaginou então, por escusos caminhos mentais que não convém aqui detalhar, como o fato de ter ido até a esquina urinar havia guiado seus raciocínios sobre assunto que nunca se dera conta antes. “Que boa idéia minha ter vindo mijar aqui...”
E foi então que Chico Capanema sentiu uma pessoa atrás de si, mas não teve tempo de virar para ver de quem se tratava, pois um imenso tênis de borracha, com meio metro de espessura só na sola, acertava suas pernas nesse átimo, arrancando-as violentamente, enquanto ele caía agonizante emitindo urros histéricos de dor e pavor; até que finalmente pôde divisar o feíssimo gigante vestido à maneira de um jovem, o qual ele lembrava já haver visto nalgum canto, desferindo golpes violentíssimos com o bico do tênis em seu corpo, reduzindo-o à farelos, tal qual uma barata esmagada, deixando-o da forma como seus amigos o encontram.
“Que vermezinho escandaloso este que acabo de pisar; cheio desta coisa nojenta avermelhada; vá encontrar o capeta, inseto insignificante...” Assim pensou Francisco Interior Paraense, enquanto fechava a braguilha: “Ótima ideia ter vindo aqui ao invés daquele banheiro de quinta, suspiro, de qualquer jeito aquela mulher vai ser minha hoje, he, he...”
E assim calmamente retornou à mesa, relembrando o que havia pensado sobre as coisas pequenas, quando aquele momento levou-o a refletir sobre tais assuntos.

domingo, 24 de julho de 2011

O Décimo-Terceiro Andar (à memória de Amy Winehouse)

"Você está pensando mas você já sabe,
agora você sabe que acabou,
pensa agora em como irá chegar
ao fim do caminho que escolheu."


     A chuva caia violenta há cerca de duas horas, as nuvens persistentes davam a perceber que o temporal se prolongaria noite adentro. Pouco passava das cinco da tarde, mas já se viam as lâmpadas da iluminação pública acenderem-se por toda a cidade.
    As notas que saíam atropeladas do rádio, gotas estourando contra a vidraça do lado de fora, a impressão de alguém no corredor espiando pelo buraco da fechadura e até a própria respiração deixavam Alhisson paranóico, distanciando-o da realidade para sombrios pensamentos interiores. Sufocado entre recortes de imagens que vira durante a semana, desde que recebera os vencimentos até aquele dia, talvez dois ou três em que não fora trabalhar, permanecera naquele apartamento imundo, saindo apenas a intervalos regulares para comprar mais drogas.
    Tinha acabado de usar outra dose da substância entorpecente no envelope, e sua cabeça ficara vazia de novo. Durante o curto momento em que sentia o efeito da droga, cloridato, óxido, opiáceos, chás, o que estivesse à mão, sentia-se isolado da rudeza do mundo exterior. A sensação que tinha nessas horas era a de não estar ali, acuado pela pela chuva feito bicho, num corpo esgotado e cheio de eczemas, com a doença do vício a corrroer-lhe o cérebro devastado.
    Via-se como habitante de um plano paralelo, como personagem de desenho animado, efeito de poucos minutos, pois logo tinha de fugir dos perigos que surgiam, onde cada objeto escondia por trás de sua aparência inocente armadilhas terríveis, que buscavam aprisioná-lo à podridão daquele mundo de horrores em technicolor. Ali era impossível permanecer um minuto sossegado, simplesmente pelas coisas não serem como elas deveriam ser, desfazendo-se, derretendo e mudando a todo momento de forma, rastejando por entre seus pés como cobras, esperando apenas que se distraísse para feri-lo mortalmente.
     O rádio ligado numa estação de rock continuava a tocar uma música que Alhisson não sabia se era a mesma de momentos atrás, simplesmente porque não se lembrava nem da música de um segundo atrás, tamanha a quantidade de drogas ingeridas somente naquela semana, que rapidamente haviam deteriorado a saúde do infeliz adicto, levando-o em breve às portas da loucura ou mais brevemente ainda à morte por overdose.
     Perambulou sôfrego pelo pequeno apartamento tropeçando nos próprios pés. Vasculhou minuciosamente os poucos móveis , as roupas encardidas, sacolas e bolsas, cada armário, cada fresta onde sua débil consciência lhe indicava haver tesouros escondidos, moedas perdidas, um toco de cigarro, restos do entorpecente do dia anterior no fundo dos bolsos e sob as unhas. No seu estado mental qualquer coisa poderia adquirir o brilho do ouro reluzente, ou o seu oposto, o chumbo cinzento que tinha sido derramado pelos deuses sobre as nuvens apenas para castigar seus atos.
     Enquanto esquivava de sombras medindo cada passo, notou que suas roupas estavam sujas de excrementos; urina e fezes faziam uma fresca e enorme mancha em sua calça, tinha evacuado sem perceber. Sentia agora um torpor, a cabeça zumbindo misturava os sons que vinham de fora com o barulho do rádio.  
     Pegou o envelope amassado com o que sobrara do alucinógeno e enfiou-o na boca, mastigando e engolindo seco a mistura de papel amargo que amorteceu-lhe completamente o corpo exausto, faltando pouco para o sono vir nocauteá-lo.
     Suas forças sumiam-se, não existiam mais sons, imagens, pensamentos, Alhissom não mais existia. Suas pálpebras fechavam-se com o peso das nuvens, cada vez mais violentamente mandando as gotas de vidro contra a única janela do apartamento, para onde ele tentava olhar agora, até que ali finalmente enxergou:
    Uma enorme cama aparecera à sua frente, lençóis e travesseiros brancos, o colchão igual ao que gostara na vitrine de uma loja. Lembrou-se que as costas doíam-lhe todo dia, quando de manhã levantava da rede de fio batido onde dormia. Por isso não achou estranho que no lugar da janela aparecesse uma cama macia, onde poderia repousar seus membros fatigados.
     Experimentou então um sobressalto. Sabia agora o que deveria fazer. Livraria-se do peso que há anos carregava nos ombros, das dores, ânsias de vômito, diarréias inesperadas; a decadência acelerada do organismo combalido não mais levaria-o à cova. Então poderia retornar ao trabalho, brincaria e contaria piadas aos colegas como antigamente, ligaria para sua namorada de tantos anos e diria à ela que viesse visitá-lo, iria deixá-la surpresa com a cama nova, sinal de que começava a mudar e de que as coisas iam ser diferentes do absurdo que eram.
     Sonâmbulo, os últimos pensamentos que teimavam ficar abandonando de vez sua cabeça, deixando-a límpida como um cristal recém-lavado posto sob o sol, que no dia seguinte ele poderia novamente encher com idéias maravilhosas para sua nova vida.Espreguiçou-se num bocejo, espalmou as mãos contra o rosto para ficar mais confortável, apenas um débil sorriso aparecia na boca de dentes estragados.
      Então, daquele cubículo com apenas uma janela, sem proteção além do vidro, do velho prédio onde morava, dum décimo-terceiro andar, atirou-se feliz contra a alvura do leito.
     Os que encontraram o corpo na calçada, deitado de lado, as mãos espalmadas servindo de travesseiro ao crânio espatifado, os joelhos dobrados contra o peito, encolhido na posição fetal, ainda com um vago sorriso nos lábios partidos e uma poça de sangue que escorria em filetes acumulada no meio-fio, tiveram a mesma impressão à respeito de Alhisson:
     Dormia profundamente.

