terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Trinta E Poucos Minutos

     
        Chegou pro cara da oficina já com a peça mais ou menos original, e pediu pro figura fazer só o serviço:
        -É Xis!
        -Mas vai demorar?
        -Trinta minutinhos.
        -Ó, vou dar essa volta, tenho que resolver um sistema, mas em meia hora estou aqui.
        -Pode deixar.
        Deu realmente uma volta no quarteirão e entrou na primeira padaria que encontrou:
        -Vê uma dessas bem gelada e um salgado desses, faz favor...
        Um casal numa mesa conversava enquanto comiam sanduíches; numa outra mesa tinha um cara lendo a página de polícia do jornal; o dia pelo jeito ia ser quente como sempre e dessa vez sem um pingo de chuva.
        Perguntou então pro rapaz do balcão quando ele trouxe o pastel e a cerveja:
        -Será que chove?
        -Pelo tempo, hoje não senhor, mas bora ver mais tarde, né?
        Podia perguntar para todas pessoas que encontrasse na rua e a resposta seria idêntica. Era impossível fazer qualquer previsão em relação ao tempo com mais de meia hora de antecedência, mas o rapaz do balcão teve razão: naquele dia não choveu.
        Voltou pra oficina depois de tomar mais umas duas cervejas e fumar alguns cigarros, mas o cara nem tinha começado o serviço, aparentemente ficou apenas vendo tevê e coçando o saco.
        É foda. Ninguém está nem aí pra nada, depois um caboco desse faz uma encenação, uma presepada de baixa qualidade e puta mal gosto, querendo empurrar goela abaixo da gente uma desculpa esfarrapada, aproveitando aquele momento em que se precisa do serviço do maluco e fica dando uma de cú doce pra justificar o próprio desleixo:
-Pôrra, figura! Tenho compromisso, meu! Putaqueopariu!
É foda mesmo. Não espere muito de um país onde a maioria das pessoas vive nessa safadeza assim.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Gabba, o Ogro

   

        Ele andava pela rua apressado, com as mão metidas nos bolsos e olhando apreensivo para os lados, como se procurasse alguma coisa ou temesse ser encontrado por alguém, até que parou numa esquina em que havia um bar aberto e tinha uma tevê ligada com futebol, onde entrou e pediu uma cerveja enquanto acendia um cigarro se escorando no balcão:
        -Quanto tá esse jogo?
        Empatados, os dois times se digladiavam num gramado com água até a canela, mas reparando ao redor ninguém realmente dava a mínima pro jogo. Prestavam mais atenção nos copos vazios e nas moças bonitas que vez ou outra passavam:
        -Não sabia que boneca andava, belezura...
        -E eu que animal falava, sua besta!
        -Impressionante essa criatura, não pode receber um elogio!
        Assim pensavam todos em redor, contaminados pelo mesmo clima festivo de um jogo entre as duas maiores torcidas da cidade: ao mesmo tempo que cria-se a tensão de uma inimizade e permissividade que dependendo do resultado em campo e do nível de álcool no sangue da galera, pode ser facilmente derramado pelos contendores de uma possível briga para defender o time do coração:
-E olha que quando estou chapado eu dou porrada que nem sinto!
        -É verdade, mas no outro dia quando acordas tens de ir pro hospital para ser costurado, engessado, emendado, desempenado, etc...
        Mas era um jogo ruim pois havia chovido a tarde toda, só agora que o sol tinha aparecido, mas dali à pouco ia anoitecer. Daí toda cidade se infestaria das ratazanas fugidas dos esgotos entupidos de água, de lama, cachaça, drogas, vermes, lixo.
        Era uma merda, um cenário que prenunciava o caos, mas Gabba permanecia ali, escorado no balcão.
        Tomava a quinta ou sexta cerveja, assistia à final de um jogo a que não tinha nenhum interesse, via-se conversando coisas desinteressantes com pessoas igualmente desinteressantes, incapazes de despertar a menor curiosidade até no mais vil artista da fome alheia, e teve vontade de indagar daqueles ali o que achavam de suas vidas, mas novamente eles não entenderiam, pois nenhum ogro entendia.

domingo, 29 de janeiro de 2012

Esperando Um Latido

        Sempre ali, em órbita feito uma besta, numa nave construída por cientistas renomados, envolvidos na mais complexa experiência da humanidade, que assim como esta não podia deixar de ser uma experiência besta.
        Spif não acreditava que só haviam passado seis meses, enquanto a nave da qual era apenas um simples navegador que fora transformado em piloto, rumava em direção ao infinito com o motivo mais besta do mundo:
        -Descobrir se é possível salvar a humanidade? Fala Sério!!!
        -Ouça então o que o Comandante Supremo tem a recitar de seu palácio na Lua e cale-se, seu inseto! Ou você prefere ser atirado no espaço sideral?
        Spif calou-se enquanto a voz do Comandante Supremo fluía das caixas de som ocultas por todos os lugares, numa troada que reverberava por todas as câmaras e corredores, suspendendo o som de elevador que tocava ininterrupto feito uma lavagem cerebral:
        "A Humanidade de quem todos fazemos parte e da qual sou o porta-voz eleito pela enésima vez, e portanto tudo que falo é em nome da Humanidade, e é portanto em nome da Maioria que eu, a Humanidade, faço a Lei, e já que portanto sou a Lei, então a lei diz:
        -Esta nave onde vocês estão e este indivíduo, Spif, que foi erroneamente colocado por mim como piloto, e todos vocês como testemunhas do meu erro, devem se atirar no próximo buraco-negro que aparecer, sem recurso. A menos que antes encontrem uma Terra Habitável onde eu possa montar novamente meu Supremo Reino, pois este planeta não tem mais a mínima condição, credo! Posso parecer um tirano sem coração, mas acreditem, vocês não gostariam de voltar pra cá... Fim da transmissão...*"
        Todos os outros, além do co-piloto Tim Marogafo; Herbie Putzgrila, o atirador;  Rex Malhado, The Dog, responsável pelo radar; e Cara-de-Sapo, responsável pelas defesas psíquicas da nave nas confins do universo, olharam para Spif com uma expressão atônita quando a trasmissão acabou. Rex Malhado latiu:
        -Au, Au!!!
        -Nada disso, afirmou Spif, vocês ouviram a mesma coisa que eu! Poderemos até não encontrar uma Nova Terra Habitável, mas também não farei com que sejamos atirados num buraco-negro. Infelizmente, com certeza não teremos mais a mínima chance voltar para a terra...
        -Au, au...

sábado, 28 de janeiro de 2012

Sistema Móvel

       
     
