segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Outro Tipo de Coisa

"Algumas vezes acontece muito rápido
 outras muito devagar
 O ruim é quando acontece de repente"

        Deus, como era bonita, inteligente, maravilhosa... Naquela época a gente achava que qualquer coisa seria possível, como se os lugares, o tempo e as pessoas nunca mudassem e tudo pudesse ser sempre perfeito.
        E na verdade não é assim. As escolhas que fazemos mudam muita coisa, inclusive nosso futuro. Mas naquele tempo não havia futuro, e agora que chegou, vejo que não havia mesmo.
        Era para mim a coisa mais importante e hoje faria rir um garoto de doze anos. Acontece que o mundo ficou mais veloz, as coisas estão parentemente mais rápidas, eu queria dizer mais descartáveis, embora continue sendo idiotice levar a sério a opinião de alguém de doze anos, a não ser que você esteja pedindo conselhos a uma garrafa de uísque.
        Lembro o nome dela como uma palavra mágica, capaz de transportá-la até onde eu estivesse, mas que hoje em dia não consigo repetir em voz alta. Prefiro que permaneça presa em minha cabeça, só que às vezes tenho que fechar também os olhos para não deixá-la escapar.
        Anos depois e nesse tempo tudo que poderia ter acontecido e não foi, arrependo-me até a última fibra, sei que foi minha culpa, bastava querer e a gente estaria junto até hoje e quem sabe a vida teria sido melhor.
       Outro dia deu-me uma curiosidade muito grande de saber onde ela está, o que anda fazendo depois que sumi, quem sabe até conseguir seu número e marcar um encontro, mas faltou coragem, e o que passou não tem volta.
        Escrevo isso porque ontem tive a impressão de que a tinha visto: estava andando de braço dado com um cara, certamente namorado, marido, amante, ou coisa que valha.
        Atravessei a rua e fiquei seguindo-os de longe, sem saber se devia me aproximar, algo me incomodando dizendo "vai", ao mesmo tempo em que pensava "mas o que você quer com isso?".
        Segui-os durante uns quinze minutos, imaginando várias maneiras de abordá-la sem parecer um idiota, até que ela sumiu com o cara dentro de um carro vermelho e foi embora, e eu finalmente percebi que ela já  tinha ido há muito tempo.

domingo, 30 de outubro de 2011

A Mulher Mais Linda Do Mundo

"Eu acho que acabou, mas vou cantar pra não cair, fingindo ser alguém que vive assim de bem..."

        Ela parou na frente do portão, desceu do carro e tocou a campainha. Um menino atendeu:
        -É aqui que mora o João Carlos?
        -É sim. Quer que vá chamar?
        -Por favor. E diz que é a... uma amiga dele.
        Entrou e sentou-se numa das poltronas de vime da varanda, puxou uma revista e começou a folheá-la desatenta, pensando no que viera fazer ali depois de tanto tempo.
        A manhã fora mais quente que o normal e a tarde seria de chuva, prenunciada pelas nuvens carregadas que vinham em direção à cidade.
        O vento cessara subitamente e isso só podia significar uma coisa. A sensação de abafamento era forte, o menino que atendeu a porta veio oferecer água:
        -Muito obrigada.
        -Foi a mamãe que me mandou trazer.
        -Quantos anos você tem?
        Ele fez um gesto com as duas mãos.
        -Oito, nove?
         Ele fez que sim com a cabeça, parecia um pouco tímido mas não arredava pé dali, estava esperando que ela terminasse de beber para levar o copo ou fazendo sala porque a mãe havia mandado:
        -O que o João é pra ti?
        -Meu pai.
        Ela endireitou-se na cadeira, franziu o cenho como se não acreditasse, atirou a revista sobre a mesa e ficou examinando aquele garoto que em nada se parecia com o homem a quem tanto amou, cujo rosto ela invariavelmente lembrava nos momentos de solidão, com o peito carregado de saudades.
        Mas o que imaginara então? O impulso de ir vê-lo sem mais nem menos, sem ter como avisar, o que esperava acontecer naquele encontro não sabia, apenas uma coisa estranha no peito, como a expectativa de que algo mágico ressurgisse.
        Não percebeu quando outra mulher um pouco mais jovem apareceu, vinda de dentro da casa. Usava um vestido azul um pouco curto, de algodão, tinha um corpo bonito e recendendia a alfazema, como se tivesse acabado de se perfumar:
        -Oi, tudo bem! Você que é a amiga dele? Infelizmente o Joca saiu, mas como eu sou a mulher dele você pode deixar o recado comigo que eu passo depois.
        -Não, não precisa! Olha, desculpa incomodar nesse calor, eu sou só uma conhecida do tempo da faculdade, não sabia que ele tinha casado. Quer dizer, não precisa dizer que eu vim não, desculpa mesmo incomodar...
        Ela levantou para ir embora despedindo-se apressada, mas antes que pudesse cruzar de volta o portão, a moça em pé na varanda ainda teve tempo de perguntar:
        -Então você que é a Juliana?
        -Prometo que não incomodo mais...
        E quase correu em direção ao carro, depois desaparecendo no fim da rua, enquanto caíam grossos os primeiros pingos de chuva no asfalto quente.