sábado, 23 de julho de 2011

Sobre os Insetos

"O pato é quem é mais inteligente que o homem; nasceu de dedo grudado para não ter que usar aliança..."


Quando Deus fez a terra planejou tudo, toda a beleza que seria Sua criação até nos menores detalhes, bem antes de pôr-Se à obra, o que deu motivo para que certas pessoas prefirissem chamá-lo de Grande Arquiteto, provavelmente os arquitetos.
De qualquer forma, prestando atenção à natureza pode-se vislumbrar um pouco desta razão que parece ter criado o design de bichos peculiares: a girafa, que tem um pescoço longo para comer as folhas das copas das árvores; o elefante que usa da tromba como se de um braço; o leopardo, do qual animal algum ganha na corrida; e muitos outros exemplos de bichos que vivem na água ou na terra, no quente ou no frio, bichos esquisitos e outros nem tanto,o certo é que todos imprescindíveis para o perfeito andamento dos desígnios divinos. Inclusive os minúsculos insetos, que exercem suas importantes funções praticamente invisíveis, a não ser quando reproduzem-se descontroladamente e são tratados como praga.
Foi assim que as formigas e as abelhas, não podendo ocupar o mesmo nicho sem o risco de dizimarem-se pela competição, foram sabiamente alocadas, uma a voar e a outra a andar pelo chão da floresta, de forma que ambas tivessem opotunidades maiores de sobreviver ao ataque dos tamanduás-papa-formiga e das vespas-bebedoras-de-mel.
Nessas duas sociedades, e é sabido que até os bichos buscam o progresso, construiu-se uma forma de governo muito equilibrada, perpetuando-se deste tempos imemoriais, onde a organização perfeita dos afazeres permitia a todos o quinhão correspondente à sua cota de sacrifício, tanto entre os que buscavam folhas quanto entre quem visava o pólem das flores.
Como não há progresso na anarquia, quem comandava a produção do que era executado pelas abelhas e formigas operárias durante o dia eram a abelha e a formiga rainha, através de uma burocracia sustentada, ali pelos zangões supervisores da colméia, aqui pelas formigas-de-fogo, que supervisionavam tudo dentro do formigueiro, ambas pertencentes à classe encarregada do cansativo trabalho de ficar olhando os outros trabalharem.
Nada poderia quebrar esses dois exemplos de sociedade justa e igualitária, mas como a exceção que confirma a regra, havia um porém: já que era a formiga-rainha quem mandava, pois além do mais era a única que podia botar larvas de mais formigas, somente ela podia receber a melhor e mais saborosa parte do fungo produzido, dando-se o mesmo na colméia com relação à abelha-rainha, que conseguia tomar sozinha mais mel do que duas dúzias de zangões juntos.
Acontece que os tais supervisores começaram a achar pequena sua cota na hora da divisão dos lucros, alegando que sua atividade, devido à grande responsabilidade, deveria receber uma parte maior do bolo, no que foram duramente repreendidos pelos superiores. Acontece que, insatisfeita, a classe acolitou-se numa confraria secreta, conseguindo assim burlar a vigilância das suas respectivas rainhas, ao contrabandear para si uma parte muito superior do alimento que lhes caberia numa divisão justa, mesmo que para isso estivessem deixando várias abelhas/formigas operárias morrerem de inanição. Com o fito de manter tudo no mais absoluto sigilo, os membros da impoluta confraria minimamente suspeitos de tentar delatar o arranjo eram sumariamente julgados, condenados e mortos por seus pares, que assim conseguiam dormir com a consciência um pouquinho mais tranquila.
Só que aí o Criador achou isso tudo uma patifaria, pior que Sodoma e Gomorra, resolvendo então de última hora acabar com formigas e abelhas usurpadoras do bem comum: botou no mundo uma criatura estranha, o homen, que mais parecia um projeto piorado do macaco, já que deste não contava nem com a proteção dos pêlos nem com a dignidade de uma cauda, o que era motivo de imaginarem se desta vez o Grande Arquiteto não se enganara ao deixar um projeto notadamente incompleto.
O que não contaram foi que o homem, nú e com frio, usou da inteligênca que havia recebido a critério de indenização, e com o couro dos outros animais e às vezes até do seu semelhante, inventou as roupas, para logo em seguida um feio inventar a moda. Foi assim que devido à caça indiscriminada acabaram-se as onças da floresta, pois sua pele tinha uma apreciação altíssima nos leilões da alta-costura, o que levou consequentemente a um inédito desequilíbrio ecológico: a começar pela superpopulação de tamanduás que dizimou as formigas, até o gigantesco enxame de vespas-bebedoras-de-mel que levou as abelhas ao extermínio.
E como Deus viu outros animais tão ou mais desobedientes por aí, resolveu castigá-los também de forma semelhante, utilizando-se do homem e suas manias para este fim, até o dia em que Ele sem se dar conta acabou deixando o homem só no mundo, e foi o fim da pobre raça.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Caso Fortuito

" Eles jogam este jogo como se não soubessem que o jogam; um jogo onde você também é obrigado a entrar, por mais que saiba que tudo não passa de uma farsa."



