segunda-feira, 30 de abril de 2012

Rua Molhada



        O dia inteiro nublado.
        Vez por outra recomeçava uma pancada d'água, durando no máximo uma hora e depois tornando-se um chuvisco miúdo mas persistente, continuando nesse vai-e-volta até alta madrugada, só pararando após encharcar todas as pedras e o asfalto por onde vivessem plantas e por onde andasssem bêbados loucos, que por um nada percorriam aquelas calçadas irregulares, tomando cachaça e quedas.
        Nenhum carro passava, nenhuma pessoa se cruzava: tinha-se a impressão de que continuaria chovendo até o amanhecer, mais forte ou mais fraco, dependendo da força do vento frio e da umidade enregelante: existe quem confie na luz fraca dos postes, um último bêbado a caminhar pelo meio da pista deserta, mas que admira o quê?
        A cidade estava parada aquela hora, nada esperava-se dela, nem ela esperaria nada de si, devido tanta água caindo, fenômeno atmosférico deveras rotineiro, incapaz de acordar o sono de quem dorme sob telhados preguiçosos, ouvindo apenas um tamborilar enquanto aconchega-se mais no calor dos cobertores.
        Lá fora gotas suicidas estouram frenéticas nas marquises, nas calçadas, no asfalto, desgastam cimento e ferro, fechando nossos olhos sob aquela luz, sob os elementos água, fogo, vento, terra, o que nos impede de sentir algo além dum frio do caralho, mas é como se por instantes houvesse sentido em algo além daquilo, apenas por estar ali admirando o lugar, sentindo, andando, protegendo-se do frio da escuridão.
        Iluminado pelas luzes precárias dos postes em curto-circuito; pelas lâmpadas sujas que piscavam tão amareladas que era impossível enxergar um palmo à frente; e olhando pro fim da rua, via-se que todos os postes estavam simplesmente apagados.
        Um aguaceiro entre moderado e forte caindo ininterrupto fazia dois dias.
        Transformadores explodindo como bombas, lançando faíscas em todas as direções, então a única solução é seguir em passo acelerado, tentando se proteger do fogo e da água que caem juntos do céu.

domingo, 29 de abril de 2012

A Cidade e o Estado



Movia-se lentamente, mas quem aproximasse os olhos notaria tratar-se apenas do efeito de conjunto; vista isolada, era como movimentassem-se ali, todos os dias, cerca de um milhão e meio de pessoas; trabalhando, passeando, estudando, exercitando, bebendo, fumando, transando, drogando, amando.
        Mas a maioria era como a cidade: arrastava-se por entre montes de sujeira e entulho, talvez confiados que algum dia aparecesse quem botasse na rua um asfalto cobrindo os buracos; passasse cal no muro e no meio-fio da calçada, só que ao invés disso eram atacados por onças e jacarés. Enfim, queriam um serviço público equivalente ao preço cobrado pelo governo, mas a maioria da população achava desnecessário preocupar-se disso.
        Interessante o desenrolar das teorias que poderiam justificar a mais ampla gama de atitudes, desde a completa imobilidade até a neurastenia: o Estado era Leviatã; se Maomé não ia até a montanha, a montanha viria à Maomé; Deus escrevia certo por linhas tortas e faz por ti que Eu te ajudarei.
        Tinha quem prometesse ir todo ano na corda do Círio, de joelhos! Um outro disse que ia distribuir sopa pros famintos. Menos aquele que a renda atual não permitia.
        -Égua, véio! Mas se eu compro por cinco tenho que vender a déiz, falou?
        Assim funcionava o nosso pensamento: tentava justificar qualquer ato, por mais pilantra que fosse, passando sempre um verniz novo por cima, já que o sol esturricante podia secar qualquer coisa em poucos minutos, deixando os  objetos brilhantes: alguns chegavam até a cegar com o reflexo do meio-dia, embora sob a camada de resina restasse apenas sobras de madeira podre, cheia de cupins.

sábado, 28 de abril de 2012

Região do Guajará


Tentavam caminhar para frente, a maioria de nós perdidos: alguns arriscavam-se pelo asfalto, outros protegiam-se na sombra das poucas árvores que ainda restavam pelo subúrbio, mirradas e secas, misturando-se na vista com a poeira do ar. 
        Nem bichos, nem pássaros; naquela secura ninguém encontrava o rumo; o calor excessivo tornava qualquer esforço demasiado inútil. Além do que confundia o pensamento um eterno suor escorrendo pela testa, fazendo arder os olhos das pessoas.   
        Faltava ali uma brisa, uma corrente de ar que amenizasse a quentura, que  livrasse daquela dor nos pés e do pó cinzento que impregnava tudo, criando uma cortina que encobria os objetos.
        Talvez o ofuscamento causado pela luz impiedosa provoque alucinações, mas é difícil acreditar que alguém faça coisas inconscientemente por causa disso. 
        O sol do meio-dia podia dissolver as formas dos objetos, mas qualquer um encontraria alívio vil sentando à beira de algum dos inúmeros cursos d'água existentes no lugar, para refrescar-se.
        Passava o tempo e passava o calor, mas o sol de todos os dias novamente implacável impedia-os de ver isso, assim só pensavam em botar dentro da correnteza as pernas.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Acontece