sábado, 29 de outubro de 2011

Perspectiva Aleatória Do Fim

       Depois dos parabéns, do bolo que a mãe dela fez, dos vizinhos que pelas costas xingavam a gente dos piores nomes do mundo, mas que tinham vindo comer arroz-com-galinha, escutando "As Dez Músicas Mais Escrotas do Camelô da Esquina" ou "As Dez Porcarias Mais Executadas nas Rádios Atualmente" que eu botei de sacanagem no som da sala; depois de agradecer mais uma vez a gentileza de D. Dica ter aberto a casa para fazer aquela festa, consegui finalmente um momento a sós com a Marcela.
        Na verdade estava meio que preocupado com algo que desde cedo ela queria me dizer, provavelmente terminar de uma vez com aquele relacionamento sem sentido :
        -Tudo que eu te peço é sinceridade e você vem mentir pra mim!
        -Eu? É que...
        Dizer o quê? Eu mesmo não sei. Queria contar a verdade, que ela ficasse comigo pois finalmente os pais dela tinham aceitado o namoro; que eu não tinha ficado com mais ninguém nos últimos meses, pelo menos depois da última que ela descobrira; tinha parado de fumar e de beber muito, o que reduzira a estatísca de merdas daquele ano a quase zero.
        Que é difícil ter tempo de encontrá-la para sairmos, mas que ficasse tranquila, pois eu batalhava no que fosse possível para melhorar.
        Que não existe idade pra entender o que verdadeiramente importa, porque tem gente que passa uma vida longa  e mesmo assim nem chega perto.
         Mas que se mesmo assim no final tudo terminasse numa grande cagada, pelo menos ela não teria restringido tanto o próprio pensamento a ponto de não ficar com alguém devido preconceitos estereotipados, duma gente achando que porque botou um pregador no nariz se livrou da merda onde vive, pois não sente mais o fedor e agora respira pela boca, que também cheira mal.
         Enfim, eu queria dizer tanta coisa quanto permitissem a educação e a sinceridade, mas não tinha nem uma coisa nem outra, e para não perder de vez a mulher por quem nutria tais sentimentos, menti:
        -Sabe o que é, provavelmente foi engano...
        -Mas seu cara-de-pau, se ela escreveu o teu nome! Tu não vais me explicar que mensagem é essa no teu celular?
        -Pensando bem, acho que é uma conhecida que se lembrou do meu aniversário querendo dar os parabéns pra mim...
        -Eu sei o que ela quer dar mandando essa foto pra ti, seu safado!
        -Marcela, eu juro que não sei por quê ela fez isso...
        -Como não sabe? Tu sabes muito bem sim, que eu sei que tu já pegou essa vagabunda, pois ela gosta de dar pra qualquer palerma!
        -Ôpa, não falas assim que ofendes a classe...
        -Ora, vai-te à merda!
        Ela correu e foi se trancar no quarto, enquanto eu amaldiçoava a infeliz idéia de não ter apagado aquela foto do celular, e ia me despedindo de D. Dica agradecendo mais uma vez a hospitalidade. Mas na hora em que estava indo embora, botando o pé esquerdo na calçada, ainda deu pra escutar um babaca qualquer que falou alto de propósito:
        -Eu não te disse? Pau que nasce torto morre torto...