João José segurava um tufo de cabelos na mão esquerda enquanto com a direita empunhava uma arma descarregada . Espalmou o tufo de cabelos em sua própria cabeça, amarfanhando o enxerto por entre seu penteado para que não fosse percebido ali.
Olhou-o no espelho, estava aperentemente perfeito o mecanismo de explosão do artefado cabeludo, faltava apenas testá-lo: observou novamente o tambor da arma certificando-se da completa ausência de balas ali, em seguida levou-a à boca, apontando um pouco para cima, onde a tragetória de um tiro fictício atingiria em cheio o tufo de cabelos plantado no topo de seu crânio. Apertou o gatilho da arma acionando simultaneamente o da bomba, congratulando-se com o objetivo alcançado, pois haviam voado cinza e cabelos para todo o lado, além de muita fumaça, criando a ilusão de que ele havia estourado os miolos.
"Essa vai ser engraçada, quero só ver se a Serena continua serena depois dessa, he, he..." , pensou João José, rindo do próprio trocadilho idiota com o nome da namorada, ela que dentre as coisas que odiava em Fred, uma era seu insípido senso de humor. Só estavam juntos porque cada vez que ela pensava nele não deixava de se entreter com a estória incomum da origem de seu nome: Como uma das avós queria que ele se chamasse João e a outra José, e os pais adoravam Frederico, resolveram botar-lhe logo os três nomes para evitar a confusão, felizmente solucionada quando o tabelião, objetando que criatura tão pequena recebesse a trinca de nomes mais o Espíndola Parente Morgado como apodo, sugeriu aos pretimosos pais que o batizassem João José para agradar as avós, e chamassem-no Frederico, ou Fred como gostava de ser conhecido, apenas na intimidade do lar, e assim fizeram.
José Fred adentrou a casa da namorada com os apetrechos escondidos em sua mochila, mas quem encontrou deitada no sofá assistindo tevê e cutucando as unhas do pé com um espeto de churrasco, foi a irmã mais nova desta, Úrsula, que prontamente perguntou se ele tinha esquecido de como se bate numa porta, pois Serena tinha saído e ia demorar bastante, ele que fosse embora ou esperasse no quarto dela, pois ela queria ver a novela em paz.
Úrsula achava que odiava Frederico. Toda vez que ele vinha visitar Serena,
sentia o peito doer de uma dor diferente, lá dentro; não suportava imaginá-lo beijando e acariciando a irmã e as coisas que faziam trancados no quarto; achava que ele não era uma boa influência para a pobre irmã, que diziam possuir chifres maiores que os das renas de Papai Noel, pois como todo homem que se preza, José João não valia uma unha encravada, e quando Úrsula se referia a ele, mesmo em pensamento, e não eram poucas as vezes em que ele vinha-lhe à mente, tratava-o sempre por Frederico.
Gostaria que ele tivesse ódio dela, sem perceber que tal comportamento era devido sua falta de maturidade, jovem e tola demais para entender o que fosse da confusão dos próprios sentimentos em relação ao namorado da irmã.
Mas como Fred não confiasse em Úrsula, resolveu telefonar e confirmou sua suspeita: Serena já estava à caminho, podia esperar que em poucos minutos ela estaria em casa: "Então vem depressa mesmo, que eu tenho uma surpresa pra ti. Não posso falar agora o que é, amor, vem aqui que tu vais ver. Não, que besteira, não é nada de mais, só um negócio que eu quero te mostrar"
Como teria que esperar um pouco ela chegar, resolveu comer alguma coisa na cozinha antes de se preparar para a brincadeira que tinha armado, logo dirigindo-se à geladeira e de lá retirando uma vasilha com restos de frango com farofa do almoço, que pôs-se a devorar.
No entanto, a mochila com os apetrechos ele esqueceu na sala, encostada ao sofá onde Úrsula no momento espreguiçava-se, e ao notá-la largada ali, a moça não resistiu à tentação e resolveu "dar uma olhada no que esse idiota carrega nesta porcaria pra cima e pra baixo, encardida de tanto tempo que ele não lava.", pensou enquanto certificava-se de que ele estava ocupado na cozinha e não iria aparecer pelo menos pelos próximos instantes ali.
Encontrou primeiro o tufo de cabelos explosivo, achando que Frederico José era ainda muito novo para usar peruca, ainda mais amarfanhada e rombuda igual àquela; a seguir encontrou a arma, e o que passou pela sua cabeça durante o tempo em que segurou-a nas mãos, encheria centenas de páginas, se possível fosse escrever ou até falar rápido o suficiente para acompanhar a velocidade do pensamento, mesmo no caso de Úrsula, que não tinha o pensamento lá muito ligeiro. E mais tempo ficaria manuseando a arma que fascinara-a, um trinta-e-oito prateado de cano longo e coronha emborrachada, mas percebendo a tempo que Fred retornava, guardou-a logo.
Ele vinha roendo uma coxa de galinha fria praticamente sem nenhuma carne, pegou a mochila do chão aparentemente sem perceber nada, enquanto Úrsula, um tantinho nervosa, fazia cara de paisagem como se não tivesse bisbilhotado suas coisas, e foi alojar-se no quarto da namorada para preparar tudo daquela que seria "a brincadeira do ano! Ela vai ficar tão puta da vida que pode até passar uma semana sem falar comigo, he, he..." imaginou, achando graça em algo onde pouquíssimas pessoas seriam da mesma opinião, algumas possívelmente até qualificando-o como retardado sem noção, come merda, rasga dinheiro, debilóide, e expressões do gênero referindo-se a seu humor extrovertido e pouco convencional.
Serena chegou momentos depois em casa, e foi logo perguntando pelo namorado. Úrsula por instantes ficou em dúvida se contava ou não à irmã o que tinha visto na mochila de Frederico, mas não teve tempo para decidir-se, pois ele veio nesse exato momento de dentro do quarto, com o cabelo bastante estranho, ridículo para dizer a verdade, meio despenteado como ele sempre andava, com um calombo no topo que Serena não fazia idéia do que fosse, mas que sua irmã identificou como sendo aquela estranha peruca que havia visto na mochila dele junto com a arma, que ele empunhava na mão direita, enquanto fazia um cotoco com os dedos da esquerda, chamando uma de vagabunda e a outra de bocó e dizendo que ia se matar na frente delas por causa disso(?), ante o espanto de ambas que ele conseguisse falar com um cano de ferro encostado no céu da boca, sem no entanto dar a Serena e Úrsula ocasião para impedir seu ato treslocado, ao pressionar ao mesmo tempo o gatilho da arma e da bomba, ouvindo junto ao estrondo e gritos histéricos de povor e terror, um som que vinha da televisão, a música de encerramento da novela que Úrsula adorava assistir e que serena não dava a mínima importância.
Difícil explicar o porquê da brincadeira tão bem elaborada por João José Frederico Espíndola Parente Morgado ter falhado tão estupidamente, ou funcionado perfeitamente bem, já que os pensamentos fluíram-lhe em jorros através de algum buraco no alto de sua cabeça. Impossível para ele seria explicar a ambas o que haveria de engraçado naquilo tudo, já que com o tiro sua língua voara prum canto e caíra em cima de um móvel no canto da sala, entre uma coleção de brindes de lanchonete e alguns incisivos chamuscados, não parecendo muito disposta e articular palavra a quem quer que fosse.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Um Conto Americano