Teve um tempo em que ela não queria mais nada, pois havia construído um muro em volta de si.
       Achava que a vida não tinha valor, que era mais fácil foder os outros antes que eles fizessem o mesmo com ela.
        Mulher esperta, que por acaso encontrei outro dia na rua:
        -Como anda a vida?
        -Nem uma coisa nem outra, mas daquele mesmo jeito...
        Em outras palavras, continuava batalhando um emprego decente, estudando a faculdade, conhecendo pessoas diferentes a cada dia, procurando alguém em quem confiar.
        Mas reconhecia que era difícil: só encontrava no caminho quem não prestava, quem fazia o mal e sentia prazer nisso, o que a deixava triste.
         Embora concordando, não podia deixar por menos:
        -Eu sei como é foda descobrir que toda essa gente no fundo não presta.
        -E agora finalmente já sei como fedem...
        -Talvez estejas enganada: ainda vais encontrar alguém que te ame de verdade.
        Ela assentiu com a cabeça, mas seu semblante era de completa desilusão:
        -Não espero encontrar quem seja! Quem eu amava, sem mais por que me deixou, e vens com esse papo furado? Ora vá...

quinta-feira, 26 de abril de 2012

As Musas



        Começou comigo deitado na cama em casa, pensando:
        "Pôrra, que vida de merda! Fazendo pra caralho o que gosto, mas mesmo assim sem ninguém do meu lado nem pra conversar! Jesus Cristo!"
        Nesse exato momento meu irmão me liga, avisando que deu tudo certo e vai ficar tudo bem, e que eu devo almoçar com meu pai amanhã de manhã.
        Desligo o telefone, alguém está batendo na porta de casa, mal me vê descendo a escada e vai perguntando:
        -Estás ocupado?
        -Não.
        -E o melhor sexo da tua vida, já fizeste?
        A chuva começou a cair, tocou de novo o telefone, atendi:
        -Abre que estou aqui na frente, me molhando!
        Minha ex-namorada que veio de surpresa. Quando subiu a escada e viu a moça nua na cama, foi logo perguntando dela, enquanto ia tirando a roupa:
        -Ele aguenta com nós duas?
        -Até com três!
        Nesse momento nada podia dar errado, então o telefone toca pela última vez naquela noite:
        -Mas quem está falando?
        -Abre a porta e vê...
        Mas ela mesma abriu. Segurava o cigarro entre o dedo indicador e o médio da mão esquerda, sempre assoprando a fumaça por cima do ombro direito, pois embora cultivasse certas manias, também odiava o cheiro do tabaco.
        Impossível de acreditar, parecia um sonho!
        Deu o último trago, largou o cigarro, tirou toda roupa, deitou com a gente na cama, linda, linda; me deu um beijo na boca, depois disse:
        -Agora começa...

quarta-feira, 25 de abril de 2012

O Céu Azul

        Mar cinzento. As dunas carregadas de areia cegante porque naquele horário batia tanto sol...
         -Aaaaaarrrrrrgggghhgshagshahhhhaaaa...
        Morreu, ou quase, o homem que deu esse grito primal: queria encontrar qualquer coisa fora do tempo, como a própria morte:
        -Temos que voltar!
        -Mas ainda quero nadar nesse marzão!
        Fingindo que não tinha medo da morte, parecendo não se preocupar, assim comportava-se.
        Logo soubemos o quanto estava atemorizado pela expectativa da chegada da inesperada das gentes.
        Houve um momento deveras indesejável: eu acompanhando de longe ele nadando, percebi que ali já não dava mais pé; justo quando o cara tinha perdido quase todo fôlego:
        -Pôrra, filho! Foda que aqui não dá mais para alcançar o fundo...
        -Fica frio, lembra das técnicas.
        No caso, existem inúmeras técnicas para permanecer na superfície do mar: boiar; nadar cachorrinho; bater as pernas na vertical e os braços na horizontal; segurar o pulmão cheio de ar durante trinta segundos, expirando e inspirando rapidamente, mas sempre mantendo a respiração presa no mínimo durante trinta segundos que o tronco permanece na superfície;
        Além da técnica mais arriscada: hiperventilar-se, depois soltar todo ar dos pulmões de uma vez, imergindo assim rapidamente, até tocar o leito arenoso, tomando o maior impulso possível em direção à margem, mas sempre procurando ir pra frente, guardando um pouco do ar para alcançar a superfície.
       Certa ocasião em que estando muito longe da margem, acontece de termos nosso último pensamento tão pouco coerente que respiramos o ar da atmosfera agradecendo pela última vez.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Meu Grande Amigo




        Estrôncio é o nome de um elemento químico da tabela periódica, e sabe-se lá por quê, era também o apelido dum figura que eu conhecia.
        Um certo dia ele passou do meu lado no corredor, e eu sem mais aquela, só fiz peguntar:
        -E aí, seu Estrôncio, como vai essa vida?
        -Chega um instante, deixa eu te contar...
        E me segurou pelo praço e começou a desfilar um ladainha tão chata, que me deu vontade que ele tivesse um colapso cardíaco ou qualquer coisa que o matasse instantaneamente e largasse do meu braço.
        Eu lá escutando do custo de vida, do preço do aluguel, do choro das crianças, das reclamações da mulher, das cobranças, de tudo; já achando que aquele merda era o último dos caras do mundo e um tremendo filhadaputa por me segurar daquele jeito, me fazendo ainda por cima perder tempo, mas foi quando ele começou a falar umas coisas que eu nunca tinha escutado antes:
        -Mas agora fora isso, o mais importante é...
        Falando então do que era realmemte importante em sua vida, de onde tirava forças para recomeçar cada dia melhor que o anterior, era como se houvesse um plano traçado em sua mente do começo ao fim, restava apenas continuar a executá-lo.
        Sua existência naquele exato momento era bem diferente de seus sonhos, e mesmo assim ele perseverava.
        Se ia dar errado, ele não podia saber, mas pelo menos continuava tentando, depois vendo minha agonia encerrou o papo com uma frase que não entendi bem:
        -Fique peixe, fique cru, estamos neste planeta agora.
        Aí pensei: "Puta cara esse Estrôncio, quer dizer...".
        Ia parar de ser safado com ele, então toda vez que a gente se encontrava passei a cumprimentá-lo pelo nome próprio.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Foda-se o Mundo