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Apenas Um Jogo

     
        Toda vez que alguém me convidava pra fazer alguma merda, noventa por cento das vezes era o Jairo, e dessas, metade acabava com a gente ou na delegacia ou no hospital. Por que eu ainda saía com ele? Bem, ele tinha uma irmã gostosa, que infelizmente nunca olhou pra mim.
        Naquele dia ele apareceu em casa com os convites de uma festa de quinze anos, disse que era birita e rango à vontade, punha uma roupa maneira e em menos de uma hora a gente estaria lá.
        Na frente da casa de recepção veio a surpresa:
        -Faz cara de que conhece a aniversariante, deve ser aquela ali.
        -Peraí, tú não sabes quem é  a figura?
        -Relaxa! Pelo menos conheço o brother que me emprestou o convite pra escanear.
        -O quê, isso aqui é falso?
        -Fica frio! Foi o Badigo que me emprestou o convite e eu acho que ele foi convidado, é parente dele, sei lá, ele não ia pegar o convite de ninguém...
        -Pôrra, Jairo!
        Já não tinha mais jeito, a gente tinha se metido numa porcaria de fila pros cumprimentos. Fiz uma cara de cú quando a aniversariante perguntou "Eu te conheço?":
        -Sou amigo do teu primo Badigo.
        -Eu não tenho nenhum primo com esse nome.
        -É porque esse é o apelido dele.
        E fui entrando enquanto iam chegando outros convidados, o que deixou a menina em dúvida se chamava a segurança ou ficava recebendo os parabéns, enquanto o Jairo tinha encontrado o felizardo Badigo sentado sozinho numa mesa, com uma garrafa de uísque do bom e um monte de petiscos:
        -Êh, rapá, adivinha só: o badigo também falsificou a entrada dele!
        -Não me diga! E como foi pra conseguir uma garrafa de birita só pra ti?
        -Dei vinte paus pro garçom e prometi mais vinte no fim da festa, mas é claro que a essa altura vou estar longe daqui, pois tenho outra festa pra ir hoje...
        -É mesmo? Imprimiste outro convite?
        -Não, pra essa eu fui convidado mesmo. Aliás, bebe devagar que eu disse que ia levar uma garrafa de bebida.
        -Mas essa tá quase pela metade!
        -Eu não disse que ia levar cheia...
        Parecia que os dois disputavam quem era o mais cara-de-pau, e se fosse esporte olímpico eles certamente levariam a medalha de ouro, depois de meter um conto no cara que fosse primeiro lugar.
        Acontece que não éramos os primeiros penetras numa festa e nem seríamos os últimos.
        E talvez por esse motivo, ou por ser a mesa mais mal-educada, esfomeada e cachaceira do lugar, e que possivelmente acabaria com  os tira-gostos e a birita servida em doses racionadas pros "adultos", um bando de babacas que se orgulhavam de serem os únicos naquela bosta a não precisar tomar álcool em copinhos de plástico, disfarçado como refrigerante, como o resto da molecada. Então a bela aniversariante apontou nossa mesa prum cara sem pescoço metido num terno, dizendo: "São aquela gente ali!(sic)"
        -Putz! Acho que sujou galera, vão expulsar a gente.
        -Relaxa e põe a garrafa debaixo da mesa.
        -Pô Jairo, tô falando sério.
        -Não esquenta a cabeça e faz o que ele te disse...
        Os dois eram foda mesmo, muito antes deu ver já tinham sacado todo esquema.
        Além de planejarem a nossa fuga pela cozinha com o auxílio do garçom, que àquela altura tinha virado nosso amigo, ainda deram um jeito de levar uma garrafa de uísque lacrada além daquela que estava pela metade, pruma outra festa do outro lado da cidade que durou até o amanhecer, e que essa sim certamente daria uma boa estória.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