"Porque concluir ou reconhecer uma aprendizagem não significava necessariamente passar a agir de maneira diferente."


        George Gardner,um cidadão americano como outro qualquer, apaixonou-se por Betty, uma loirinha corada e sardenta, com grandes blue eyes, que costumava arregalar de espanto ao colocá-los sobre as invenções por vezes malucas do pertinaz pretendente, que tentava amiúde de todas as maneiras conquistar o coração da bela objeto de sua paixão; esta que achava sempre muita graça no jeito apalermado de Mr. Gardner dizer e fazer coisas esquisitas, como subir de costas nos postes da rua e gritar lá do alto seu nome de trás para frente e de frente para trás, e debaixo para cima e de cima para baixo, durante vários dias se a police não aparecesse.
Certo dia, sem muito sorrir e com a expressão um tanto sombria, mas até por isso muito mais bonita, pensou George, ela chamou-o para que conversassem sossegados num coffee shop, pois tinha uma coisa importante que precisava dizer-lhe. 
Os dois entraram no estabelecimento que ficava na esquina de St. Paul Street com a BirdCat Avenue, atraindo os olhares dos que estavam lá dentro e que já eram conhecidos de George à tempos, ele portanto não precisava mais cumprimentá-los toda vez que os via, o que seria uma coisa mais estúpida de fazer do que as coisas estúpidas que ele sempre fazia.
Betty sentou-se à sua frente numa mesinha dos fundos e pediu uma diet coke e um copo com gelo, enquanto ele preferiu uma budweiser que começou a tomar meio de lado, para fingir que estava distraído do que ela tinha para falar, o que não era verdade, pois ele estava muito curioso e só fazia isso porque tinha lido numa revista brasileira uma dica assim: para fazer as mulheres enloquecerem basta demonstrar uma calculada indiferença enquanto falam. E Betty parecia mesmo estar ficando doida com o comportamento dele, tanto que xingou-o mentalmente de ' foolish sweet ass' e teve vontade de atirar-lhe à face o copo com refrigerante e as pedras de gelo.
Sem poder continuar parecendo distraído, por medo de ter seus olhos baços perfurados por um caco de vidro se persistisse naquela patetice, tomou então um gole da lager com grande empáfia, encarou novamente os blue eyes de Betty. Eles estavam arregalados como ele nunca os tinha visto, da cor do grande oceano à oeste que lavava a areia branca das praias da California,  como se o que ela estivesse para dizer não fosse tolice ou capricho, mas algo vital,como o respirar de quem nasce e que só pode vir ao mundo com um choro de abundantes lágrimas, tantas quantas forem necessárias para encobrir com sua volúpia um olhar tão belo e misterioso e profundo, como o pacific ocean blue nos olhos da garota.
"So, Betty, what's the matter?"
"Oh George, it's so hardly weight for me! I wouldn't can tell you about all that shit becouse i promisse to myself, but i was thinking..."
Mas ela não terminou a frase, pois desta vez George estava olhando para a tevê em cima do balcão onde estavam transmitindo o playback de um jogo dos Sucks vs.Bitches, uma daquelas partidas de football maçantes, esporte violento e sem sentido que eles, americanos violentos e sem sentido tinham inventado para competir com o soccer inglês, mas que infelizmente só ficara popular dentro de seu próprio território.
Betty então terminou sua coca, deixou uma nota de dólar em cima da mesa, levantou-se e foi embora sem falar mais uma palavra com aquela besta que tanto tempo importunou-a dizendo-se apaixonado, mas que era apenas um dos tantos assholes existentes por aí, que se mexem e perambulam  sem mais o quê na cabeça, e sem vontade fazem qualquer coisa para não acabarem ficando muito entediados. 
George fez menção de levantar e sair também, mas continuou sentado e pediu outra cerveja, não mais prestando atenção ao programa de esportes, sentindo por dentro uma tristeza repentina, que não era bem tristeza porque era também um pouco de felicidade.
Uma melancolia por não ver mais uma vez os blue eyes de Betty, misturado com alegria por saber que eles existiriam ainda por muito tempo com seu brilho que ele infelizmente não conseguira suportar, o peso da confissão de um segredo íntimo, que talvez tivesse a ver com a intimidade dos dois, mas se nem namorados eram, ela não pediria uma coisa dessas a ele e nem ele pediria nada a ela.
Foi então por um momento, quando já terminara a segunda cerveja,  que mr. Gardner lembrou-se da resvista estrangeira onde lera a dica, que naquele país tropical resumiam essa estranha sensação de perder algo que nunca se teve de verdade, com uma única palavra, nem bela nem feia, mas cujo significado ele desconhecia, como a estranha sensação de estar vivo e ter um filho que já morreu.