       

        Existiam várias pessoas no planeta, e eram tantas que nem todas podiam se conhecer(?)
        Se hoje é possível pensar na coisa mais óbvia que salva o caráter do ser humano.
        -O pensamento?
        -Agora pensa mais um pouco...
        -Jesus.
        O que me liberta da minha prisão, apenas num sentido metafórico, por enquanto ainda estou livre, faço o que gosto além de ser minha profissão. Apenas ocasionalmente ganho dinheiro, mas não importa, só me importam, além dos sabores, as pessoas e o sabor que as conduz.
        -Prova deste molho.
        -Humm...
        -Daqui a pouco vai estar melhor...
        Depois de duas, três horas de fogo baixo, o molho estava uma delícia: um aroma suave passava e entrava pelas narinas, um sabor conhecido identificado pela memória, enquanto retido pelo crivo de aço sobrava apenas uma borra preta,  deixando passar só o líquido aromático estupefaciente.

domingo, 22 de abril de 2012

O Circo Desconhecido



"Olhando no teu rosto quero de ti o que a gente ainda não descobriu, justamente porque nos falta ainda muita coisa."

        De vez em quando aparecia um circo na cidade, dentre vários.
        As pessoas adoravam palhaços, domadores, trapezistas, equilibristas, mágicos, enfim: qualquer criatura que possuísse habilidades suficientes para figurar num circo mambembe.
        Como aquele que apareceu da última vez por aqui; onde o equilibrista escorregou, o domador perdeu os braços e o Homem-Bala quando caiu no chão já estava sem uma perna.
        Foi num dia em que todo mundo via acontecendo tanta cagada, continuando impassível enquanto o cara se ajeitava no canhão, como se aquela fosse sua única obrigação: arriscar a vida pelo espetáculo.
        Mas acontece que o circo é o circo.
        A gente olha pra trás, bate uma saudade na hora de partir, mas só aceita partir quem quer passear pelo mundo sem ligar pra liberdade.
        Gostar de quem se ama, viver feliz com aqueles que estão do nosso lado, independentemente de onde estiverem, porque o pensamento não conhece fronteiras.
        Você diz que nunca mais vai voltar, mas um dia a gente volta.
        Mesmo depois de rodar meio mundo e de descobir tanta coisa desnecessária para você, sabemos que agora finalmente, rodando durante todo esse tempo em vão, novamente nos encontramos frente a frente, olhos nos olhos.

sábado, 21 de abril de 2012

A Ponte e o Egoísmo

 O rapaz dizia que sofria muito mais do que o comum dos mortais, comparando-se com quem vive sem um puto, trabalhe o mês todo sem folga, e ganhe menos de um salário todo dia trinta:
        -Mas eu ganho um salário mínimo!
        -Se estou ganhando menos que o mínimo, é porque só tenho o segundo grau!
        -Tenho três graduações e ganho menos que o mínimo, do mínimo do mínimo, mas trabalho igual o Carvalho!!!
        -Quem mandou não estudar!
Culpa sua nascer filho de pai rico que empreste quinhentos mil para abrir um negócio, porque tem semianalfabeto que vai no banco e pode dispor dessa grana graças aos genitores, mas é gente que tem o segundo grau só pra constar: se tiver terceiro grau, geralmente curso técnico de no máximo dois anos, foi de pagar faculdade particular, que só se preocupa em reprovar o "GRADUANDO", caso ele não fique devendo o boleto mensal.
Fora os que fazem faculdade pública, que envolve baixa política, envolve picuinhas regionais e principalmente, onde se ajuntam um bando de babacas que se acham o último chocolate do pacote.
        Infelizmente, nível superior no Brasil pra maioria é uma piada. 
        Pra mim é só tristeza, não vejo a menor graça em fazer parte duma turma se achando o caralho, no final úteis apenas como massa(?) de manobra, já que não passam de alienados, .
        Leia a Bíblia, estude bastante e seja honesto com seu trabalho.
        Fora isso não existe saída.
        Acredite: até quem não vale a saliva que cospe, não se acerca de gente mau-caráter porque sabe que de uma forma ou de outra ao lado de gente assim vai acabar se fudendo no final.
        Tem maluco com veneno ao invés de sangue circulando nas veias, cuja persona queremos distante: gente que a cada momento só planeja maldades, pensando a cada segundo em neuroticamente fazer o mal pros outros. 

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Cabano Comum


         A moça caminhava ao lado do rapaz e pude ver que ambos bebiam de mesma taça, parecendo não se  importar com horários e caminhos, sem destino: apenas curtim aquele momento e seguiam sem rumo, provavelmente em direção à praça.
Enquanto isso bebiam, e o rapaz vez por outra tirava a rolha e completava a taça que traziam, e brindavam segurando a mesma haste: só depois que bebiam do líquido vermelho brilhante é que se beijavam e começavem a rir, depois continuavam a caminhar.
Sentaram ao lado do cemitério; loucos brindaram aos mortos e ficaram sérios novamente; completaram a taça com a última gota de vinho e fizeram um brinde para Jesus Cristo; depois abaixaram as cabeças e calaram-se.
Até que a moça falou:
-Como é meu nome?
-Não sei.
-Também não sei o teu.
-O meu já esqueci faz tempo.
Ela pediu para ver a identidade do rapaz, e ele mostrou o documento e realmente não havia nada que o identificasse: apenas um monte de letras ajuntadas em palavras, debaixo de um rosto que nunca fora o dele.
Ela olhou para aquilo e perguntou:
-Esse na identidade não és tu, como é que andas assim?
-Apenas acredito que sou este aqui...