O Silêncio Das Balas Perdidas

"Esteja alerta para a regra dos três:
 O que você dá retornará para você
 Essa lição você tem que aprender
 Você só ganha o que você merece"

        Cartões portais de cidades localizadas em margens de rios ou qualquer outra espécie de reservatório d'água, necessitam uma ponte para ficarem esteticamente completos. Foi por este motivo que aqui construiu-se uma.
        E agora que os postais são desnecessários, querem destruí-la, no que não fazem mal, embora as pessoas concordem que seja um desperdício ainda maior com a grana do contribuinte.
        Já que a ponte está lá e não incomoda ninguém, e às vezes tem gente que usa pra ir pro outro lado, deveriam parar de criar factóides e tratar do que realmente interessa, como educar e alimentar o povo.
        Há critérios que permanecem, embora percebam-se notadamente defasados na realidade presente. Diante de uma oportunidade única, nosso dever seria absorver e dar sentido ao que se mostra, buscando transformar alguma mentalidade ou comportamento através de valores que julgarmos necessários, mas no fundo sabendo que nada irá mudar mantido o mesmo sistema econômico, este sim indestrutível e perpétuo em sua essência.
        Os animais são nossos amigos, logo não devem sofrer, a não ser que sejas uma pessoa cruel e sádica; aí podes importunar a todos com tua maldição: animais, vegetais e minerais.
        Existem indivíduos que tratam cachorros como gente e as pessoas piores que a cães. Mas você não precisa se preocupar, pois um dia eles serão devorados por jacarés.
        Evite ficar correndo de um lado para o outro em meio a um tiroteio, as chances de você ser alvejado são bem maiores. Fique quieto nun canto, atrás de alguma proteção, de preferência deitado e com as mãos protegendo a cabeça.
        As conversas, as relações, a existência dão a impressão de estarem cada vez mais dispersas e sem sentido, ninguém tem solução para isso, o que fazer? Encontre a maneira mais conveniente de passar o resto dos seus dias, ou tente ser feliz, mas mude sempre.
        Vá estudar. A realidade é uma bosta a menos que sejas um milionário, então aí até que dá para disfarçar bem.
        Porém: está tudo errado, sempre esteve, só que as coisas degeneraram há tanto tempo e chegaram num ponto donde não tem mais volta, que qualquer lixo passa batido, os idiotas passam por sábios pois não existem mais sábios.
        Como se o fato de acabar-se o que presta justifique o restolho que sobra: "nem que seja só para ocupar espaço".

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Conto Erótico

"Esse papo meu tá qualquer coisa e você tá pra lá de Teerã..."
"Listen to the music playing in your head..."

