segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Entre os Leões

        Ouço as vozes de milhares de pessoas gritando para além destes grossos portões de madeira encardida. Querem que comece logo o espetáculo; o pão já está no fim, e sua paciência também. É o sangue de nós doze que eles clamam para ver jorrar como espetáculo, pois têm medo. Medo e temor e reverência pela morte que enxergam sem conhecerem. O mesmo receio que os impede de ouvirem os próprios pensamentos.
Os portões se abrem e somos lançados contra a claridade cegante lá de fora. Todas as pessoas nas arquibancadas daquela arena urram de prazer ao nos verem entrar cambaleantes. Estamos ha muito tempo sem alimentos, nos deram água suja para beber, o mais velho de nós, Simão, está caído sem fazer a menor questão de se levantar. Pessoas que vieram aqui assistir a um espetáculo foram enganadas, pois nenhum de nós tem força para se garantir nem com os próprios membros.
Meus olhos acostumaram-se com a luz. Olho em redor e vejo toda a arquibancada tomada, neste chão somos apenas nós e a nossa fé, de nos encontrarmos em breve com Aquele de quem nosso Mestre tanto falava. Por um instante, não consigo entender o que está acontecendo, o grito em nossas cabeças diminui de volume, e conseguimos escutar uns aos outros:
- O que aconteceu?
- Não sei.
- Olhem!
A figura que Pedro apontara vinha subindo num traje explendorosíssimo a escada do camarote real, seguido por todo um séquito de escravos e escravas também vestidos com muita pompa, para servirem-no em todos os seus caprichos. Governador das Terras do Ocidente e Oriente, César, o Magnífico. E a um  mísero gesto seu, foram abertos doze portões, de onde saíram doze enormes feras selvagens, que foram deixadas quase tão esfomeadas quanto nós de propósito, para delírio de toda aquela multidão enlouquecida que agora gritava mais do que podiam compreender meus ouvidos e minha razão.
A gente tenta correr e mais do que isso não se pode fazer. O pobre Simão é o primeiro a ser abatido, duas feras derrubam-no de frente ao chão e imediatamente começam a arrancar grandes pedaços de sua magra carne. Vejo João ser degolado por uma das feras que avança sobre ele, e depois pára pra lamber o sangue que lhe escorre pela ferida no pescoço. Um de nós se ajoelha e ergue as mãos em desespero, dizendo que não precisa mais ver aquilo, no momento em que um leão dos maiores arranca-lhe os olhos e metade da cara com uma patada certeira, com aquelas garras afiadíssimas que atiram  fulminado ao chão o pobre Tomé.
Tudo acontece muito rápido. O sol louco volta a me cegar, a fraqueza é tanta que sinto que estou prestes a desmaiar, talvez seja até melhor assim. Todos os meus onze amigos estão mortos, e eu sou o único que resta ali de pé, apenas aguardando qual será o destino reservado a mim pelo Altíssimo. Imagino que qualquer que seja esse destino, necessariamente terá de passar por este leão em minha frente, na certa o maior de todos. Os outros encontram-se entretidos com as carnes das outras vítimas de até onde pode chegar a crueldade e ódio humanos.
Onde poderia minha força contra a de uma fera selvagem? Que homem nesta terra conseguiria não tremer de pavor ante um perigo tão incomensurável como aquele? E que males na terra ou no universo podem subjugar aquele que com um gesto lá dos céus, manda à terra todos os seus anjos para que o mal nunca o alcance, e as armas dos inimigos passem sempre ao seu lado? Quem é ao mesmo tempo Pai, Filho, e Espírito Santo?
                                     ...
O gigantesco animal parece que gozava desse momento, com o zurro que vinha das outras feras nas arquibancadas, que lambuzavam-se no sangue e vísceras de seus próprios irmãos. Urravam histéricos em meio a um orgasmo coletivo, provocado pela bestialização de suas almas, após tantas carnificinas a que eram obrigados a se submeter diariamente, do contrário não lhes seria dado pão para comer.
Olho para o azul infinito acima de mim, e fico imaginando em que ponto daquela imensidão eu estarei logo mais, então caio de joelhos, pensando em como seria bom para mim escutar novamente a voz límpida como água de nosso Mestre, ao lado do Senhor Altíssimo. Mas quando meus joelhos tocaram o chão, senti que meu joelho direito batera em algo duro, não uma pedra ou pau, mas ferro: uma faca.
O Leão têm os olhos injetados e o rosto empapado de sangue. É assustador, ele está a uns cinco metros de mim apenas, parado, preparando o pulo. Recolho cuidadosamente a mão com a faca junto à minha cintura e espero que ele salte. Quando ele toma impulso e abrem-se suas duas enormes patas para me agarrar, ainda tenho tempo de mirar o centro de suas costelas, antes de esticar o braço o mais que posso para frente, segurando rijo com a mão a faca apontada para cima.

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