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Três Minutos

     
        Uma idéia vale mais do que uma imagem e mil palavras.
        Se da mesma forma que para ser fotógrafo não basta uma câmera de celular, para começar a escrever você acha que precisa do quê?
        -Ser alfabetizado!
        -Saber português!
        -Falar outra língua; no momento de preferência inglês ou mandarim.
        -Fumar maconha e beber cachaça!
        Não.
        Antes de tudo, evitar a babaquice.
        Depois de tentar deixar de ser babaca, esteja sentado, porque é muito esquisito escrever em pé na fila do banco, então pese seu coração, deixando de lado todo oportunismo imbecil e inútil, então começa o sentimento a falar mais alto, entre tantas vozes gritando em nossa cabeça.
        Existem outros caminhos para fazer o que se gosta, inclusive alguns que não foram descobertos ainda, o que nos serve de estímulo para não parar nunca e perseguir sempre o novo. Ou o antigo, dependendo da moda do momento.
        Aliterações, ritmo, rimas e repetições nunca são sempre bem-vindas, pois podem confundir quem lê, causando a impressão de que apenas quem escreveu conhece sobre o que estava escrevendo.
E o cheiro da comida significa que você não tem mais tempo, acabou.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

A Volta de Rosa



         Num dado momento, apenas as células cerebrais que interagiam com o álcool dariam conta de estruturar um pensamento, que ocasionalmente se expressava sem palavras, já que o autor esquecia do que queria dizer.
         Mas algo permanecia ali no fundo: um sentimento confuso que se misturava com os outros tão fácil quanto seria misturar palavras para completar uma lacuna na língua nativa.
        A palavra mais longa do mundo é a junção de outras vinte, mas não significa nada.
        Já para o que tem significado não se encontram palavras.
        E acredito em Deus, assim como acredito que choveu.
        Mas ela que me faz sentir assim, percebendo o quanto sou ignorante permanecendo ignorante, e isso não tem preço...
        Para quem quer continuar sendo um babaca, existem todos os sentimentos ruins misturados num só.
        Você pode fazer discursos a vida inteira, tentando ignorar o que acontece por dentro, mas algo que não dá para ser expresso com palavras acaba sendo dito nas entrelinhas:
        -Quanto é necessário sofrer até cessar o que nos atormenta?
        Quem ignora a resposta deve ao menos ter caráter.
        E olha pro céu: vê só como a vida é leve enquanto chove...

terça-feira, 17 de abril de 2012

Resista


 -Chega! Põe esse copo na mesa que você já bebeu demais!
        -Só mais uma dose.
        E continuou até esvaziar a garrafa.
        Completamente bêbado, teve a idéia de sair para comprar mais birita no mercado, mas não conseguia encontrar a chave do cadeado do portão.
        A solução foi pular o muro: se desequilibrou e na queda acabou torcendo o pé, mas não sentiu na hora pois encontrava-se completamente anestesiado pela cachaça.
       Saiu andando pela rua cambaleante, trazia dinheiro suficiente para comprar mais dois litros de aguardente, então voltaria pra casa e continuaria bebendo o restante da tarde; eram esses seus planos para aquele dia de folga.
       Mas depois de dois quarteirões começou a sentir-se mal, uma tontura, deu mais uns passos, encostou-se num muro de um terreno baldio e vomitou, além de um líquido amarelado de bile, o que parecia serem pedaços de sua garganta.
        Sentia agora uma moleza. Foi escorregando até o chão, inclinou a cabeça sobre o peito e começou a viajar de olhos fechados em pensamentos alcoolizados absurdos  :
        "Impressionante. Parece que hoje em dia todo mundo toma drogas ou 'alguma coisinha' para suportar o dia-a-dia! Mas com certeza não sou viciado, quero dizer, isso que eu bebo não é droga, não! Vende em qualquer lugar e não precisa de receita,além do quê dizem que é um produto natural..."
        E bebendo continuou a se enganar.
        Seu organismo aos poucos foi falhando, até que depois de um tempo o sofrimento finalmente acabava: deitado num corredor de hospital público, há três dias sem receber o mínimo atendimento, morria a criatura de cirrose hepática.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Nunca Saberemos




        O que tenho todo dia de fazer?
        Acordar.
        Escovar os dentes e sair.
        Mas fora isso, quando chego e viajo nessa estória, é que penso o quanto a vida é doida e estranho o que acontece com a gente por culpa da vontade dos outros.
        Talvez venha o momento em que a gente se canse das coisas, ao ver que não adianta fazer nada para mudar nossa realidade, pois somos o que somos.
        E aquela moça?
        Vivia mais ou menos a uma légua de distância, mas parecia que vivíamos em hemisférios diferentes.
        -Arrrghhhhhhhh! Porque então você não liga pra mim!
        -Ligar? Eu queria você aqui do meu lado, fazendo o que fazes de melhor.
        -Isso não poderia ser menos superficial pra você?
        -O que queres ouvir?
        -Diz o quanto sou linda, que sou o amor da tua vida!
        -Realmente és linda e gosto de ti, mas amo outra...
        -Ora, então vai te fuder!!!
        Depois disso desligou o telefone na minha cara e nunca mais voltou a atendê-lo.

domingo, 15 de abril de 2012

Max, Poeta da Estrela

           "Santo Pai Lázaro, católico de todos os Armênios."

