sábado, 27 de agosto de 2011

Música Para Não Ser Escutada ou O Puxirum

        Nasci em 1984, no hospital da capital para onde minha mãe foi mandada às pressas, já que houve complicações no parto e naquela cidade do meu estado não tinha emergência. Em outras palavras, quase morri ao nascer, graças aos safados que se dizem políticos e roubam junto com os familiares e apaniguados tudo o que conseguem enfiar nos bolsos, na maior cara de pau, tendo o mais perigoso deles conseguido se eleger por outro estado, onde alastrou seu poder como a podridão que exala dos cadáveres e pode ser sentida à distância, prevaricando eternamente com o mandato que lhe proporciona este povo ludibriado.
Minha infância não vou dizer como foi miserável, passando fome e sofrendo de doenças comuns que matavam à rodo, e que levaram três irmãos meus, a menorzinha de apenas seis meses, devido à falta de saneamento básico que fazia todos na cidade cagarem em buracos no chão, cavados próximos aos poços de onde a gente tirava água para beber. Parece que faz tempo, mas lá até hoje é assim, embora mês passado tenha finalmente chegado água encanada. Só que apenas na casa do prefeito.
Escapei da morte, das lombrigas, da disenteria, dessas doencinhas de nada que só matam uma meia dúzia de dez, crianças na maioria, gente que viveu pouco ou nada ainda, então não é tão ruim assim. Trágico seria morrer um jovem doutor ou filho da classe média, em que a família investiu tanto, apostou todas as suas fichas, para ver morrer de dor de barriga. Sacanagem tua! Quer dizer que no meu país, que paga bilhões de juros todo ano, crianças pobres no interior morrem de caganeira! Mas não vivemos na Europa? E a nossa seleção de futebol, vai bem? Ah, tá...
Para não morrerem de fome todos, minha mãe escolhia quem ia alimentar, e era com o coração partido que ela deixava de dar comida aos mais fracos, sabendo que não podia desperdiçar o pouco que tinha com quem brevemente ia morrer. Naquela casa ninguém conseguia dormir a noite por causa do choro. Eu e meus irmãos chorávamos de fome, e minha mãe de fome mas de pena também, e de raiva por causa de um castigo tão grande para gentes tão pequenas, que se pudessem derramar toda a dor que traziam no peito, fariam brotar novo oceano na poeira seca das ruas sem calçamento.
Um dia acordei de madrugada, os olhos grudados ainda pelas lágrimas que haviam secado e virado remela, fui buscar um gole d'água do pote, e resolvi dar uma olhada na rede onde estava deitada minha mãe. Lá estava ela dormindo, com nossa irmãzinha caçula no colo, sorrindo na certa porque estava vendo os anjos de Nosso Senhor no seu sonho. Mas quando prestei atenção direito nos braços dela, vi que a neném estava morta. Estava morta. Seis meses e já estava morta.
Não peguei a água. Não limpei os olhos. Só sentia que a dor não parava mais de creser, rasgando a carne por dentro. Foi então que vislumbrei uma outra coisa tomando forma, muito mais sutil e mais forte do que qualquer sensação que eu já conhecera. Que subia pelas minhas entranhas e se apoderava do meu corpo como se fosse uma entidade que estivesse me possuindo; que me fez correr para vomitar a bílis no mato, e era o meu sangue com fel que eu via ali misturado entre as folhas. Então claramente escutei alguém me dando uma ordem ao pé do ouvido, mas não havia pessoa alguma em redor.
Não acordei ninguém. Entrei e fui andando devagarinho, botei duas camisetas e um calção na ponta de uma vara, muito bonitinho, só que antes de sair levei também o revólver do meu pai, que ele escondia por detrás dos sacos de carvão pros filhos não mexerem, e fugi de casa. Tinha acabado de completar dez anos, e naquela noite fresca e estrelada, enquanto caminhava sem rumo, eu já podia me considerar um homem feito. Assim como os políticos e o Senhor dos Céus, eu também tinha agora nas mãos o poder sobre a vida dos outros.
Não demorou muito até que eu despachasse a primeira alma sebosa que cruzou meu caminho, e faz tanto tempo que até perdi a conta de quantos mandei para debaixo da terra. Sei que não vou durar muito, resolvi escrever isso aqui da cadeia para que o meu filho quando nascer possa saber quem foi o pai, que era mais homem que muito valente junto, que matava de tiro, facada, ou até de mãos limpas, como quando da vez em que despachei um desafeto meu só no mata-leão.
Se tu meu filho um dia leres isso, saiba que teu pai não foi malvado não. Quero que saibas que matei tanta gente porque a vida foi ingrata comigo, e a única que podia ser minha aliada era aquela que quase me pegava já no dia em que vim ao mundo. Mas um dia nossa parceria vai terminar, e eu poderei quem sabe descansar este corpo sofrido nos braços dessa indesejada das gentes, mas de quem não tenho mais medo, ela que me acompanha já a tanto tempo e sempre me olha sorrindo, com aquele sorriso de quem sonha sempre com os anjos do Nosso Senhor Jesus Cristo.

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