        Estou sentado tomando uma cerveja, olhando pro movimento da rua naquele fim de tarde, quando ela se aproxima:
        -Tens fogo?
        -Deixa que eu acendo pra você.
        Colocou o cigarro de filtro vermelho nos lábios delicadamente desenhados, justamente o que eu costumava fumar, deu uma tragada, assoprou a fumaça pro lado e me ofereceu o maço:
        -Não, obrigado. Estou parado por enquanto.
        -Por que andas com isqueiro então?
        -Para acender o cigarro de mulheres bonitas como você...
        -Ha ha ha ha ha ha ha ha! Estás esperando alguém?
        Balancei com a cabeça que não e ela sentou-se. Não só entendeu que aquela piada de mau gosto eu disse de propósito, pois assim poderia saber se tinha ou não sido julgado feito um roto qualquer, como ao invés de ir embora ela encarou-me, vendo algo além desta cara suja e destas roupas esfarrapadas.(Yellow Submarine)
        -Ainda não me explicaste o porquê do isqueiro! Por acaso fostes escoteiro ou és algum tipo de maníaco incendiário?
        -Deixa eu te mostrar para quê eu preciso do fogo.
        Tirei do bolso da frente da calça o tubo onde eu guardava meus charutos, puxei um Havana que tinha fumado só até metade, acendi. Duas ou três pitadas e o cheiro agradável da erva espalhou-se pelo ar, relaxante, inebriante, adocicado:
        -Deixa eu provar?(Here, There and Everywhere)
                                                  ...
        Os olhinhos dela brilharam ao segurá-lo nas mãos. Assim que pôs na boca deu uma chupada prolongada, então vi sua expressão mudar-se em êxtase:
        -Nossa, que gostoso!
        -Você engoliu?
        -Não era pra engolir?
        -Claro que era, assim você sente bem o gosto...
        -Assim vou é me viciar. Posso vir sempre?(Eleanor Rigby)
        No rádio Jorge Ben mandava o Taj Mahal. Eram cinco da tarde e a luz tinha aquele tom amarelado que transforma os objetos em ouro. Perguntou e veio subindo, depois me segurou atrás do pescoço e me mordeu no queixo, beijou-me a boca.(She Said, She Said)
        Falei que provavelmente ela nunca mais voltaria. Assim que descesse as escadas e fosse embora, esqueceria da minha existência de vez, guardaria na memória apenas a lembrança idealizada daquele único encontro. Ela disse que não.(Tomorrow Never Knows)
Talvez seja melhor assim. Talvez ela tenha razão e eu não seja o cara certo, e com certeza não sou o cara que ela pensa que sou, mas Cristo! Na verdade não faço a mínima idéia do que ela está pensando.(Love You To)
Só que dessa vez algo me disse que não pára por aí. Você já conheceu alguém assim, só que ficou sem saber se valia a pena entrar num relacionamento íntimo. E vai por mim, você sempre vai se decepcionar, pessoas são pessoas.(For No One)
Dela é a decisão. Quem sabe considere todos os riscos e não queira se envolver, mas além de tudo, se lembre que a vida está aí, e às vezes a gente tem que correr o risco.(And Your Bird Can Sing)

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Fecho As Janelas

        "Navegar é preciso,
         Viver, não é preciso."

       Estou aqui, vendo este pôr-do-sol, ouvindo a nossa música preferida, chorando sozinho, sinto tua falta.
       O amarelo brilhante do céu, incandescente, risonho, alaranjado, roxo. Tanto olho que fico por instantes com os olhos cegos. Olhar tua tão bela natureza cega os olhos.
       As pupilas dilatadas, o cheiro de fumo, as sete moradas por qual passei e o beijo de uma deusa morta.
       Este céu incandescente azul-amarelo-laranja-púrpura que não pára de espojar-me, eu sentado à janela olhando pra essa cama desfeita, o final de tarde maravilhoso, ainda consigo sentir tua presença ao meu lado e os beijos, como se a meia hora atrás não tivesses partido...
       (O Rádio toca a mesma música, várias em seguida, e você não vai prestar atenção, costumavas esperar até o programa terminar, agora vais embora rápida, como que fugida da tua própria casa!)
        -Olha...
        -Eu te olho fundo!
        -Não, falando sério, apaga essa luz.
        -Deixa eu olhar teu corpo delicioso...
        -Então me deixa ficar em cima...
        :Agora irás saber, a tua ausência me mata, e que pôrra de ausência doída que tem o teu nome! Isso é um erro? É o erro e a punição de quem vive os próprios erros...
        Desculpa não escrever mais, eu bem que queria.
        De tanto ver o crepúsculo, acabou-se toda a vivacidade do espírito, a luta, a vontade de estar vivo, e a vontade de te dizer, pela última vez:
        "-Ficas com quem quiseres, mas todos querem só te comer, descarta pelo menos os otários."

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Máquina de Ossos

   
        "Lá o tempo espera,
         lá é primavera,
         portas e janelas abertas pra sorte entrar..."