        Conhecíamos-nos desde pequenos.
        Não sei o que fazer numa hora dessas.
        Que ridícula a mente por desconhecer a beleza de termos um coração!
        Tento entender mas no fim das contas não é possível ter idéia do que está acontecendo; a única forma de contribuir é continuar trabalhando.
        Mas como vou (vôo, vôô, vol)  saber o que se passa nesta cabeça? É solitário, é absurdo, mas necessário.
        Como as coisas que você faz de propósito e diz que é sem querer, dando uma de zé-sonso.
        Tendo que aprender a viver na realidade e descobrir que esta não nos faz mal; muito pelo contrário: melhora-nos a existência.
        "-Como isso pode ser ao menos lógico? Como podes escrever essas barbaridades???
        -Casca de alho!"
        Na verdade o que sentimos não tem lógica nenhuma; ou talvez até tenha, às vezes...
        Mas é nessas horas que dá aquela vontade de dizer um baita palavrão, tipo:

sábado, 14 de abril de 2012

Fictícia República Democrática




         Certa democracia em latinoamérica, depois de um processo civilizatório(?) intenso, passou a figurar no mapa, como um vira-lata admitido numa exposição.
         Infelizmente era um país corrupto governado por pilantras que chegavam ao poder graças ao dinheiro de campanhas que diziam o quanto eles eram bacanas e o que fariam pelo povo quando eleitos.
         Chegando ao poder acontecia de serem exatamente o contrário do que prometiam.
         Mas a maioria da população era culpada por ser muito idiota de a cada dois anos votar nos mesmos safados de sempre, não se importando com o que eles fizessem nos anos seguintes.
         Talvez pela falta de memória crônica, talvez pela puta mídia em cima, talvez por qualquer motivo que fosse, mas faziam merda sempre e por isso continuavam na merda.
         As leis eram bonitas no papel mas não funcionavam. Ops, funcionavam sim: para foder os que já estavam fodidos, beneficiando(?) assim as bestas que após a morte certamente iriam encontrar seus parentes no inferno, ou seja, políticos e quem votou neles em geral.
         Mas adiantava criar novas leis num país assim?
         Claro que não, pois sempre haveria espaço onde alguém mal-intecionado poderia circular, apenas para usar um eufemismo do quanto a população desse lugar era cheia de gente que não valia nada

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Que Vontade

     
        Depois de muito lutar, tinha o corpo destruído: a costela quebrada perfuraria-lhe o pulmão, terminando por matá-lo. 
        Até então, ele não era mais capaz de perceber o próprio sofrimento.
        Aos poucos as coisas foram mudando: primeiro os legumes a as carnes estragaram; depois até a comida recém-feita tinha cheiro, e consequentemente o gosto, de coisa podre.
        Mas não havia comida estragada por perto: apenas o olfato falhava, o paladar abandonava. 
        Perdia a capacidade de sentir o gosto do que tinha gosto bom, ao mesmo tempo em que esquecia o sabor de tudo aquilo que amaou e no que acreditava. 
        Assim sua vida ia-se tornando apenas amargor.
        O pai tinha um ditado: viver com porcos acostuma o fedor. 
        Então tinha que fazer um esforço redobrado tentando não virar porco.
        Mas trabalhava como cozinheiro, e sem o paladar esforçava-se por recriar o sabor do que tanto gostava apenas de memória, pois fisicamente era agora incapaz de perceber o sabor de cada prato: a nuance de cada ingrediente contribuindo para o efeito de conjunto tornara-se conflitante ao invés de inebriante.
        Podia olhar, tocar, sentir, mas faltava um sentido superior, justamente do qual dependiam todos os outros.
        Mesmo assim continuou cozinhando, embora nada mais fizesse sentido.
        De suas mãos saiam pratos maravilhosos como na melhor lembrança de nossas vidas fugazes: daquilo que um dia aconteceu e sabe-se lá por que sumiu de nossa vida.
        Embora não tivesse a mínima esperança de um dia conseguir reproduzir novamente aquele aroma, aquela cor, aquela textura, continuava tentando.
        Como alguém apaixonado que insistia, pois insistiu a vida toda, mas acabou traído pelo próprio olfato.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Abacateiro




Caminhávamos pela areia quente, sentindo o sol na cara. Ela fingia não se incomodar.
        Tínhamos medo porque precisávamos tanto um do outro.
        -Não é por aí...
        Tudo depende do que se faz e do que se deixa de fazer; de como se ganha a vida mais ou menos: vale menos quem ganha menos.
        E o mais importante do mundo, o que é?
        -Essa é uma resposta muito pessoal.
         "Lembro da época em que vivíamos sob um telhado de palha: quando ameaçava chuva, você com frio e medo me dizia pra te abraçar com força, sem saber que eu mesmo vivia do teu calor...
        A mesma estória batida: gente se encontrando por acaso.
        Mas é apenas uma melodia, que na maior parte do tempo ignoramos. Até o ponto em que chega mais perto, se torna audível e podemos conhecê-la.
        E diz num sussurro palavras tão antigas.
        Com seus olhos, sua boca.
        Refazendo tudo.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

La Mordida




        Sinto o corpo dela.
        Linda, nua na minha frente.
        Estendo as mãs para tocá-la; encosto minha pele na sua pele, minha carne em sua carne.
        Outros espaços.
        Lugares onde a gente vive de verdade.
        Algo aproximado teria a seguinte comparação:
        Um país corrupto que passa a ser governado por anjos.
        Um movimento perfeito do teu corpo, que dá prazer só de olhar.
        A tua boca entreaberta, tua cor, teu cheiro, teu gosto: um mundo desconhecido para mim.
        Como?
        Por quê?
        Mas se a gente continua fazendo as mesmas coisas de sempre! Será possível?
Quem não tem fé em nada torna-se como algo que se abandona: inútil, irrecuperável.
Apenas como lembrança do que passou, como se a vida não passasse de cada momento, e o pensamento é escasso.
        É isso.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Pensando Nada




