quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Vida e Morte De Palhuca Frontera

"Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque Tu estás comigo..."


Selva de Quiproquó. Tiros e obuses são trocados entre os dois lados. A milícia dos Cabreros Verdes e as forças do Exército da Coalizão Armada (ECA), na disputa pelo domínio das plantações de papoula do país, vão abandonando seus cadáveres em meio à vegetação. Em breve as feras terão seu repasto. Famílias inteiras lutam na guerrilha que interessa apenas aos que detém o poder na região: Cartéis de Opileros e o chefe do Estado Golpista, General Cochabamba; senhores da guerra que nunca saem perdendo, não importa o resultado.
Famílias recrutadas por ambos os lados não tem escolha. Sem saber por quê, irmãos, amigos de infância, vizinhos, pais, filhos, manejam armas e atiram contra as próprias aldeias no interior. Substituíveis, não aparecerão na contagem oficial de mortos.
Chorava de joelhos , o fuzil jogado ao chão, um homem ensanguentado em seus braços. Não dava ouvidos às tropas da ECA, cada vez mais perto, precedidas por seus projéteis de chumbo. Chamava-se Palhuca Frontera e fora alistado no lado dos Cabreros, após conseguir fugir de Vila Porrilhas, onde um novo destacamento tinha sido requisitado à força pelo General Cochabamba. Seus irmãos não tiveram a mesma sorte, e era um deles que jazia ali em seu colo, morto pelo fogo de sua própria arma.
Não teve tempo de chorar, estava sendo perseguido e era questão de tempo até alcançarem-no. Deixou a arma para trás, para não atrapalhá-lo na fuga, e começou a correr sem rumo pela selva, e a cada vez que fechava os olhos, vinha-lhe a imagem do homem que surgira por detrás dos arbustos vestindo a farda inimiga, surpreendendo-o. Fora mais rápido no gatilho, apenas para perceber que tirara a vida do irmão caçula, que não via a meses.
Amaldiçoaria-se pelo resto da vida por não ter percebido. Queria parar de correr e se entregar de uma vez aos tiros do inimigo. Mas que inimigo? A maioria dos que lutavam não entendiam o real motivo daquela luta sangrenta, de estarem matando seus patrícios.
Inimigos era quem os obrigava a isso, inimigos do povo, fascínoras aproveitadores, que sempre de uma forma ou de outra encontravam a vitória, não importando quantas almas precisassem dispor para o fim nefasto que em suas cabeças julgavam o mais nobre: dinheiro e poder. Para os peões insignificantes restava apenas a dor da tragédia, a invalidez dos membros aleijados, o cheiro de pólvora a corroer pulmões doentes, lavouras arrasadas, o fedor da carniça que não se apagaria nunca da memória, a pobreza, a miséria.
Palhuca continuava a correr. Vez em quando parava para recuperar o fôlego, o estômago a doer-lhe sobre os intestinos secos, a quanto tempo não comia? Mal conseguia controlar a respiração, logo escutava o som de explosões e tiros cada vez mais próximos, e era obrigado a empreender fuga novamente.
O corpo cansado do ritmo forçado, o cheiro de algum cadáver nas proximidades a maltratar-lhe as narinas, nuvens cinzentas pairando sobre as copas das árvores, os pensamentos trazendo sempre a expressão agonizante do irmão morto em seus braços. Não era mais possível dar um único passo. Exausto, encostou-se numa árvore e foi deslizando as costas até sentar-se no chão, sobre as folhas.
Por um breve instante tentou imaginar que não estava ali e nada daquilo estaria acontecendo. O sol entrava no ocaso, em breve a escuridão protegeria-o de seus algozes. Mas quando prestou novamente atenção, percebeu que alguém vestido com a farda camuflada do ECA caminhava em sua direção, mirando-o com a metralhadora em punho.
  Esforçou-se por manter a lucidez, acreditaria nos seus olhos? Prendeu a respiração na tentativa inútil de não se fazer perceber. O soldado já o havia visto e engatilhava a arma, caminhando a apontar-lhe o cano ao peito. Palhuca Frontera sentiu que eram aqueles os momentos derradeiros de sua vida, então deixou o pavor tomar conta de si, e uma onda gelada percorreu seu corpo exausto, fez arrepiar os pêlos de sua nuca, quando  veio-lhe uma vontade muito grande de chorar, embora seus olhos continuassem secos.
Na iminência da morte, passa-lha a vida pela cabeça. Recorda fatos remotos que imaginava esquecidos, tudo que antes não havia compreendido parece revelar-se ante seus olhos. Perdôo-lhe, meu irmão! Fomos atirados como cães nesta guerra maldita que nos embruteceu a alma e fez com que assassinássemos nossos conterrâneos sem que fosse possível enxergar o real inimigo. Ambos estamos fatigados, corpos arruinados, apenas autômatos.
Quem mata um igual guarda pra sempre a tragédia do seu ato, o horror de uma vida desperdiçada, como um peso a esmagar-nos a consciência. Nunca mais seremos os mesmos, andaremos sonâmbulos por este mundo, com a impressão de não mais pertencermos a ele.
Dedos moles pressionam o gatilho, o barulho de molas que se comprimem, movem pinos, ruídos metálicos, um zumbido surdo em seus ouvidos que finalmente chega ao fim.
...
A mata estremece com o estrondo seco. A certeza do dever cumprido, eliminando um dos insurgentes, limpar o país do caos e desordem da qual eles eram a fonte, provoca uma contração vaga nos lábios do soldado. Quando aquilo terminasse, retornaria um dia à família e ao trabalho na lavoura, tudo voltaria então a ser como antes. Como antes. Lembrou-se novamente um camponês. O orgulho do que acabara de fazer esmoreceu um pouco, mudou-se em outro sentimento, que confundiu-se com a escuridão trazida pela noite.

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