Gentis gentes

" A grande ordem de todas as coisas é o caos girando desordenado."



Na completa escuridão reforçada pelas luzes bruxuleantes dos postes na noite úmida do cais, desembarca do seu encouraçado, Sépia dos Mares, o famigerado marinheiro Peqod, com suas botas lustrosas de sugeira da Bahia de Todos os Rios, onde dejetos da feira livre Verídico-Peso coalham as ondas barrentas e reagem quimicamente com a respiração dos bacus de esgoto, num fenômeno desconhecido de cientistas em geral, mas muito apreciado por todo tipo de turista desavisado.
Sentindo a brisa fresca impregnada de pitiú de tamoatás decompostos misturados à xepa, o marinheiro, com seu corpo rotundo marcado por picadas de insetos das longas invernadas no interior dos mais ermos interiores do Estado de Nossa Senhora do Grão, caminha bêbado com seu parco equilíbrio, mais acostumados com os balanços de um barco alcólatra que com a imobilidade nauseante da terra estática de pés quebrados.
Perscrutando em redor ansioso feito um fugitivo, Peqod se pergunta onde pode haver uma taverna aberta naquela estranha cidade, onde os restaurantes costumavam fechar as portas durante a hora das refeições; um lugar onde o absurdo não encontrara resistência ao propagar seus fios e instalar-se, feito bactérias numa placa de petri,  desenvolvendo-se a ponto de coisas absurdas de nomenclatura duvidosa ocorrerem amiudadamente até mais não poder.
"Ergo a voz, meu pobre espírito fatigado de guerras escusas, os braços pontilhados de retratos de fantásticas paisagens exotéricas, anunciando os preceitos higiênicos da aplicação de Creosoto para desinfectar a vós, pois através das narinas percebo sua presença fétida em derredor. Persiste-me a ira,logo, ao invés de atirar-me contra fantasmas inatingíveis, tal cavaleiro louco avançando contra Mós-de-Vento, respondam-me criaturas da noite, qual a baiúca aberta que tenha qualquer angú com farinha para que eu possa satisfazer a sanha autofágica do meu estômago, pois se morrer agora de fome não é sem antes aniquilá-los a vós."
Nisso, esquivo como gato malandro que foi pego roubando o peixe mais suculento da trempe do fogareiro, e que receia bordoada vingativa do dono desleixado, chega-se para perto de uma nesga de fria luz, apenas o suficiente para que sua cara de traços símios seja o menos percebida pelo interlocutor, junto ao poste ensebado que solta faíscas, acorrentado ali pelo clamor de um claustro moribundo, a procurar persuadir em linguagem furtiva e recortada, uma figura pestilenta que discorreria sobre elementos metafóricos.
"Quem é você, que aproxima-se mas não o suficiente para que possa vê-lo, que escuta minhas palavras vãs à sorrelfa; tens por acaso receio de mim qual medo traumático infundo de vir a deglutir-te?", indagou da noite Peqod.
"Zozo da Vida é minha graça; de pai Zózimo e mãe Zélia Cardoso, mas pertence-me por usocapião o 'da Vida', que é como sou mais conhecido no trapiche."
"Dê-me então seus termos, filho de mandril, pois além da ira tenho pressa de escafeder-me desta terra pútrida, que começa a afetar-me os miolos na modorra dessa placidez heráldica dum cais soporoso."
Zozo supunha a argúcia da pergunta, sentia os músculos dormentes e os nervos mortificados pela força tétrica das palavras do desconhecido a ferir com morte e paixão seus descosidos ouvidos de mercador.
Paralisado permaneceu, sentia que em seus lábios morria qualquer tentativa de desvencilhar-se da teia de incongruências tramadas em redor daquele diálogo que almejava a uma única finalidade: suas magras carnes, seus ossos e vísceras jogados nalgum canto de antemão ou dados aos numerosos peixes que por ali comiam detritos; cozido no vapor ou assado, até quem sabe frito, para saciar o estranho ao servir-lhe como pétreo alimento.
"Trago-te a nova, a má nova, o evangelho pelo avesso: o que aqui procuras não está em lugar nenhum deste mundo, são apenas efeito das privações,  da loucura e indigência de vosso imaginário, devastado como este lugar onde estamos, e da qual este verme é apenas um mísero escolho que não pretende roubar-te a atenção. Humildemente peço que escolhas outra freguesia e parta para importuná-la com vosso barco de flagelos. Já estávamos mal arranjados mesmo antes de aportares por aqui."
Peqod amaldiçoava em silêncio a perspicácia da resposta de Zozo, mas ainda tinha um artifício para lançar à presa, enchendo de promessas fluidas e encantarias torpes o espírito lorpa do biltre, a fim de confundi-lo para lavar-se nos humores fragrantes do cérebro e despojos do macilento núbio.
"Perdoe-me a rudeza, caro notável, agradabilíssimas suas palavras, mas infelizmente a maioria se perdeu no caminho para meus ouvidos, já corroídas e desusadas pela escuridão, pois lançaste-as da penumbra onde te acoitas. Rogo-te que fique parado um momento, para que eu aproximando-me possa encurtar o trajeto necessário para acorrência de vosso verbo que deleita-me as orelhas ao reverberarem todo seu majestático sentido."
Um vento sombrio varreu do chão pêlos humanos perdidos desde a aurora do mundo, que flutuando disputavam encarniçadamente espaço nos gases atmosféricos contra a acolitez macia que os urubus ousavam, ao penetrar fundo nos afogados mistérios  trasladados pelo rio, como reflexo de cores que se fixam numa chapa besuntada de nitrato de prata, nas asas negras do corvo amazônico, onde ainda hoje é possível ler a seguinte frase: "-Agora é tarde, agora é tarde."
Mas havia ainda a chance de não se ver triturado pelos esmeraldinos dentes de trinchar do plúmbeo marinheiro. Formas sinestésicas da inexistência física posterior furtavam-se a passar por sua incólume cabeça, trazendo consigo a torrente do conhecimento contumaz:
"Pare! Fique onde está! Não é necessário, sabemos, e que nem viva alma nos ouça, mas o que disse foi verdade. É triste e feia, não serve a tão altivos propósitos que madurecem em seu id, mas por profissão de fé  retiremos de nossos ombros o fardo dessa solicitude hipócrita, tão mais angustiante que o ronco de sua pança que daqui perfeitamente ouço. Quem sabe encontrarás solução deveras plausível abstendo-me de mostrar-te as veias que trago abertas e por onde navegaste, por caminhos tortos que truxeram-te, visita de má morte, para esta terra de monturos derribada."
O vidro dos olhos a arregalarem-se foi a resposta ouvida por Zozo de Peqod, pois este não abriu a boca; endireitou o olho e pensou: "Falou bonito!", virando-lhe as costas no dirigir-se ao encouraçado, desejando agora o mais rápido possível abandonar aquela paragem, cujo olor malsinado agia proficuamente feito cataplasma em seus pulmões, a encharcá-los tal qual fedegoso óleo cetácio, deveras utilizável na indústria marítima corsária. E respiraram ambos aliviados, por ocultos e divergentes motivos, encerrada a partida.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Para Minha Primeira Leitora