        Não estás pensando em nada ?
        -Sim.
        Mas quando pensas em nada, pensas alguma coisa?
        -Não.
        E que palavra vem à cabeça neste exato momento?
        -Simplesmente.
        Quando perguntam algo, és obrigado a responder?
        -Só se isso for um jogo.
        Como é pensar em nada?
        -Ainda não pensei nisso.
        Em três linhas, sua filosofia de vida, por favor?
        -Primeiro, crer em Deus; segundo: trabalhe pelos outros, pois no fim das contas só o que você ama é quem interessa; e terceiro, não sejas babaca: o mundo têm inacreditavelmente mais sete bilhões de pessoas, então aprenda a olhar para quem está ao seu lado.
        Gostarias de dizer mais alguma coisa?
        -Sim.
        Então?
        -Tenho uma preguiça inata, que me impede de dizer qualquer coisa coerente. Lendo um texto horrível desses, com falhas gritantes de concordância e pontuação, percebe-se logo o que quero dizer...
        Só isso?
        -Quase. Se este não foi o melhor dia da minha vida, chegou entre os três primeiros...

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Inacreditável Elixir do Tempo



        Tem vezes que a gente está tão cansado, que a única coisa que conseguimos pensar é em abaixar a cabeça e dormir.
        Várias situações do dia aparecem nesta transição entre sono e vigília: pedaços de conversas entrecortadas; pessoas que sumiram há tempos, mas que voltaram à nossa lembrança como se tivessem acabado de estar aqui.
        Um perfume já esquecido, doce como a pessoa que usava-o.
        Um gesto familiar num desconhecido, que nos lembra uma pessoa ausente.
        Pois a vida é feita de momentos fugazes; deveras inútil ao perceber que esqueceremos tudo no instante seguinte.
        Mesmo ao fazer um esforço tentando lembrar do que realmente aconteceu, somos traídos pelo memória e o que temos são lembranças misturadas: rostos transplantados em outros corpos; bocas que se mexem emitindo pensamentos alheios com vozes trocadas; olhos que mudam de formato e de cor a cada piscada.
        Cada traço diluindo-se com outros, até o ponto em que não é mais possível lembrar do que se quer lembrar realmente.
        A memória brinca com a realidade ao traduzí-la segundo um desejo oculto: nossa vontade profunda de que a coisas tivessem tomado outro caminho.
        Mas se a vida fosse de outro jeito, será que ainda estaríamos aqui?
        Seríamos melhores ou piores? Iguais?
        O que se demora a perceber é que cada dia não é um a mais: é um dia a menos.
        A cada segundo, minuto, hora, semana, mês ou ano que passamos sem perceber, é porque temos menos tempo.
        A cada dia então a vida vai encolhendo mais e mais, até que chega o limite.

domingo, 8 de abril de 2012

Dama ou Xadrez




        "Se na desordem do armário embutido, meu paletó enlaça teu vestido, o teu sapato ainda pisa nos meus(...)"

        Decidindo um mundo naquele dia.
        Se saía fora ou se ficava: pois um dia acreditou e teve fé; ou sempre foi potoca o que falava?
        Os recursos estilísticos mais do que manjados.
        Os recursos estéticos de manuais toscos da internet.
        A repetição como forma de enfatizar a ausência de idéias, feito uma repetição, apenas para não ter o trabalho de pensar ou de viver.
        Eu posso dizer que vivo no mesmo lugar. Isso embora seja verdade, é mentira, pois eu não vivo mais aqui.
        Passo a maior parte do meu tempo na rua: como na rua; tomo banho na rua; trabalho na rua; estudo na rua, durmo na rua. Só volto pra casa de um parente distante quando tenho que lavar uma sacola cheia de roupas imundas.
        Agradeço tudo isso, mas infelizmente de nada serve. Se vivo pelos outros é porque quero.
        Devo concentrar-me agora no que o mundo cobra, e sabemos que não é fácil, esqueça o romantismo ou blá-blá-blá...
        "E se morrerres amanhã?
        Com a palavra o eminente doutor Osírio Caldas:

sábado, 7 de abril de 2012

Recicle Um Otário


        Você já conheceu o pior tipo de gente da sua vida?
        Aquele cara que só pensa e si e no fundo odeia os outros, que podem estar se fodendo em copas que ele não nota?
        Alguém que te cobra pra caralho, e por mais que você tente atender seus pedidos, só levas mais esporro e cobrança?
        Pois tem negunho assim saindo pelo ladrão e acredite: pode ser que sejas um deles.
        Exemplo: meu grande brother estava passando por uma situação difícil.
        Um cara que antigamente tinha muitos amigos e vivia no melhor dos mundos, agora trazia a alma pela primeira vez repleta de dúvidas.
        Os que acercaram-se dele na bonança e ajudaram a destruir sua vida, haviam se afastado depois de arrastá-lo pro lodo. Alguns urubus ainda rondavam por perto, torcendo mais ou menos discretamente por sua morte, para roer-lhe dos osso a carniça.
        Os mais descarados plantavam descaradamente armadilhas em seu caminho, justo aqueles que tinham parte com o...
        A maioria segue um padrão: te sugam o quanto podem, depois jogam o bagaço fora; com a diferença dos desgraçados que ainda tentam pisar em cima, daqueles que procuram se passar por santos e apenas te mandam pra reciclagem.
Estranho perceber como até uma criatura asquerosa pode fingir que têm consciência ambiental ao se preocupar em reciclar o lixo do mundo.
Adianta dizer que tudo não passa de uma farsa?
Dizer que ninguém respeita mais nada: lei, costumes, tradição; que é muita ingenuidade ou cara-de-pau dizer que dá ainda pra consertar tanto fingimento?
Caramba! Será que as tarefas diárias, viver para sustentar a família dos outros e tudo o mais que a gente é obrigado a fazer pelas circustâncias, não tiram as forças?
"-Por que não te matas então?"
Meu Cristo! Quanta idiotice! Alguém que fosse somente ingênuo tentaria ajudar, sugerindo qualquer solução fictícia.
Quem sugere isso daí só pode ser mais um dos adversários: quem torce contra nós e quer nosso mal, pois joga no outro time: dos que tem parte com o...
Mas é o tipo de comentário imbecil que se ouve ao dizer tais coisas.
Porque hipocrisia é isso: pedem a verdade mas não querem a verdade.
Dizem uma coisa, mas fazem exatamente o contrário.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Espírito Natalino