        Teorias infinitas poderiam passar por seu cérebro, mas era tanto uma quanto outra, sem motivos particulares, que aferrava-se sua atenção:
        -Por que estás a te amarrar nesta árvore?
        -Muito pelo contrário meu amigo, aí que você se engana! Achei essa corda jogada no caminho, vi esta árvore que estava mais próxima e agora estou dando voltas ao redor do caule, até eu poder dar um laço!
        -E se isso não é se amarrar, por que fazes isso?
        -Como disse, achei a árvore e a corda, por quê não ia fazer?
        -Ainda bem que não viste aquela figueira ali atrás, senão te enforcavas!
        Com os olhos ela perguntava-me: "Por que é ruim atar-se numa árvore?"
        Como que pensando em voz alta, respondi:
        -Amarrar-se de qualquer jeito já é ato temerário, quanto mais no tronco de uma jaqueira! Pode cair-te o fruto na cabeça, um raio na árvore, ou no mínimo ficarás ensopada com esta chuva que se aproxima!
        -Que posso fazer, se em meu caminho apareceu esta corda e este pé-de-jaca?
        -Troca de caminho,oras, Viaja! Te muda pra longe, de preferência pro estrangeiro, assim ao menos aprendes uma nova língua!
        Ela me olhou pensativa durante alguns segundos, afrouxou a corda ao redor de si, entregou-ma:
        -Então segura esta corda pra mim, que agora eu vou embora tirar meu passaporte!
        E nesse momento, se ele fosse poeta, viraria um lagarto...

domingo, 23 de outubro de 2011

O Segredo É Manter Segredo

       -Sabe que teve aquela vez em que achei que podia dar certo?
       Que o mundo podia dar certo e as pessoas acordariam de manhã ao lado daqueles que amam, e não haveria guerra ou mortes por fome e miséria, e viveríamos como num sonho.
       Achei também ser possível existir gente honesta e de bom caráter em maior quantidade que essa escória podre rastejante ao nosso redor, mas quanta ilusão.
       No fundo sabia, se nem mesmo eu prestava, que esperar do comportamento dos outros! E me agarrava naquilo como a uma esperança vã, apenas para ter no que acreditar e afastar o tédio.
       Abre-se um jornal, conversa-se dez minutos com qualquer pessoa e tens a certeza de que em algum lugar perdemos o rumo, nos alienamos no pior sentido da palavra.
       A disputa entre atos e pensamentos discordantes causando essa doença psíquica, esse sofrimento da alma, que por um momento imagino se não somos um bando de esquizofrênicos, insistindo em viver nessa ilusão mais do que revelada, com a realidade crua e impiedosa esperando a hora certa de morder nossos rabos, sem nos deixar dormir tranqüilos no tão desejado engano.
       Fizeram o possível e mesmo assim não foi suficiente. Conseguimos a liberdade, ao menos essa liberdade de pensamento, onde as idéias revoam em nossa cabeça, saem para fora e logo em seguida caem no chão em contato com o ar, pois você não é autorizado a agir conforme o que acha correto, pois o correto metafísico é uma convenção e não necessita do seu consentimento:
       -A não ser que...
       -Sejamos iniciados na Ordem dos Verde-Cavilários Herméticos!
       A Ordem era uma organização secreta de magos sacerdotes ocultos, que desde a origem dos tempos vinha preservando uma relíquia alienígena perdida por séculos, posteriormente encontrada pelos Faraós que ergueram as Grandes Pirâmides, depois saqueada e levada até a Grécia Antiga, passando pelo Império Romano, III Reich, Wall Street, e que agora se encontra protegida em algum lugar do norte do Brasil, de onde emana seu poder para os times de futebol locais em má posição no campeonato.
       -Mas a gente entrar pra Ordem dos Verde-Cavilários Herméticos vai mudar alguma coisa?
       -Depende. Caso sigas os ensinamentos da Relíquia Alienígena Sagrada, foi prometido que viverás a melhor e mais aprazível das vidas, e ainda usufruirás do paraíso ao lado do próprio Criador quando da tua morte.
       -E se eu não seguir?
       -Bem, então conhecerás pessoas diferentes que ao menos se distraem com essa bobagem, além da bebida e salgadinhos à vontade que servem durante as reuniões...
       -Oba!Tô dentro!
                                            ...
Os Três Ensinamentos Da Sagrada Relíquia Alienígena:
        -Amai a Deus como a ti mesmo e aos outros como a teu cachorro de estimação;
        -O que está embaixo é o mesmo que está no alto, e vice-versa;
        -O que existe e está no mundo, até o ovo para ser ovo, precisa de prática.