Parabéns,

Você é nossa primeira leitora, e em agradecimento aos seus esforços e a sua paciência,
serás agraciada com um prêmio em que você pode escolher:
- um livro meu com dedicatória, pode escolher qualquer um, tenho vários, uns que nem li ainda;
- uma noite em minha companhia neste frio que está fazendo, se você vier agora aqui pra casa; ou:
- todo amor que houver nessa vida, e algum veneno anti-monotonia...

venha buscá-lo o mais rápido possível, e se vieres mesmo podes ficar com os três...

... menos os livros que faltam eu ler.

Caos & Cosmos

  Uma música familiar,
  uma sensação familiar,
  vontade de voltar ao tempo
  de onde nos expulsa a memória...




Uma estudante no meio de outras dezenas, o uniforme do colégio que diluía as personalidades tão eficiente quanto uma multidão, você estava lá sentada e eu me aproximei. Havíamos conversado antes sobre uma amiga sua ter ficado interessada em mim, mas era você quem me agradava mais,  eu sabia que você estudava na sala em frente a minha, porque todo dia via você entrar e só depois eu entrava também.  Lembro teu cabelo preso bem alto na nuca, e tão frágil me parecia, tão doce, naquele dia você sentada por algum motivo sozinha e eu cheguei e pedi um beijo e então tocamos nossos lábios, e quando tentei botar a língua você achou estranho, porque aquela era a primeira vez que tinha beijado um rapaz, e eu adorei.
Naquele dia a gente passou o resto do tempo junto conversando, tentando se conhecer de verdade. Tão estranho que duas pessoas que só sabiam do outro o nome, primeiro se beijem para depois conversar sério,  e aí a gente espera mas não está preparado, pois embora desejando naquela hora ter encontrado o primeiro, e até agora único, amor da minha vida, podia ser que a coisa não durasse mais após a despedida, cada um pra sua casa e nunca mais se falando, talvez no outro dia até meio constrangidos porque acontece assim por causa do momento e depois perde a graça. No entanto durou e muito, e dura até hoje em uma parte de mim, que virei um filho da puta, aprendi que agora trepa-se às vezes sem nem saber a graça do outro, é normalíssimo, todo mundo querendo gozar com a maior quantidade de gente possível, basta sentir tesão e ter uma camisinha à mão e pronto, às vezes nem isso, escorados numa quina de muro, num quarto emprestado, hotel, motel, em cima do freezer quando o álcool já encharcou o cérebro, os copos cheios, achando que ninguém vai se lembrar de pegar uma cerveja pelos próximos quinze minutos.
            Querendo experimentar o novo, como no Gênesis, acaba-se provando água de fossa e expuso do paraíso, tendo agora de encontrar sentido melhor para a vida, imerso em todo tipo de atalhos e volteios e mistificações, amaldiçoando a humanidade.
Fomos felizes enquanto nos amávamos sem nada acontecer e só tínhamos olhos um para o outro, mas disso não nos dávamos conta até nos cercarem as outras pessoas deste mundo.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Soneto Sem Metro de Artista Contemporâneo:

O Que Há Numa Semente

Costumava andar pelas ruas convicto
De flanar apenas enquanto durasse a caminhada
frente à porta de casa, ébrio tropeçava pela escada
nervoso, na cozinha vasculhava uma birita

Na solidão têm-no as noites embalado
seguro, de todos os males resguardado
esquecido o amplo trajeto percorrido
de toda a perfídia acumulada em sua vida

Dos que na rua tem sua morada
tornou-se parceiro, em longa jornada
tendo esquecido do  porquê ali lançara

a semente de uma vida promissora, na sarjeta
atrás de si o futuro, porra de vida escrota
mas que pena, deste chão, não germinara

Olvidado o Passado, Nada é o que Resta

 "A gente devia se matar na adolescência, quando as coisas ainda são bonitas..."