        Acordava todos os dias para a vida começar de novo.
        Nos fins de semana, na folga dos domingos de manhã, pegava a magrela e ia dar uma volta, descarregar a tensão, fazer um exercício.
        Enquanto pedalava ia mesmo relaxando um pouco, pensando coisas amenas, olhando as pessoas e os carros, as placas de publicidade e as pichações, mas sempre tomando cuidado com os buracos da rua e os desníveis do asfalto que poderiam fazê-lo cair.
        Até que num desses passeios costumeiros, entrou na praça e sentou num banco para descansar, tomando a água que havia trazido na mochila e olhando para o céu azul de uma manhã quente e ensolarada, quando de repente apareceu na sua frente uma figura meio estranha, perguntando:
        -Pô, mas tá calor né? Incomoda deu sentar aí?
        -Que nada, se espicha aí mermão.
        O cara parecia estar chorando ou achando graça de alguma coisa, mas era apenas o rosto retorcido por causa da luz em excesso:
        -Pô, mas como é quente esse lugar! Posso fumar um?
        -Vá em frente.
        O cara tinha pego um maço de cigarros mas tirou lá de dentro um baseado, acendeu e começou a fumar tranqüilamente:
        -Ei, figura, cuidado que vêm vindo dois policiais ali...
        -E daí?
        -Daí que aqui é contra a lei fumar maconha escrachadamente em público na praça domingo de manhã.
        -Pô, valeu o toque...
        O figura amassou o baseado, jogou no chão e foi embora.
        Os dois policias que se aproximavam sentiram o cheiro no ar.
        Fizeram uma revista, olharam embaixo do banco e não demoraram a encontrar a maconha amassada no chão:
        -A-há! Sabia que era o cheiro da erva maldita!
-Seu policial, você não vai acreditar, mas foi um cara estranho que estava aqui sentado dois minutos atrás quem jogou isso aí!
        -Sei, e eu sou o Papai Noel.
        -Então Feliz Natal!!!

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Passado Noutro Lugar




        O telefone toca:
        "Alô?"
        Você nunca sabe, apenas espera acontecer...
        Noutra cidade, em outro estado; pessoas diferentes com hábitos diferentes, mas em tudo querendo cativar; fazendo crer que aquele era o melhor lugar do mundo.
        A ponto dela não querer mais voltar.
        "Eu falei que eram só seis meses, não foi, amor? Mas deixa eu te dizer o que aconteceu aqui semana passada..."
        E cada vez se falavam menos.
        Passaram-se dois, três anos: ela por lá ficou.
        Porque tem coisas que a gente sabe que deve fazer, não só pela gente, mas também pelos outros: por quem você quer que esteja bem.
        E quando você acha que não aguenta o que está acontecendo, tem vontade de sair chutando as paredes, és obrigado por lei interior a manter o autocontrole: devendo deixar as pessoas que te serviram de exemplo na vida partirem em paz, sem escândalos, sem choro, sem alarde, sem sentimentalismo piegas, 'sem babaquice':
       -Isso é loucura! Acredite, não tenho mais ninguém e sentirei muito tua falta durante todo esse tempo, porque és umas das únicas pessoas que posso dizer que amo muito.
       Disse enquanto preparava um pão com ovo, que dividimos. Nossa última refeição juntos.
       "Eu desejo a você tudo de bom! E no futuro, quando a gente puder se encontrar frente a frente, tenha certeza de que conversaremos sobre tudo o que nos é mais importante nessa vida: comemorar a felicidade de estar juntos novamente, quando achávamos que não mais aconteceria."

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Para Quem Sobreviveu




        Morava num décimo andar alugado, quartosalacozinha e um banheiro minúsculo.
        A porta vivia aberta para entrar o ventinho que vinha pelo corredor, pois três da tarde era um calorão: o sol entrava pela únca janela, arrombando as retinas.
        A solução era vê-lo refletido no rio.
        Então tirou um cigarro do maço e procurou os fósforos.
        Encostou-se no parapeito da janela e fitou a curva que o rio fazia.
        As  ilhas e a mata aparentemente virgem.
        Os urubus sobrevoando, assemelhando-se a pássaros, que pareciam tornar aquele tempo mais leve, como se apesar de tudo ainda valesse a pena viver:
        -Mas quem quer ser feliz?
        Riscou o palito, deu dois tragos e ficou pensando:
        "Preciso falar com meu pai, ele está precisando de mim! Por causa dele e desse negócio que está acontecendo , a gente tem que se encontrar, mas é foda, cadê tempo?"
        Por causa do cigarro.
        Por causa do sol.
        E a pôrra do câncer.
        E eu não posso fazer nada, apenas torcer para que um dos lados vença.
Na verdade, eu aposto que a gente vai vencer, a gente vai conseguir sair dessa!
        Mas se você acha que sou triste, acredite, é porque infelizmente esse é o meu jeito...