        Pobre João, sempre naquela santa inocência. Mesmo depois de tantas porradas que a vida lhe deu, continuava firme acreditando nos outros, como se fosse possível ainda existirem pessoas de bem nesse mundo:
        -Te liga João! Se até eu te sacaneio e quero teu mal, imagina os outros!
        -Porra, Macedinho, mas és meu melhor amigo e ainda tens coragem de dizer isso pra mim?
        -Pra ti veres só, e digo mais: só ando contigo porque não encontro mais ninguém que vá com a minha cara.
        -Putz, mas dizendo isso pras pessoas! Até eu agora te achei meio filhadaputa também!
        -Deixa pra lá, é assim mesmo. Vamos tomar um goró?
        -E o pior é que tens razão, que merda!
        E tentava imaginar uma lista de pessoas que conhecia: mentiras, falsidade, escárnio, hipocrisia, ódio, inveja; cada uma delas possuía ao menos uma das doenças que deformam o caráter do ser humano, quando não todas elas, e as que ainda não haviam decepcionado certamente um dia teriam de fazê-lo:
        -Por exemplo, João, aqui nessa bar: achas possível de encontrar alguém aqui que preste?
        -De jeito nenhum! Nós deixamos de prestar a partir do momento em que sentamos e pedimos essa cerveja quente e jogamos conversa fora. Eu pelo menos...
        -Quá quá quá quá quá! Essa é boa, mas realmente não é disso que estou falando. Ninguém presta e só está esperando a oportunidade de provar isso, e daí? Foda-se! Saúde, meu amigo!
        -Saúde...
        Mais tarde João ficou imaginando que talvez Macedinho estivesse enganado.
        Existem certos tipos de pessoas que aparecem como um raio em nossa vida, quando menos esperamos, num momento em que estamos ocupados das coisas aparentemente urgentes e quando por um segundo deixamos de pensar nisso.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Quando a Árvore Cair Da Folha

        O coro continuava, enquanto Semíflua lutava com todas as forças uma luta impossível: assim que desse meia-noite, seria possuída por uma maldição, que só terminaria quando ela levasse o próprio reino às trevas.
        Disseram-lhe os Conselheiros:
        -Desista de sua vida e salve o reino!
        -Não!!!
        O céu cobriu-se de nuvens cor de lama, os ventos eram piores que ciclones, a tempestade matava com espadadas e agulhadas, e a carnificina era tamanha que nossos olhos grudavam com o visgo do sangue coagulado:
        -Impressionante isso que estás dizendo!
        -Ainda não ouvistes nada.
        Quando ela propôs o suicídio todos foram contra, mas a população revoltou-se e tentou caçá-la até a última masmorra do castelo, onde ela se trancou, e depois com tamanha violência destruiu a chave da cadeia que tiveram certeza de que ela se encontrava  possessa, tentando consumar a desgraça de todos:
        -Nããããoooo!!!!,
        Semíflua gritou, permanecendo rija no fundo da cela onde havia se refugiado e disse:
       "-Deixem-me! Deixem-me aqui, nada acontecerá, recairá sobre mim a desgraça do Reino enquanto eu permanecer nesta cela!"
       Deram-lhe a última palavra os Conselheiros:
       -Assim mesmo não adianta! Só existe expiação na dor, por isso iremos matá-la!
        E a última nota do coro é entoada enquanto degolam Semíflua...

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Estranha Figura

        Conheci um cara de apelido "Jirrá", que eu nem sei como se escreve, que vivia nas maiores maracutaias e transações ilícitas: era traficante mas gente-fina, descolador, escrunchador, arranjador, acochador e apontador do jogo-do-bicho:
        -Pô, Jirrá, pra quê tudo isso?
        -Pra quem quer ser flanelinha, só parando de meter o bicho!
        Esqueci de dizer, ele era ex-presidiário, ex-assassino e ex-ladrão, mas costumava dizer que atualmente só trabalhava reparando carro:
        -E ganho muito mais! Cinco 'real' cada carro desses...
        -E se o dono dizer que a rua é pública e não quiser pagar, aí tu riscas o carro do cara?
        -Eu risco é a cara dele com essa aqui ó! Ha ha ha ha ha ha ha ha ha!
        E puxava da cintura uma faca tão comprida que mais parecia uma espada.
        Definitivamente não tinha medo de ninguém, "porque já fui bandido, tá ligado?", seu único pavor era o de um dia a mulher o largar:
       -Se não fosse por ela até hoje estaria no crime!
       -Ou quem sabe morto...
       -Pois é, mas agora tenho um serviço mais ou menos honesto, botei um barraco na invasão pra ela, sem luxo ou frescuras mas também não falta nada, e às vezes ela até me deixa tomar uma birita fumando unzinho.
       A vida dele era meio estressante, como a de todo mundo, mas tinha seus bons momentos.
       Jirrá se afastou e foi buscar uma manga que tinha caído na grama, quando voltou já tinha comido quase a metade:
       -Olha, enquanto comias essa manga, aquele carro foi embora e não deixou teu dinheiro.
       -Esquenta não, aquele figura ali me paga por mês.
       -Ô vidinha descomplicada, né, seu Jirrá? Deixa eu ir embora então, uma boa reparada aí pra ti.
       -Pra ti também, vá na paz.
       Depois de um tempo fiquei pensando se não seria uma boa entrar pro ramo, com todas as vantagens de se trabalhar à sombra das mangueiras, com um pano encardido jogado nos ombros, mas lembrei que essa é uma área muito concorrida, todas as vagas que compensam o trabalho já foram loteadas entre os profissionais com mais tempo de praça.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Ao Acaso Que Determina

        O fluxo de conciência estava uma merda: bukowski, labirintite, hidrofobia, música pop, e a televisão ligada o dia inteiro. Foi o dia mais triste da minha vida.
        Não tinha nada pra fazer, todo mundo saindo fora, resolvi sentar no banco da praça, comecei a confeccionar; aí um camarada ajeitou o ferro do meu lado e perguntou:
        -Posso sentar?
        -Se não vais me roubar, fica a vontade...
        -Quê isso, negão!!! Vou te roubar não! Me conhecem por " Cintra" !
        -Tá na mão, viste o Múcio?
        -Êh, chegado, será que é esse rapaz aqui?
         Putz! E era justo aquele maluco mesmo...
        E se durante nossa vida fazemos muitas perversidades ou coisas erradas, é porque o mais incrível é o quanto somos teimosos e custamos a mudar alguma coisa evidentemente tola em nossa atitude:
        -Pôrra, ainda estás fumando esta porcaria! Não tinhas parado?
        -Pois então, sabe como é o vício.
        -Tsc, tsc...
        E lá ia embora com o pulmão estragado o desgraçado, vinte anos depois, fumante inveterado apodrecido pelo enfisema.
        Mas quem dera as atitudes idiotas que ponderadamente adotamos pudessem em suas consequências atingir apenas o asno quem as praticou! No final de tudo, o pior é que aquele ditado de nossos avós continua válido:
"Quem faz muita merda, sempre acaba dando um jeito de espirrar nos outros."

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

As Dificuldades Deste Mundo

 


        -Por que estás com essa cara de sono?
        -Putz! Chuta aí o motivo!
        Eu entendo que a linguagem humana não foi criada para elaborar sentenças mais complexas do que a necessária à simples comunicação entre pessoas, mas daí a jogar conversa fora com obviedades eu preferia ficar calado. Parecia como se algo dessa displicência estudada nos modos funcionasse para provocar os outros, e eu era um fraco, me incomodava ver alguém fingindo-se de burro:
        -Ei, calma amigo! Só perguntei porque parece que não dormes faz três dias...
        -Então, caralho, se pra ti parece isso não é porque eu passei esses três dias fumando droga ou dando o rabo!
        De madruga no bonde às vezes pego no sono, e a imagem que me vem na cabeça é eu esganando esse bando de filhadaputa que só faz peso no mundo, que nem essa rapaziada que fica se achando o caralho e tirando barato com os outros, achando que manda no mundo porque tem grana, mas é só mais um bando de fudidos que amanhã vai estar com o dedo no cú:
        -Credo, maninho, mas se a tua vida é uma merda assim então faz um favor pra ti e se mata, seu bostinha!
        Chapei a mão na cara do figura umas três vezes, então ele se refez do susto e tentou partir pra cima de mim, mas eu tinha dado um passo à frente e dei mais uns socos e chutes nele, aí ele caiu no chão e começou a gritar desesperado pelos dois amigos que pelo visto não quiseram se meter.
         Resolvi cair fora dali também:
        -Te liga, seu babaca!  Olha tu jogado aí no chão com os cornos quebrados e os teus "amigos" ali na esquina não iam nem te levar pro hospital se eu arrebentasse tua cabeça com essa pernamanca agora!
         Fui pra casa antes de fazer uma merda:
        -Mas da próxima vez que eu te ver e estiveres sozinho quebro teus dois braços pra deixares de te meter a besta, seu imbecil...
Complicado é fazer parte de um mundo que nos obriga a agir de forma tão abruptamente contrária aos ideais que julgamos mais importantes em nossa vida, tendo que agredir e sendo agredidos pelos outros, vendo os outros fazendo merda e fazendo merda também.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Jorge Finca-Poste