sábado, 22 de outubro de 2011

Nunca Espere Raio De Sol

       A atmosfera terrestre continuava a transformar-se em vidro, uma barreira que crescia rapidamente e em breve confinaria todos os seres vivos da terra numa sepultura translúcida.
       Aparentemente o ar começara a transmutar-se em vidro de alta resistência na China, como resultado de uma tentativa dos chineses de obter o produto a preço vil, ao invés de arcar com os altos custos da matéria-prima no mercado internacional, obviamente controlado pelos norte-americanos com a intenção de prejudicá-los.
       A reação química finalmente dera certo após anos de pesquisa. Durante alguns momentos os cientistas envolvidos no projeto imaginaram que agora estavam ricos e poderiam realizar seu sonho de viver no Brasil.
       Acontece que o processo depois de iniciado era irreversível e também impossível de ser controlado. Após alguns segundos o laboratório, o andar, o prédio, o quarteirão todo era surpreendido pela cor azulada que se propagava rapidamente e solidificava-se em milésimos de segundo, congelando as pessoas instantaneamente, surpreendendo-as imobilizadas por toda eternidade.
       Quando souberam do fenômeno na internet, logo confirmado por todos os veículos de mídia, Chico e  Rosa correram a se encontrar no lugar de sempre:
       -Quanto tempo nós temos?
       -Com a velocidade que dizem que está avançando, uns poucos minutos.
       -E o que vai ser agora? Por que foi acontecer isso comigo, me diz!
       -Pelo jeito com você e com o restante da humanidade. Com sorte ainda sobra algum astronauta sortudo de tôca lá no espaço sideral.
       -Pára de brincadeira, tú estás me assustando...
       -Realmente isso tudo é inacreditável mas é verdade. É como estar presenciando o juízo final, a extinção da História, a cessação da vida e de tudo. Mas de alguma forma eu vejo que afinal não tive a capacidade de entender a grandeza de tudo isso, e agora não adianta mais nada porque é óbvio que a morte se aproxima no segundo seguinte.
       -Não! Eu não quero, isso é injusto! O quê eu tenho de haver com o resto do mundo?
       -Realmente, a única coisa que eu sei dos Chineses é que eles inventaram o miojo, talvez nem isso. Mas eu queria te dizer que fostes a primeira pessoa para quem eu pensei em ligar, depois que vi o noticiário.
       -Ai, Chico, o que vai acontecer agora? Me dá um abraço.
       -Vem cá, Rosita, deixa eu olhar bem pra você pela última vez...
       Uma espécie de luz imperceptível, a não ser por uma certa tonalidade de um azul etéreo, como que penetrando na essência das coisas, envolveu-os, e Chico imaginou se a cor derradeira, ao invés de estar vindo de um lugar distante, estivesse saindo por descuido de onde sempre estivera a ocultar-se: por dentro.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Doença do Coração Quebrado

Pessoas colocando maquiagem
Aquele rapaz de jeans não é mais um garoto
Seus cabelos negros ficando grisalhos
O final infeliz de um amor que não pôde ser
Nós cantaremos sozinhos durante a noite
Esperando amanhecer