    Em algum lugar, urdem-se as tramas do fado com fios que são a nossa vida, que há de ser entrelaçada por entre muitas outras num trabalho inabalável e perpétuo,  e a composição resultante é tão bela, vasta e complexa e repleta de pequenos detalhes que é impossível de ser abarcada por olhos humanos, seu motivo revelando-se unicamente pelos olhos do Criador.
Fazer o bem apenas para si, embora pareça egoísta, é bom de qualquer forma por dois motivos: 1) Fazer o bem para si, mesmo que cause um mal a outrem, é neutro porque as consequências opostas do ato tornam-no nulo; 2)Fazer o bem para si quando isto também faz bem ao próximo não só é bom, como é bom em dobro. E foi pensando nisto que Jessé se resolveu de uma vez por todas terminar o namoro de quase um ano com Fernanda.
Ainda amava-a? Jessé não sabia. Já ha alguns meses moravam juntos e logicamente que se criara entre ambos uma espécie de ritual com que viviam agora a se tratar, comportando-se ambos como duas crianças birrentas e mimadas. Era esta uma postura absurda e irracional, que encobria seus olhos de enxergarem a realidade que deveriam enfrentar;  o veneno lento e corrosivo do tédio, aquilo  que lhes incomodava e acabaria por deixar aquela situação finalmente insuportável.
A rotina engolira-os com todos seus pequenos problemas cotidianos;  o relacionamento finava amortalhado pelas miudezas comezinhas que costumam vitimar duas pessoas quaisquer que resolvam repartir o mesmo teto, sem conhecer as idiossincrasias e manias um do outro, a saber, o que o gênero humano conseguiu criar de mais fino e sofisticado no terreno da aporinhação entre gêneros.
  "Não faz isso comigo não, bebê, não me deixa meu bebê, por favor...", e novamente Nanda deixava os soluços e fungares avolumarem-se e tomarem-na completamente. Nesses momentos, a voz doce que costumava ouvir derramar-se suave feito óleo perfumado daquela garganta, principalmente quando feliz ela ria, o que Jessé ouvia agora enquanto olhava-a inexpressivo parecia-lhe algo como um mugido irritante, às vezes entre grave e histérico.
E além dessa situação que incomodava-o profundamente, sentia-se cada vez mais irritado , só não sabia ainda que consigo mesmo, por estar completamente alheio ao sofrimento de Fernanda, impaciente e incomodado de estar ali. Graças ao drama não tinha conseguido ainda oportunidade de explicar à ela que sua decisão fora tomada para o bem dos dois, ao invés de algo unilateral da parte dele, pois o que parecia uma decisão benéfica apenas para ele naquele momento, certamente seria boa pra ela também no futuro, deveriam era parar com aquelas cenas cansativas por causa dum inferno que chegava ao fim, uma época cinzenta que instantaneamente passaria a fazer parte dum passado remoto.
Jessé matutava em várias dessas idéias, aquilo já lhe acontecera doutras vezes. " Esta é uma reação perfeitamente natural apesar de um pouco exagerada, daqui a pouco ela vai  se acalmar e então eu dou um abraço, ajudo ela a se limpar, se quiser tomar um banho vai, mas com certeza tem que tirar essa blusa manchada."
Então finalmente ele não se incomodaria mais e teria toda a paciência do mundo em explicar, até que ficasse bem entendido na cabeça dela, o quão ótimo seria eles estarem se deixando sem mais nem menos depois de praticamente um ano morando juntos. E assim que ela entendesse seus motivos talvez no íntimo até o agradecesse, mas Jessé sabia que ela não daria o braço a torcer nem se ele fizesse o bem triplo ou quádruplo ao invés de duplo; ou quem sabe poderiam mais tarde comemorar a separação, por que não?  Chamando os amigos como faziam logo que se mudaram para aquele apê, mas só depois  da Nanda se acalmar, ela que naquelas alturas ainda tremia jogada de bruços sobre a cama, vertendo muitas lágrimas e catarro com sangue sobre o travesseiro,  ao invés daquelas risadas puras e cristalinas as quais Jessé tanto gostava de lembrar.

Segundo ou Terceiro início: Fluxus

...eu queria escrever para você minha esposa, quem quer que sejas, como num fluxo de pensamento em que a mão acompanhasse o cérebro naquilo que ele tem de mais valioso e imcompreensível: o assombro e o pasmo do momento inatingível, infinito e  abstrato,  onde são capazes de caber todos os pensamentos de uma vida, mas tão fugaz e especial, e por isso achamos que é metafísico, intuitivo ou que não aconteceu, porque justamente ali está Deus para quem quiser encontrá-lo, neste instante existente apenas no nosso pensamento,  embora já não podendo alcançar para entender que é ali mesmo onde ele nasce e quase instantaneamente ocorre e se acaba, feito sombra de nuvem que passa em frente ao sol numa tarde ensolarada de verão, e algo anuncia neste tempo seco e firme o temporal fustigante que a noite aguarda, até aos primeiros raios da manhã vindoura, quando novamente somos banhados pela misericórdia, o que obriga-nos a agradecer nossa existência  a cada dia  e então dizemos Obrigado!