       

        Chamavam ele de finca-poste e não era pra menos: trabalhava na Companhia de Energia e passava a maior parte do dia em cima dos postes da cidade, às vezes caindo deles:
        -Mas me conta agora, ainda andas tomando uns gorós?
        -Ora, se não! quer um gole dessa birita aqui?
        E tirava de dentro da bolsa uma garrafinha de plástico com tampa de enroscar que oferecia, e nem ele sabia o que tinha dentro, mas era tão forte que fazia mal.
        Jorge não fazia as coisas por sacanagem, eu o conhecia já fazia tempos e no fundo achava que era um cara justo, mas sei lá, às vezes as más companhias ou a perda de controle sobre um vício, a carga de trabalho, a mulher que aporrinhava por causa dos filhos, o fato de escutar todo santo dia as pessoas chorando miséria, tinham meio que azedado o temperamento de quem outrora me parecera bem mais camarada, mais bem disposto para uma vida que se descortinava tão bela.
        -Mas essa vida inteira é uma merda, tendo que toda hora tomar choques! Para não me incomodar com a dor durante o serviço, bebo dessa porcaria que nem sei o que vem dentro, o resultado: me estabaco de cima da pòrra de escada quando já estou muito porre!
        -Putz! Devias procurar outro emprego, estudar e fazer concurso, enfim, mudar de ramo já que não estás satisfeito.
        -E  você acha mesmo que ser funcionário público ou qualquer outra merda faria meu dia melhor?
        -Bem, talvez parando de tomar tanta birita e procurando se alimentar de vez em quando...
-Ora, seu desg...
        Mas não chegou a completar a frase, pois uma descarga elétrica nesse momento derrubou-o da escada, jogando-o desacordado no chão, com um sorriso cansado nos lábios retorcidos.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Gato Preto

         Apareceu num dia desses quando cheguei em casa um gato preto e branco e amarelo. Pensei: "Vou jogar esse bicho na feira.", só porque ele ficava me seguindo. Mas acho que foi por causa disso que me afeiçoei e deixei ele andando lá por casa:
        -Não podes ficar na cama!
        -Miau!*
        - Eu não entendo!
        -Miau!*
        Era um daqueles animais falantes talvez, o que me surpreendeu muito tomar conhecimento de mais esta forma de linguagem legítima do reino animal etéreo, além da dos lemures e dos fantasmas que jogam dados e contam lamúrios, pois quando ouvia aquela música, ora ficava puto, ora animava-se, ora dava um trago e aproveitava para pensar na vida e lembrar dos sonhos e de como as coisas haviam mudado agora, antes de quando acordado começava a sonhar de novo:
        "Como pode ser, é a pergunta a que se resume todas as outras perguntas: se estou vivo neste momento não é para pensar coisas tolas, mas existirá motivo para estarmos todos submetidos pela mesma lei e mesmo assim não parar de fazer tolices?
        -Que questão babaca!!!
        "Cada coisa é tão peculiar! Pelas pessoas individualistas e pelas outras só peculiares, além daquelas que escolheram viver na solidão ao mesmo tempo em que a idéia de uma velhice triste e depressiva começa a atormentar-lhes a consciência, aí todos vão querer dizer: '-Foda-se tudo, pois não me chamo Raimundo!' Se tiver de obedecer o que acham necessário, deixaria de putaria o que nem é o fodão? Quem vai sinceramente escrever que precisava de algo, de alguma coisa ou de alguém, enquanto esse animal permanece ao teu lado, por enquanto ao teu lado, ou quem sabe pulando na tua garganta durante o sono?"
        O animal enrodilhou-se e dormiu sobre a colcha, o que me obrigaria a lavá-la no dia seguinte. A semana prometia ser boa...
        *"Eu não entendo!"
        (...)

sábado, 21 de janeiro de 2012

Como Fazemos Nós

        A gente sempre conversava temas banais, mas ao mesmo tempo sempre querendo dizer outra coisa. Então não seria mais fácil dizer o que queríamos verdadeiramente, de maneira franca, sem subterfúgios ou maldade ou terceiras e quartas intenções?
        -Mas por que tanto sofrimento? Se o problema é a pessoa, algo deve ser feito para mudar a pessoa...
        Eles dois na cama conversavam nus, ela contava dos problemas de sempre, ele se queixando da falta de tempo para viver, ambos sem compreender direito ainda o que é a vida; em que momentos dela estamos vivendo para nós mesmos e o motivo de se esforçar ao máximo naquelas horas em que por nossa própria escolha vivemos para os outros...
        -Mas me responde uma coisa: quando você diz que está vivendo para mim, isso inclui o quê precisamente?
        -Se em cada momento andando pela cidade ou no meio dos meus afazeres, ou esperando alguém  em algum lugar; se comendo ou se dormindo quando sonho com você;  todo instante da minha vida em que lembro da tua existência são minutos que te pertencem de todo coração. Pra mim em cada fim de canção vêm escrito junto o teu nome e são nesses momentos em que me sinto vivo.
        -E por que ainda esse sofrimento?
        Ele ficou parado pensando, olhando nos olhos dela que esperavam uma resposta. Muitas coisas passaram-lhe pela cabeça, tudo passou-lhe pela cabeça, todas as outras existências que por meio daquela relação estavam entrelaçadas debatiam-se em suas cordas, como num teatro de marionetes ou numa teia de aranha, e eles sabiam que infelizmente não havia como escapar disto.
        Ele permaneceu parado tanto tempo encarando-a, que ela perguntou: "E aí, qual é a tua?"
        -Eu me pergunto a mesma coisa às vezes e também não encontro resposta: o por quê desses momentos com regular frequência em que o sofrimento volta?