terça-feira, 3 de abril de 2012

Ela e os Outros




        Fechou os olhos e dormiu.
        Sonhou com um príncipe encantado, que viria acordá-la num beijo.
        Nem precisava sonhar, tinha uma vida maravilhosa.
        Era uma criatura jovem e bonita. Dormia entre almofadas, vivia num mundo perfumado.
        Ouviu numa letra de música que deveria ficar apaixonada, então começou a dizer que amava as pessoas, embora elas não entendessem o alcance deste amor:
        -Te amo...
        -Não é apenas felicidade o que estás sentindo?
        -Altruísta ou egoísta?
        Sem ter mais palavras que utilizar, seu pensamento procurava opôr termos obviamente sinônimos, embora não se desse conta disso.
        Ou quem sabe ela se perguntasse:
        "O que está havendo comigo?"
        Pois agora lembrava do rapaz de quem gostou muito e fugiu com outra.
        Lembrou da amiga da onça, que foi capaz daquela puta traição: ficar com o seu namorado!
        Do relacionamento com o pai: distante e incompreensível; ela por conta disso foi estudar espanhol.
        E da mãe, com quem por sorte se dava bem.
        E do irmão pirralho, entrando na puberdade, de quem gostava pacas.
        Do amigo do peito que morreu tragicamente.
        As lágrimas que corriam-lhe dos olhos faziam cintilar na fraca luz amarelada aquela pele macia, o rosto harmonioso, a cor saudável, a flor da idade.
As tábuas de uma casa de ripas que não deixavam o vento e a chuva passar.
E ao invés da tristeza, uma extrema felicidade: inexplicável e simples, de quem vivia apenas para sentir o vento passar pelo seu corpo, e de alguma forma agradecia sem saber.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Exatamente Aqui




        O garçon trouxe outra cerveja, quente como as outras.
        Ele encheu os copos. Mas ela, ao invés de continuar falando, começou a encará-lo nos olhos.
        Sabia que aquilo era uma palhaçada: despeito de quem se sentia ofendida; mas mesmo assim resolveu entrar na brincadeira:
        "Caramba! Eu na minha idade e me acontecendo uma coisa dessas."
        -Vem cá, sabes quantos anos eu tenho?
        -Sei muito bem...
        E o pior é que ela, embora não soubesse, podia ao menos suspeitar, pois estava sentada à sua frente e encarava-o.
        Mas o que era mais estranho: ainda não tinha ido embora:
        -Você é parente daquele cara que ficou conhecido porque foi citado no livro de um escritor famoso, não é? Aquele escritor que virou até nome de rua na nossa cidade?
        O cara ficou olhando pra ela calado, sem ter nada na cabeça grisalha para dizer, apenas imaginando um jeito de levá-la rápido para a cama, pois sempre que saía levava o comprimido azul no bolso.
        Assim que via uma possível jovem presa, ficava logo excitado e pensava: "Uh-huuuuu!!! Vai dar certo desta vez!!!"
        A gata falou:
        -Careca, baixinho, dente faltando e nariz torto! Fora que és tão velho que podias ser meu pai, e ainda quer me comer? Ha ha ha ha ha ha ha ha ha ha!!! Desculpa, tio...
        Mas ele achava que ela era 'uma gracinha'.E foi assim que ele contou a estória pros chegados, gravemente:
        'Ela, feito uma rameira, eu reusando, tentava dizer-lhe: O mundo é assim mesmo.'
        Mas no dia em que acontecer qualquer coisa séria com esse cara, com uma puta ou uma mulher de verdade, o cara morre de aneurisma! Mas se tiver um pouco de dinheiro, troca de artérias com outro defunto...

domingo, 1 de abril de 2012

Bar Copo Sujo




        Sentaram em frente um ao outro, pediram uma cerveja e ela começou a falar sobre tudo e todos:
        -Sabe o Ricardo, que ficava com a Patrícia? Acho que não, mas ainda bem que ela deixou ele, porque eu acho que ele tinha uma cara de lezo... Se bem que ela era outra também, que ficava bêbada e queria dar pra qualquer um. Que nem da vez que em que a gente se encontrou na boate e...
       Ele ficava olhando seu rosto, balançava a cabeça, tomava um gole, respondia alguma coisa que ela perguntava, mas não parecia muito interessado na conversa, que apenas passava por cima de banalidades e fofocas sobre gente que não conhecia e em quem não tinha o menor interesse no momento.
        A moça percebeu o olhar insistente direto em seus olhos, e depois de desviar o rosto algumas vezes perguntou, se fazendo de incomodada:
        -Por que estás me encarando?
        -Queria entender o motivo dessa conversa depois de tantas palavras, mas não é possível ler nenhum sentimento nos teus olhos. És como um amador ao recitar um texto decorado.
        -Estou te contando da minha vida, tá bom?
        Mas era da vida dos outros que há meia hora falava, como se para ignorar os pensamentos que gritavam em sua cabeça, tivesse que gritar mais alto ainda:
        "Eu sei que de verdade isso não é a minha vida. 'Isto' é minha vida: o que escondo de mim mesma; essa vontade de abraçar o mundo; a dor que vem de todos os lados; o furor das entranhas que ameaça a própria vida ao mesmo tempo em que é motivo dela, como se por algum motivo eu lutasse comigo mesma, e no dia em que conseguir me vencer, talvez aí esteja derrotada."
        -Então se não foi para conversar, por que a gente sentou aqui? Pra encher a cara? Então não posso ficar, tenho o que fazer amanhã!
        -Calma, o que eu queria realmente era passar uma tarde contigo! Fazia meses que a gente não se via,  liguei porque ando meio só ultimamente, não tenho mais folga pra nada. E se fosse para se embriagar, eu já teria pedido uma dose de cachaça.
        -Sei, sei. Olha, quando eu te disse que tenho o que fazer amanhã, não é porque é domingo que as pessoas não tenham compromisso, viu?
        -Tudo bem, todos temos. Um instantinho: Ei, Payssandú! Traz mais uma, bem gelada, faz favor?