Anunciação Fantástica

Outro dia completamente anormal na vida de Fuad, pelo menos foi o que imaginou sentir enquanto ia andando distraído pela calçada a fim de atravessar pela rua até o outro lado, momento em que uma enorme carreta de transportar bois escangalharia-lhe o corpo, tornando-o irreconhecível até à sua querida esposa, resignada senhora, quando esta fora chamada para reconhecer o cadáver no necrotério.
E tudo porque Fuad decidira momentos antes atravessar pela pista, quando deveria utilizar-se da passarela que se encontrava a certa distância dali; a multidão que ajunta nessas ocasiões, até que todos ao redor do corpo concordaram que o fato da barra de direção ter quebrado era algo imprevisível e portanto não retirava a culpa do morto de haver finado-se pelos próprios meios, arriscando-se tolamente, ao invés de ter esticado a caminhada até a passarela, para que não esticassem-lhe as canelas.
A pressa é popularmente a inimiga da perfeição, e quando quem persegue é o destino, os fenômenos parecem acontecer como se viessem ocorrendo infinitas vezes, em infinitos mundos para todo o sempre, imutável como a pedra ou o bronze. 
O  certo é que Fuad saíra de casa naquele dia com o espírito atribulado, pois sua mulher bem cedo, ao invés dos parabéns, comunicara-lhe que naquele dia ele iria morrer, quando completaria exatos trinta e três anos de vida e sofrimento, e Dona Madalena jamais errara premonição alguma, que este era seu dom. "És como uma santa..." dizia Fuad à boa senhora que tentava consolar-lhe o sofrimento vindouro mostrando um livro e dizendo que tudo aquilo fora profetizado tempos atrás, era para ser assim mesmo pois que no fim das contas, no finzinho mesmo, tudo dava certo, mas infelizmente a devotada esposa não obteve a atenção desejada do marido, indo este porta afora logo na primeira oportunidade, seguindo ao encontro do que Deus lhe reservara.
E o sucedido, embora há milênios predito e redizido, surpreendeu todos: aquela morte banal, testemunhada por doze populares que foram os primeiros a acorrer ao corpo de Fuad com mãos e pés machucados, a fronte empapada do sangue que vertia dos lanhos profundos na testa, serviria como exemplo místico e mudaria a vida de todos do globo dali por diante até o final dos tempos. 
Graças à divulgação velocíssima de sua morte pelos sites de relacionamento, a notícia de que  Fuad encontrava-se finalmente ao lado do pai ( que morrera de derrame quando ele ainda era criança), tocou fundo nos corações dos homens daquele belo e sábio planeta,  que tanto gostavam um dos outros, pois que viviam sempre amontoados e aglomerados em reduzidos espaços, todos agora redimidos pela beatitude do morto, devido o quê não mais ousavam atravessar a pista dos automóveis fora da faixa de pedestres ou utilizavam-se de passarelas, quando era o caso.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

"Os homens são tão necessariamente loucos que não ser louco seria uma outra forma de loucura."

"A vida de todos está por um fio, não existem mais regras e tudo parece relativo.

Ética, certo, errado, relativos."



 Amai o próximo como amas a ti mesmo.

Início:
Alguns relacionamentos começam e terminam quase por acaso e, da mesma forma que sim, também não dependem da nossa vontade muitos dos fatos e atos do cotidiano. Exemplo é apaixonar-se, na maioria das vezes apenas para ter certeza de que não ia dar certo mesmo, justo com pessoas cujo comportamento tende a tornar-se cada vez mais imprevisível ao longo da união,algumas chegando até a surtar, ao contrário do que julga o senso comum de que o tempo de convivência desvenda-nos aos poucos os mistérios do outro.                                                                                                                 Nesta forma de compromisso é que, há quase um ano, Jessé e Fernanda  viviam, embora desde o clima que rolou entre eles quando se conheceram numa festa, até assumirem o namoro frente aos amigos, ninguém apostasse uma ficha na felicidade do casal, devido às marcantes características de personalidade e exigências do ego de ambos.            
Jessé achava que o problema deles viverem brigando seria devido à eterna implicância de Fernanda, de forma mesquinha tentando controlar sua vida, mas fazendo o que bem entendia sem nem se importar com as necessidades dele; e toda vez que estavam juntos ela teimava em  discutir  a relação, o que invariavelmente terminava em descontrole generalizado, gritos histéricos, copos quebrados, cinzeiros espatifados, portas batidas com estrondo e alguma ou outra luxação, além da aporrinhação do peso na consciência depois.
Nanda achava Jessé um cara muito egoísta e misógino e não fazia nada nunca para tentar agradá-la; andava por aí com um bando de piranhas além duns rapazes que aparentemente não teriam bom futuro, e quando ela perguntava "Por que você está fazendo isso, destruindo nosso amor?", ele enfezava-se de vez, e xingava e esbravejava, dizendo que não gostava de conversar embora ela adorasse falar, então ela arremessava um copo ou cinzeiro ou o que estivesse à mão nele, batia violentamente a porta atrás de si e ia chorando de ódio pela rua, querendo chegar rápido em casa para afundar a cara vermelha no travesseiro, tão sofrida que às vezes sentia dó dela mesma.
Na hora do sexo não era diferente. A ânsia com que haviam buscado-se anteriormente não mais existia, e era até com certo enfado que agora uma vez por semana, sábado ou domingo, se entregavam ao ato resignados, um mais entediado que o outro, sendo mais visualmente notado este fastio em Jessé do que em Nanda, ao estarem nus, o que obrigara-o nos últimos tempos a tomar meio comprimido azul nos fins de semana ao deitar-se ao lado da mulher,  para que esta não desconfiasse de amantes que ele infelizmente não tinha, embora a maioria de suas amigas e das dela fossem umas piranhas que costumavam transar com homens comprometidos todo o tempo sem o menor remorso.
O nó górdio, o "xis" da questão, seu ponto nevrálgico, o grande busílis,  el punto fijo,  o resumo da ópera, etc., era que nenhum dos dois, por qualquer motivo, queria terminar aquele relacionamento estacado em terreno pobre e infértil, num torrão de onde o  melhor agricultor não faria brotar mísero pé de planta, muito enganando-se o fado ao promover o infeliz encontramento destas dessemelhantes criaturas.
E a estória poderia prolongar-se, contar sobre a causa inesperada que interveio no destino de ambos, pondo-os separados desta vez para sempre sem chance de volta, o que decerto lhes faria grande bem. Sobre como fenômenos aparentemente  singelos  podem ser o moto que faltava para desencadear uma avalanche,  transformando  irremediavelmente nossas vidas, para o bem e para o mal. E do porquê as pessoas terem tanto medo de ficar sozinhas, medo atávico de envelhecer sem alguém ao lado, mas sabendo de antemão que a viagem última que nos espera não admite acompanhantes, pruma dimensão onde nossa inteligência não alcança, que também não sabemos onde ou se fica realmente em algum lugar.