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Onde Você Estiver

        Hoje não foi um dia, foi noite. Eu não te vi. Seringas cheias do meu sangue, espalhadas pelo chão quebram aos meus pés a cada passo que dou. Meu sofrimento é pulsilânime, é sofrimento da carne que sofre pela falta de outra carne, a tua carne!
        Dizes-me que é puramente desejo sensual? Acreditas? Eu digo: é paixão pelo teu corpo tão  gostoso que me faz chorar, e tudo mais que amo em ti, tua respiração, a tua saliva, teu cheiro doce como o mel...
        E por que tão distantes? E por que tanta ausência? Porque era para você estar aqui ao meu lado, aí a gente não mais reclamaria que a saudade é tanta que tem uma hora em que parece que ela vai sair do peito e sufocar a gente.
        Tanta coisa sem importantância acontecendo, ocupando espaço na nossa vida, e tanta coisa que passou à que não demos importância na hora, mas que só agora à distância podemos ver o quão importante foram aqueles momentos que disperdiçamos com bobagens.
        Não é estranho? As coisas acontecem na nossa vida e independem da nossa vontade, e só conseguimos compreender o que é realmente importante quando aquilo já acabou, já passou, e não podemos fazer mais nada para trazer aquela sensação de volta.
        Eu quero aprender direito aquilo que você me ensinou, de como é bom voar estando deitado, de como é incrível e indescritível o que duas pessoas podem fazer juntas para se divertir, e que coisa boa: lembrar que somos os indivíduos mais felizes da humanidade, pois desde que o ser humano começou a andar pela terra, apenas nós estamos vivos até hoje.
        É como em meio uma viagem, abrir os olhos para tudo, até para as não-novidades.
        Estou andando na rua e dá vontade de gargalhar, pixar um muro, de roubar ou matar alguém, de declamar uma poesia, cantar uma música, tomar um gole de cachaça e dar um trago num cigarro, de me jogar da ponte e me matar.
        Estou brincando, não vou morrer, não sou tão babaca assim! O que eu quero é viver para sempre contigo, ver teu sorriso sempre assim quando estás ao meu lado.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Nada Nunca É Como Deveria Ser

        Ele estava por ali, aparentemente só sacando. Sentou do lado da bambuzal e ficou um tempo esperando. Tomou um gole duma birita mocozada num saco plástico, ficava prestando atenção no movimento do Forró. O Brother, ex-cana, cantou a pedra:
        -Eu vi ele chegar de moto, os dois capacetes tão com aquele maluco lá falando no celular, que veio na garupa com ele daquela moto bem ali...
        Pior, o Brother podia ter razão! E quando saiu um playboy caindo de bêbado, aí esse bicho não ficou de olho? O playboy saiu fora, aí ele apagou o cigarro que estava fumando, aparentemente de maconha, e o outro mluco com dois capacetes falando no celular veio na direção dele. Foi a deixa para que o Brother e o Outro, que tinham sacado tudo, chegassem logo enquadrando:
        -Bora encosta! Eu vi tu fumando! Encosta tu maluco do capacete aí também!
        -Êh, seu, num leva a gente não! A gente até é ladrão, mas só tenho só essa moto e sou mototaxi, e meu dinheiro eu ganhei trabalhando, a gente veio até aqui só pra curtir e ver se descolava uma gata, a gente não tá passando os pano não!
        O Brother vasculhou os bolsos deles, tavam chei da grana e um pedrão da maronha, aí ele falou:
        -Ô, cês fiquem por aí, mas vou ser forçado a apreender esse paraguaio!
        -Deixe um fino com nós, tio...
        -Num tens vergonha na cara, né maluco?
        -Deixa eles sairem fora...
        -Sai fora então, seus doido, antes que eu tome esse dinheiro!
        -Valeu, tio!
        -É, tio, valeu, valeu...
        Quando o dois feladasputas chagaram na ponte, longe demais para serem alcançados, pararam e gritaram em uníssono, com toda força dos pulmões escrotos:
-Êh, tio: vai te fuder, filhadaputaAAAAAA!!!!!

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Caribú, o Super Cachorro

        Manduca aparece no começo da rua de sua casa. Não há movimento algum, pois são três da manhã e quase metade das lâmpadas dos postes da rua estão queimadas. O motivo? Culpa dos assaltantes, para assim facilitarem seu trabalho e dificultarem o da polícia.
        Anda apreensivo, pois nesta madrugada de sábado para domingo recebeu seu salário, e assusta-se com cada barulho que escuta, cada vegetal que balança ou bicho da noite que se esgueira pela sombra, tudo assemelhando-se a inimigos que venham a tomar-lhe o soldo minguado, insuficiente para sustentar mulher e filhos.
        Mas o pior acontece. Vendo que Manduca se aproxima, um homem sai da sombra de um dos postes apagados, tira um ferro da cintura e posta-se no meio da rua, gritando à distância:
        -Num corre não!
        Não há escapatória, não existe saída. O rato na ratoeira, o inseto preso na teia, o passarinho indefeso que é preso na arapuca, ali está paralisado o pobre e agora quase roubado Manduca:
        -Não me rouba não, que eu moro bem ali, por favor que eu tenho família, olha eu posso te dar esse dinheiro aqui e amanhã se quando eu passar de novo você estiver por aí eu te descolo mais cinquenta contos!
        -Calaboca, caralho! Tás afim de levar um pipoco na fuça? Com quem tu pensas que estás falando, porra!!!
        Nada pode ajudá-lo neste momento, nenhuma viatura da polícia ou até um herói popular virá em seu socorro, parece mesmo que este é o fim, até que uma nuvem no céu negro e sem estrelas deixa entrever uma nesga da lua cheia, e ouve-se um uivo prolongado à distância:
        -O que foi isso?, pergunta-se o fascínora, vasculhando a carteira da vítima em suas mãos, prestes a encontrar o compartimento secreto que Manduca usa para esconder o seu dinheiro do que ele separa pros ladrões.
        O uivo torna-se mais alto, cada vez mais próximo, até que a lua aparece completamente e percebem que um cachorro acabou de dobrar a esquina, e fica parado em posição de ataque, rosnando para o bandido, só com a diferença que é maior que um cachorro de rua comum e usa uma capa esvoaçante.
        -O que tu queres, seu vira-lata, tás com raiva de mim? Toma um balaço, pulguento desgraçado...
        Mas os tiros do meliante não atingem o incrível animal, que com uma agilidade fora do comum, só vista em filmes Hollywoodianos como Matrix, desvia das balas e alcança o bandido com um salto de mais de dez metros, derrubando-o e arrancando sua cabeça com uma dentada, mal dando tempo a um Manduca atônito perguntar seu nome antes de ir embora, respondendo apenas com um latido que corta penetrante o frio da madrugada:
         -Caaaaariiiibuuuuuuuuuuuuuuuuuúúúúúúúú...

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Bons Ventos

   
O trabalho estava me matando, mas era legal, podia comer o quanto pudesse, era mais ou menos perto de casa, sei lá, embora dizendo assim não pareça algo tão agradável à primeira vista, eu tinha fé de que naquele ano as coisas iam ser melhores,  embora faltasse uma pessoa perto de mim, acontece que ela também era muito ocupada:
        -Só posso ir de manhã cedo, que depois tenho aula, então deixa a porta aberta.
        E as janelas, uma inclusive que é um lençol pendurado, antes dela dizer qualquer coisa, que essa moça bonita venha de mansinho na ponta dos pés e deite ao meu lado para quando eu acordar, ah, deixa estar...
        Mas ela chega e pergunta:
        -Qual o problema com você?
        -É que eu te amo demais, não dá pra entender...
        -Se me amares um pouquinho menos, eu juro que te amo um pouquinho mais.
        -E talvez essa vida que a gente leva. Porque é tão difícil de se encontrar durante a semana? Sinto tua falta, sabia? Principalmente do gosto dessa tua boca, do cheiro da tua pele, do calor do teu corpo...
        -Eu gosto é de te morder!
        E tirou a roupa, e deitou do meu lado, e me abraçou, e me beijou, e me fez lembrar que eu era o cara mais feliz do mundo.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Teoria da Queda

     
        -Sabia que às vezes Deus coloca obstáculos em nossa vida justamente para que possamos nos fortalecer?
        -Putz, então devo ser mais forte que o Incrível Hulk! Ha ha ha ha ha ha!
        -Bom, é claro que existem outros problemas que só aparecem para torrar a paciência e não nos adicionam em nada, mas esses são culpa de quem só existe para atrapalhar e confundir as coisas...
        -Certo, então eu te falo o que está acontecendo na minha vida e em troca recebo esse conselhinho babaca de livro de auto-ajuda pra me consolar? Ora, vá à merda, João, nada vai se resolver com esse discurso piegas de que eu vou sair mais forte, e esses papos furados para enganar os otários! E se eu morrer no meio do percurso, já pensou nisso?
        -Existe a possibilidade, mas confia em quem é mais forte, pois talvez você tenha um caminho muito longo pela frente e vá precisar de alguma luz que o ilumine, então pode parecer sentimentalóide imbecil, mas não deixa de acreditar que até na mais absoluta escuridão, bastará você esticar a mão, que esse alguém vai estar sempre ao teu lado para te ajudar  a se levantar e prosseguir na tua jornada...
        -Como assim?
        -Vou dar um exemplo: hoje antes de chegar aqui aconteceram muitas coisas, dentre elas fui atropelado, mas ao invés de me quebrar todo, agora a bicicleta é que está muito mais dura e eu tenho que fazer mais força pra pedalar e consequentemente vou ficar muito mais forte, entendeu?
-Putaqueopariu, que assim seja!!!

domingo, 15 de janeiro de 2012

Paranóitico Neurístico

         A Nave Spirro continuava sua viagem cruzando a imensidão das galáxias, com uma tripulação de intrépidos aventureiros.
A última rota em que seguiam em breve levaria Spif, Johnny Luck, o piloto Zé Birola e Mané Passarinho a encararem o maior desafio de suas vidas: O Colossal Emorbme.
-Que porra é essa? Indagou o Mané.
-Pô Mané! Sabias que nem eu sei?
-Ou piraste ou fudeu tudo então!
-Espera que não é por aí...
Johnny Luck tinha sua cabeça esturricada:
-O que ele está falando, caras?*
Estava como a gente espera de toda e qualquer viagem interplanetária, com a diferença que nessa aqui todos tinham que se comunicar em Javanês:
-Pôrra, todo mundo entendeu o que esse babaca falou, mas quem ele pensa que é?
Spif pensou: "É foda. Lidar com essa galera que eu também não tenho condições de dizer quem é o pior, que poderia ser eu, é pedir pra ficar puto! Mas é como eu digo hoje e sempre: foda-se."
Zé Birola disse:
-Estamos chegando no Planeta Zás-Trás e entregaremos o Colossal Emorbme, portanto fiquem frios.
Johnny Luck:  -Fuck You!
Manoel Passarito:   -Má o que quê isso, Rapá?
É estranho mesmo, pra dizer tudo o que eu sinto, as palavras só não bastam...

sábado, 14 de janeiro de 2012

Viagem Entre as Orelhas

        Poderia dizer que ela entrou no quarto, livrou-se da bolsa e dos sapatos, sentou na cama com as pernas cruzadas e ficou olhando pela janela a árvore do outro lado da rua, com o livro emprestado aberto em seu colo na página onde havia uma anotação à lápis.
        Poderia dizer que ela pensava em certas coisas, mas ela diria que não, pois pensava em outras. Certo é que aquela música que tocava insistente durante a última semana encontrava-se agora num volume um pouco acima do habitual. E ela, que nunca fumava em casa, acendeu um cigarro.
        Distraiu-se um pouco, "merda de vício", com o peso do livro em seu colo e a frase rabiscada que trazia tantas imagens à sua cabeça, embora continuasse mirando a mesma paisagem de todos os dias pela janela.
        Durante todos esses anos, vinte e três no total, sempre teve a certeza do que queria, o que quiseram os seus pais e o que todos queriam para ela: que fosse feliz! E agora, com o curso superior concluído e ganhando razoavelmente mal, namorando a mais de um ano a mesma pessoa, encontra esse quase estranho e cobra o livro que ele há tanto tempo havia prometido e estava devendo.
        Poderia dizer que foi por pura coincidência que o estranho tinha justamente aquele volume debaixo do braço, que ela nunca tinha ouvido falar do autor, mas se interessou muito pela estória depois que leu as orelhas.
        "-Ora bolas, é um livro que gostei muito, até rabisquei uma página na empolgação, melhor que fique mesmo com você, pelo menos vou saber que ficou em boas mãos."
        "Obrigada! A gente se vê então..."
        E agora ela vai concordar, sentada fumando um cigarro, depois de chegar até ali e ler aquela frase escutando a voz dele, como se levantasse agora e corresse para a janela, e era capaz de vê-lo passando do outro lado da rua acenando, e ela então olharia sorrindo e acenaria de volta, esperando que ele subisse no muro e entrasse no quarto, antes de apagar a luz.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Um Novo Deserto

 "Se trago as mãos distantes do meu peito
 É que há distância entre intenção e gesto(...)"


        Estavam lá sentados na grama, à sombra das árvores, como se fosse o Outono ou qualquer uma das outras três estações que pelo menos por ali não existiam.
        Pareciam de alguma forma se esforçar por aparentar felicidade: comiam, bebiam, riam, mas mesmo sentados no chão sobre toalhas ou sacolas era como se não fizessem parte daquele cenário, como se a sujeira da terra e e seiva da grama não pudesse sujá-los; como se os insetos e as formigas não pudessem andar sobre as toalhas; como se não houvessem inúmeros outros animais por ali.
        Mas era como se fosse apenas uma sensação, como se nada daquilo realmente fosse verdade, pois caso tenha realmente acontecido, caso haja um reverso da medalha, talvez seja eu que não exista, e ao invés de um observador desatento seja apenas um dos animaizinhos que os pintores piedosos costumam botar nos quadros que retratam o nascimento de Jesus na manjedoura.
        Imagine algo tão distante no tempo e no espaço, mas que perdura até os dias de hoje e pode-se dizer que vai durar para sempre, e em como todos aqueles lugares estranhos a que chegamos em cidades igualmente estranhas, vendo as pessoas de cara amarrada e os jovens com olhar de tédio, e de alguma forma sentindo como se já estivéramos ali antes, algo familiar, mesmo assim aquela dúvida fica na nossa cabeça, embora isso seja obviamente impossível.
        Imagine topássemos com um pé-de-coelho ou ferradura ou trevo-de-quatro-folhas plantado no meio do asfalto e aquilo fosse tão absurdo quanto dizer que para fazer uma praia bonita precisa além do oceano enorme e coqueiros e um sol plantado no meio do azul do céu com nuvens brancas e o som de gaivotas ao fundo, é necessário também muita areia.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Cabeça Sonâmbulo

 

        "Pairando no espaço sem corpo a que se prender a nada e alimentando-se da brisa, a cabeça pensava que pensava, mas apenas flutuava e flutuava..."


        Estava acordado durante todo este tempo mas tinha vivido como se num pesadelo de outra pessoa.
        Coisas diferentes do que estava acostumado a ver pareciam familiares agora que finalmente havia despertado, mas todas suas memórias eram como se fossem exatamente isso: o sonho que alguém conta pra você e que essa própria pessoa não tem a certeza de ter acontecido exatamente dessa forma.
        As nuvens tinham mudado de cor, não mais o cinza pálido, esfumaçado, como se da cidade numa manhã de sol verdadeiro tivesse evaporado toda poluição e o contorno dos objetos tivessem voltado exatamente para o lugar onde deveriam estar, emoldurando as cores para que estas encontrem alguma utilidade caso às vezes formem objetos.
         Os bichos, as árvores, as pessoas, os pensamentos, e tudo aquilo que ele costumava ver através de uma cortina de água, encontrava-se agora por motivos certos e sabidos aparentemente muito mais próximo da superfície.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Carnaval Inesquecível Na Cidade

   

        -Como foi que descobristes isso?
        -Bastou um pouco de boa vontade e logo percebi que a parte que mais estava à mostra do problema era a que por ironia se mostrava menos importante para solucioná-lo!
        -Como assim?
        -Mais ou menos como num filme. O problema aparecia concatenado em todos os seus pontos principais, mas que não poderiam ser compreendidos em conjunto, apenas isoladamente.
        -E daí?
        -Daí que uma questão de tamanha complexidade num projeto inicialmente tão simples tornou impossível de acreditar que alguém da equipe tivesse pelo menos conhecimento do que havia se tornado todo aquele material, e muito menos que fosse minimamente responsável pela montagem daquela obra cinematográfica, além do piano e do restante da orquestra.
        -Uma obra como a dos filmes ensaidos exaustivamente, executados ao som de profissionais tocando ao vivo como num balé sem improvisos, ou dizes-me da arte de erguer as paredes de uma construção como faz o peão-de-obra?
        -Quem sabe, se for executada com arte em prol da beleza, pode ser que se trate de obra de arte ou apenas uma casinhola chinfrim. De qualquer forma a perfeição a que se refere não poderá ser atingida em sua essência, assim como o pico da mais alta montanha jamais será atingido por diversos motivos: caprichos da natureza, falibilidade humana, erros de cálculo, ou se depois de você lá pisar um outro alpinista chega mais alto em outra montanha nunca descoberta antes e grita ha ha ha ha ha ha ha ha!!!     

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Essa Grande Figura

        Oi! Você me salvou. Sabe quantas vezes? Todas elas. E o que eu posso te dizer hoje é que essa data é mais uma daquelas que eram para ser especias, mais infelizmente não foram. Ou foram, sei lá. Você teve que voltar pra cidade onde ganha a vida, eu fiquei aqui não fazendo nem uma coisa nem outra e cá estou a hesitar, por que te dar parabéns, por que gostar tanto de uma pessoa que por força do destino, de mim e dos outros, viu-se obrigada a seguir outro caminho, viver outra vida, conhecer outros lugares? Encarar tantas mudanças em nós mesmos é incômodo para ambos.
         Eu sei que hoje não é seu aniversário de verdade, e você também sabe disso, mas só escrevi agora para você saber que eu muito me importo, e que só quero o melhor desse mundo pra sua vida, e se um dia a gente realmente ficar junto e eu puder te dar um grande abraço, com toda a força desse coração e o carinho que eu guardo pra você nesse peito que você merece, eu sei que irei às lágrimas porque eu te... Muitas Felicidades!!!

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Os Buracos de Março

 
        Depois de dois meses puxando uma cana por causa duma parada dada, Tutuca conseguiu com o juiz uma liberação graças a um excelente advogado de porta de cadeia, que deu um jeito para que esse vagabundo voltasse pras ruas e se encontrasse com outro cara que também não valia nada, o Birola:

        -Ahê Tutuca, de volta pras quebradas!
        -Pois é, Birola. E quero que tu me ajudes a fazer um serviço que eu tenho até amanhã pra pagar o "adevogado" que livrou minha cara!
        -E qual o esquema?
        -Bora ver se a gente puxa uma moto e leva pra Robauto, aí se eu pegar umas três pernas tu ficas com o resto.
        -Então tem que enquadrar no mínimo uma duzentos ou uma quinhentos...
        -Selado então, tá na mão. Pega o teu ferro que eu vou ter que ir lá na Lenita e em meia hora te encontro lá no Bilharito.
        -De rocha, Tutuca, mas bora ficar ligado...
        -Falou, o seguro morreu de velho!
        Duas horas depois, Tutuca dirigindo, Birola na garupa, corriam a mais de mil por hora atravessando todos os sinais vermelhos, fugindo de uma viatura da polícia montados na CB500 que tinham "puxado":
        -Putaqueopariu Tutuca, eles tão atirando na gente, pôrra! Acelera essa merda!
        -Mas não corre mais do que isso!
-Olhaprafrenteaíumcaminhãopáranosinalvermelhomeucaralho!!!!
                                  ...

domingo, 8 de janeiro de 2012

Segunda Tarde

         
        Sentei numa mesa encostada na parede, o mais afastado possível dos alto-falantes, que até tocavam um som maneiro mas naquele volume era foda, e pedi uma gelada e dois copos:
        -É que estou esperando alguém.
        O Donato ligou avisando que já estava no ônibus e não ia demorar nem dez minutos, a gente ia tomar umas cinco ou seis ali e depois descer pra cidade velha. A cerveja era quente como mijo e por aquele preço talvez fosse mijo mesmo, é por isso que eu desconfiava sempre e pedia pro garçom abrir a garrafa na minha frente, só pra ver se ele tirava barato:
        -Essa tá véu de noiva!
        -Ô, estou vendo... Eu me pergunto: como vocês fazem para deixar uma cerveja tão quente?
        -A gente encosta as grades no motor do freezer do lado de fora e lá dentro a gente pôe sacos plásticos cheios d'água pra fazer gelo e vender pra eventos em geral.
        -Estás falando sério que o negócio de vocês aqui é vender gelo?
        -Claro! Ou tu achas mesmo que a gente ganha dinheio vendendo cerveja quente pra um bando de manés por essa merreca?
        Por essa eu não esperava. Bom, pelo menos ele não mijava na garrafa. Quando eu já ia pedir outra daquelas estupidamente quente, uma moça que estava noutra mesa levantou-se e  veio na minha direção:
        -Olha, me desculpa, eu vi esse outro copo aqui e você deve estar esperando alguém, mas eu acho que te conheço de algum lugar, não és amigo do Donato?
        -É justamente quem eu estou esperando.
        -Nossa, que coincidência, e há um tempão que a gente não se vê! Meu nome é Maria, senta ali na mesa comigo e com a minha amiga que depois eu apresento pra ele!
        -Com prazer.
        Mais tarde o Donato chegou e conheceu a Lurdes, tomamos umas e outras e depois descemos os quatro pra cidade velha, e o outro dia foi muito bom também. 

sábado, 7 de janeiro de 2012

Último Movimento

 
        Sentado na poltrona verde estropiada, Cupuaçú Hendrix olhava fixamente pela janela, parecendo apreensivo com as nuvens se avolumando no horizonte, o que poderia retê-lo naquele quitinete minúsculo por horas com o famigerado Spif:
        -Esse é o terceiro cigarro que fumas em menos de cinco minutos. Toma aqui um copo de café para descer melhor o câncer.
        -Valeu. Queres um?
        -Não. Já fumei mais cedo.
        -E o Capivara, será que demora?
        -Só se não cair essa chuva.
        Na verdade Cupú Hendrix não aguentaria ficar ali nem mais cinco minutos. O único probvlema é que precisava de qualquer maneira encontrar o Capivara, que era uma espécie de arranjador da rapaziada: o que você precisasse, qualquer coisa a qualquer hora, era só falar com ele.
        Mas o cara era muito difícil de ser encontrado. Geralmente era ele quem avisava onde e quando iria aparecer, isso significava que você poderia receber um telefonema ter e que se deslocar pro outro lado da cidade até um lugar sujeiríssimo no meio da madrugada, ou ainda pior: encarar uma tarde num quitinete abafado suando feito um porco junto do mefítico Spif, alguém que de uma hora para outra poderia meter uma bala em sua cabeça, como diziam que havia feito meses atrás com seu finado  amigo e parceiro de confusões, Mike Limb.
        Além do que aquele lugar era  meio tenebroso. A parede toda do  lado esquerdo de quem entrava havia sido desenhada por algum pintor de bar maluco, que misturou os bichos mais estranhos numa paisagem tão exótica que parecia saída de uma líga de ácido no meio do País das Maravilhas:
        -Então quer dizer que o cara que pintou isso já morreu?
        -Foi o que a proprietária falou quando eu disse que ia passar tinta por cima.
        -Mas esse painel é meio que assustador!
        -Mas ela disse que gostava porque tinha sido o último desenho do cara que ainda morou aqui um tempo, antes de se jogar nu pela janela, se espatifando lá embaixo igual melancia podre.
        -Mas pintando desse jeito, até imagino por que ele se jogou!
        -Pois é né, e ele vivia disso...
        Cupú tentou desviar a conversa para outros assuntos, mas parecia que Spif tinha uma idéia fixa com a indesejada das gentes, lembrando sempre casos de pessoas próximas que morreram das formas mais escabrosas possíveis. Aquilo era um pouco assustador também.
Notou então que Spif tinha alguma coisa estranha em seu jeito de ser, na voz pausada, nos movimentos contidos, no balançar lento a cabeça concordando sempre, como se fizesse um esforço para executar cada gesto com uma atitude natural, mas por dentro se contendo o quanto podia senão esfaqueava alguém ou se jogava pela janela, voava os dez andares e tingia de vermelho o chão de asfalto.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Sinos da Partida

   
        -Aaaaaaaahhhh! Eu não te aguento maaaaaaaaisssss!
        -Mas Juliana, meu bem...
        -Não sou teu bem porra nehumaaaaaa! Vai-te embora daquiiii!!!!
        O surto costumava entrar na pior parte nessas horas, quando ela começava a atirar-lhe na cabeça os bibelôs de cerâmica vagabunda que comprava sempre e atulhava por todos os cantos da casa.
        João pegou suas chaves e saiu para dar uma volta, debaixo dos olhares de reprovação dos vizinhos, que metiam as cabeças para fora de portas e janelas para melhor apreciarem a briga.
        "Que merda!", pensou João, "O que será que está acontecendo com a Ju? Ela era tão boazinha logo que a gente se conheceu, insistiu tanto para que morássemos juntos, mas agora tem crises de ciúmes toda vez que me vê falando com outra pessoa, persegue meus passos, começou a visitar meus amigos com maior frequência que eu próprio e agora liga para todos eles quando me atraso no trabalho à noite! A casa que ela tanto queria, o respeito que tenho por ela, o filho que Deus nos mandou, o que será que está faltando em nossas vidas e que envenena o coração da moça por quem um dia me apaixonei? Será que ela tem razão e sou um péssimo companheiro? Ou será que essa vida que ela queria não era nada daquilo que ela esperava?"  
        De uns tempos para cá ele vinha chegando realmente cada vez mais tarde, sempre de madrugada. Às vezes ficava apenas fazendo hora no serviço, sem a mínima pressa de chegar em casa, abrir o portão que rangia nas dobradiças, tirar a roupa e os sapatos, tomar banho, entrar devagar no quarto e deitar-se na esteira do chão sem fazer barulho, por causa do sono leve de Juliana.
         De uns tempos pra cá, desde a última vez que fizeram um sexo sem graça, uma morrendo de sono e o outro morrendo de cansaso, ela pedira que ele quando chegasse muito tarde em casa por favor não fizesse barulho nem deitasse mais na cama ao lado dela, senão ela não conseguiria mais dormir de novo devido à insônia, dor-de-cabeça, stress, calor, por aí...

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

A Espera

       
        Ouvindo aquilo, atravessou a parede de fogo, e mesmo com as bordas da camisa pegando fogo, correu e conseguiu alcançar o bem mais preciososo que lhe havia sido dado:
        -Acorda! Você está bem? A gente tem que sair daqui rápido...
        Mas a garota estava semi-consciente, não conseguia ficar de pé nas próprias pernas porque havia respirado muita fumaça, e as chamas já tinham tomado conta de tudo, parecia definitivamente que não tinham como escapar:
        -Não!
        O que fazer após ter dito que não se quer morrer entregue àquilo que consome os móveis e as roupas e as coisas todas ao redor, se a vontade que nos dá é simplesmente ficar parado esperando o que mais cedo ou mais tarde iria acontecer mesmo?
        Mas quando você diz essa palavra, sabe que precisa fazer também alguma coisa, então olha ao redor e inventa uma saída:
        -Meu Deus, por ali!
        E aquele único trecho que seria necessário percorrer para salvar suas vidas, quente como uma fornalha um segundo atrás, tinha sido abafado com a queda de um pedaço do teto sobre o qual foi possível atravessar correndo por cima, carregando a moça no colo que ainda teve forças para enlaçar seu pescoço, e quando finalmente eles abandonaram aquele inferno, antes que desmaiasse de novo ela murmorou no seu ouvido:
        -Te amo...

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Farofa de Salsicha

     
        A primeira semana do mês era a melhor de todas, mas a felicidade terminava exatamente no sétimo dia, junto com o dinheiro do pagamento:
        -Agora te segura, outro só mês que vem!
        Então você ia se aguentando como dava, tomando bastante água com farinha, ou filando o almoço na casa dos amigos, dos conhecidos e até dos desconhecidos:
        -Agenor, quem é esse cara?
        -O nome dele é Heraldison, Maria! Conheci na fila do banco e convidei para vir almoçar aqui...
        -Mas Agenor, se a gente só tem arroz e ovo!
        -Serve, se não for incomodar, eu como só um pouquinho...
        Então Heraldison, que não sabia quando ia conseguir comer de novo, forrava a tripa. E toma-lhe farinha!
        Mas como ia dizendo, os três primeiros dias eram os melhores. Heraldison podia entrar no mercadinho e pagar o 'pendura' do mês passado no caderno do Seu Simeão:
        -Não falei que pagava? E ainda vou levar uma dessas daqui!
        E mandava embrulhar a cachaça mais cara, a Pitú Gold de oito reais, esbanjando dinheiro que ia faltar pra comprar pão no dia seguinte. Às vezes lembrava da época em que fumava e costumava guardar as baganas que sobravam  num potinho para fazer cigarros de porronca quando chegava em casa:
-Melhor do que fumar fumo de rolo.
Mesmo assim sempre deixava um saquinho de Matará entre as roupas, guardado para qualquer eventualidade, "além de ser melhor do que naftalina para espantar as traças!", pois era um tabaco forte.
Nos últimos dias do mês, em que o sacrífício tinha que ser um pouquinho maior, era só encostar na esquina com a galera do Seu Simeão, que se reunia e comprava duas latas de salsicha e um litro de farinha de mandioca, e faziam aquela farofada para descer com a cachaça que nunca faltava:
        -Que pra comer ninguém intéra, mas quando é pra tomar uma birita aí são outros quinhentos!
        Porque no bairro de Heraldison era sempre assim: caboco se alimentava mal, mas era bem mais fácil alguém morrer de cirrose do que de fome, disso ele tinha certeza.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

A Luta da Fibra do Couro do Jacaré

     
        Meu amigo Massafina, que tinha esse apelido porque desde criança só comia esse tipo de pão, morava numa rua que algava quando chovia, ou seja, vivia eternamente alagada, tanto que começaram a comentar na vizinhança que um famigerado espécime de réptil estaria a se criar por ali:
        -E pelo tempo que esse charco já está por aí, bem pode aparecer um dos grandes!, disse o Seu Dionísio dono da venda, alargando os braços o mais que podia, o que também não era tanto assim pois ele era anão.
        Na semana seguinte as suspeitas se confirmaram. O pessoal bebendo no Seu Dionísio, incluindo meu chapa Massafina, viu a precisa hora em que um jacaré enorme abocanhou um dos garotos da vizinhança, tomando banho junto com outros petizes no charco, o que era expressamente proibido por todas as mães devido também à cobras e piranhas que por ali rondavam.
        -Meu Deus, o jacaré vai engolir aquela criança!, disse um dos bêbados presentes na venda, virando um gole de São João da Barra logo em seguida, provavelmente para acalmar os nervos.
        -Deixa comigo!
        E quando o pessoal se deu conta, o Massafina já tinha tirado a camisa e se jogado na água de porre, segurando uma peixeira nos dentes, nadando furibundo em direção ao menino, que quando viu aquela montanha de gordura e conhaque de alcatrão indo na direção dele, pediu pro jacaré fazer um esforço e engolir ele mais rápido.
        Mas não teve jeito. O Massa, embora grande, nadava rápido, e tão logo alcançou os dois deu um safanão no moleque, atirando-o desacordado na margem e girou o pobre jacaré-açú pelo rabo tão rápido, mas tão rápido, que quando ele notou que ficou muito leve, parou de girar e viu que tinha ficado só o couro vazio do bicho tirado certinho na mão dele!

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Esporte Nacional

     
        -Sei lá, tava pensando em ti e resolvi te ligar. Vais fazer alguma coisa hoje?
        O domingo realmente estava bonito. Tinha que acordar cedo no dia seguinte como todo brasileiro, mas como todo brasileiro que se preza também tinha o direito de trabalhar de ressaca na segunda:
        -Vou fazer nada não! Que horas a gente se encontra?
        Ela queria assistir a um filme novo, uma porcaria romântica qualquer, eu ainda estava com uns trocados no bolso, então a gente marcou no único cinema que ainda funciona na cidade fora de um shopping, não que eu me recuse a entrar nessas merdas, mas se a gente ia assistir aquele lixo, que fosse pelo menos num lugar onde as pessoas iam realmente pra isso. E eu conhecia uma sala muito boa no centro, que também ficava no mesmo quarteirão de um monte de bares com bilharito:
        -Mas não sei se estou a fim de jogar sinuca depois...
        -Faz mal não! Depois do filme a gente toma só umas cervejas e bate um papo!
        O filme não era tão ruim, a atriz principal era muito gostosa e em várias partes aparecia com pouca roupa ou em posições sexuais ou as duas coisas. Na verdade era uma comédia-pornô-leve-romântica, o que valeu ao menos para repensar meus conceitos sobre filmes do genêro.
        A sessão terminou e por uma feliz coincidência, pois eu realmente não havia conseguido me ligar em futebol durante toda semana, estava começando o primeiro tempo do jogo do Flamengo quando a gente chegou no bar:
        -Putz! Como fui me esquecer que hoje tinha o jogo do Mengão?
        -Ah, tá! Vais dizer que não sabias e a gente veio parar aqui por acaso?
        -Mas se foi você mesma que me ligou! Juro que não sabia, se quiser podemos sentar lá fora, mas acho que vai cair aquela chuva!
-Então vamos pra lá ficar de costas pro telão!
E nem bem ela falou isso, a chuva que estava armada desde a hora em que a gente saiu do cinema, caiu com uma pancada tão forte que fez ressoar o prédio inteiro pois fez um barulhão no telhado de alumínio:
-Caralho! Por que não chove assim no sertão!?
-Calma, o jeito é ficar mesmo aqui e pedir outra cerveja. Vou tentar não assistir o jogo, mas se preferir a gente pode disputar uma partidinha no bilharito...
-Tomara que esse teu time de bosta perca!
Ôh, boca! E não é que perdeu mesmo? Mas a culpa foi da altitude, que cansa muito, além do que o ar rarefeito deixa aquela bolinha correndo ligeira e um tanto mais traiçoeira.

domingo, 1 de janeiro de 2012

Manual das Consequências

       Hilda tinha em sua cabeça algumas idéias recorrentes e por certo motivo envergonhava-se disso. Talvez não de seus pensamentos, mas a vergonha viesse de seus atos, o que também não faz muito sentido, pois todos que a conheciam podiam testemunhar de seu comportamento probo e caráter honesto.
       Hilda preocupava-se com essas idéias, a todo momento espreitando-lhe a parte posterior da mente, esperando o momento oportuno de ocupar-lhe de vez a consciência gerando-lhe angústia e apreensão, levando-a fatalmente a ter de marcar outra consulta no psiquiatra e arranjar outra prescrição por causa da recaída e etc, etc...
        Vendo que este caminho levaria-a à destruição, resolveu pesquisar e tentou descobrir se não haveria alguma alternativa ao uso de fármacos: terapia holística, Florais de Bach, pirâmides, cristais, incenso, qualquer coisa que aliviasse daquela loucura de todo tempo pensar em uma pessoa estando com outra, de achar aliás que as coisas erradas aconteciam justamente por pensar nelas, e de que todos ao redor faziam parte de um mundo orquestrado para tocar a música mais perfeita apenas à seus ouvidos, regido por mente superior e diferenciada do vulgo: ela própria.
        E por que motivos ocultos, carma, destino, o que seja, Hilda acabou descobrindo em sua busca para livrar-se dos sentimentos depressivos a existência de outra pessoa em si mesma: uma pessoa pura e boa que ainda não havia sido contaminada pelas misérias do mundo, ajudaria-a em cada momento a alçar-se do fundo de si mesma, até que pudesse andar pelo mundo como a pessoa livre a que estava destinada a se tornar:
        -Acho que consegui. Tenho certeza de que agora em diante descobri o que procurava!
        -Hein?, perguntou Marcos, enquanto abaixava o volume da tevê, demonstrando assim certo respeito pelas maluquices da namorada, que em certos momentos abria a boca e desatava a falar coisas a que ele não dava a mínima nem fazia idéia do que seria, pois tinha desistido de tentar entender.
        -Escuta só: uma idéia fixa pode levar alguém à ruína apenas quando começa a interferir em seus atos, levando-a a tomar decisões erradas. Então uma solução possível é decidir o que fazer da vida futuramente  baseada em outros parâmetros que não apenas minhas idéias, algumas possivelmente de fundo patológico, tantando aliviar a tensão do conflito com o uso de drogas consideradas leves, como o álcool ou a maconha!
        Marcos olhou para a namorada que sorria como se tivesse uma preciosidade nas mãos, imaginou se ela não tinha mais uma vez abusado dos remédios, e nessa noite quando voltou pra casa estava mais confuso e apaixonado do que nunca.