Quando se encontraram, parecia que ambos sabiam o que ia acontecer. Ela não estava nervosa, ou pelo menos disfarçava bem. Percorreu-lhe os olhos de cima à baixo e disse com um tom agudo na voz que pareceu estranho a Eduardo:
-Por que me chamastes, eu te falei que ia estar o dia inteiro ocupada. O que aconteceu?
Enfim, eram tempos de mudança, quando nada mais parecia fazer sentido e as pessoas comportavam-se como se fossem  donas de suas vidas e soubessem o que fazer com elas, ao invés de todo dia representarem um papel sem ao menos  perceberem isso.
Eduardo e Renata atravessaram todos os problemas comuns a todos os relacionamentos, ainda assim sobreviveram, e quando se deram conta já se conheciam a quase dez anos:
-Após todo esse tempo a gente ainda está junto e eu estive pensando, sei lá sabe?, mês que vem eu completo trinta e três anos, que dizem que é a idade em que morreu Jesus Cristo,  mas depois ele ressuscitou, só que não é isso, quer dizer, a gente gosta um do outro e se conhece tão bem, então eu fiquei me perguntando: "por que a gente não se casa?", hã?
Renata explodiu numa risada. Gargalhou. Cerca de cinco minutos em que só faltou se jogar no chão de pernas pro ar:
-Quiá, quiá, quiá, quiá... ai Eduardo, desculpa, mas tu achas que eu sou louca de casar contigo? Olha bem, eu gosto muito de ti, mas justamente porque a nossa relação é tão boa que eu não preciso me preocupar com o que tu faz. Agora já pensou a minha agonia da gente morando junto e tu querendo sair sozinho pra andar por aí? Como que não ia ser? A gente ia se odiar em duas semanas!
-Realmente, só eu mesmo! Mas eu pensei que tu também estivesses pensando nisso, ora bolas, no fim das contas toda mulher quer casar. Vê bem que já não és mais tão novinha...
-Viu! Estás vendo o porquê deu não ir viver contigo? Mas não se preocupa não, que quando a velha aqui descolar alguém que preste ela te convida pro casamento, seu panaca!
Eduardo realmente era um panaca. Trauteou umas desculpas, "não foi isso que eu quis dizer" e blá blá blá eu te amo, mas Renata tinha razão: pobre da mulher que se ajuntasse com aquele infeliz. Ambos teriam uma vida até boa no começo, mas que com o tempo ficaria insuportável, assim como todo e qualquer casal.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Aranhas Extraterrestres

"Alguns repórteres acham que a gente evita falar com o pessoal da imprensa, mas a verdade é que eu e os caras gostaríamos de conhecer muitas pessoas, só que isso nunca acontece por causa da nossa agenda." (Starman)

"Eles estão compondo agora canções de uma nova fase da banda, as pessoas estão certas, eles continuam juntos, buscando inspiração num refúgio secreto onde nem eu tenho acesso." (Starman's Manager)

"Ele vai entrar em suas mentes
 Como um novo messias
 Vai dizer que façam coisas
  Que antes nunca dizia."

                  in: Music Review  n°159


      "-É como anunciamos senhoras e senhores, esta noite desembarcou em nosso país, vindo do estrangeiro, grande artista da música contemporânea de renome internacional, com mais de dez milhões de discos vendidos do álbum de estréia, várias semanas consecutivas na lista dos mais tocados, campeão de pedidos nas rádios . Para se ter uma idéia, apenas o tempo que ocupou na mídia esta última semana já é mais do que a soma do que nossos artistas populares conseguiram durante anos, e estamos falando de uma banda que lançou apenas um único álbum!"

Repórter: O que você está achando da sua primeira visita ao Brasil?
Ziggy: É um lugar muito acolhedor. Eu vejo as pessoas do povo nos recebendo com muito carinho, com um calor incrível que eu não vi em lugar nenhum do mundo.

Repórter: E os boatos de que a banda iria separar-se por causa da briga?
Ziggy: Mas nós não brigamos! É claro que cada um têm suas influências e isso acaba gerando um certo tipo de atrito, principalmente durante o processo de criação das músicas, mas isso faz parte do desenvolvimento do nosso som, além do que aqui todos se respeitam e têm um ótimo relacionamento.

Repórter: Como é o assédio dos fãs brasileiros? Já aprendeu alguma palavra do nosso idioma?
Ziggy: Bem, os fãs brasileiros têm realmente uma energia positiva, espero que eles estejam presentes com essa vibração lotando os shows! Por enquanto ainda não consegui pegar muita coisa, mas ainda lembro de 'Hola', 'Como estás', 'Buenos dias', 'Hasta la vista', do espanhol da época da escola.

Repórter: Bem, que seja. E o que você achou das mulheres brasileiras?
Ziggy: Oh, muito  bonitas! Espero pegar tantas quantas for possível! Meu quarto tem uma cama enorme, e eu não perderia isso por nada nesse mundo!

Repórter: Depois da apresentação no estádio, a festa então continua no hotel?
Ziggy: É isso aí, Baby, a noite toda!

Repórter: É uma festa privada? Porque eu poderia ir lá  pra fazer contigo uma exclusiva...
        Ziggy: Talvez. Se você trouxer algumas garotas quentes pro resto da banda, a gente pode conversar depois do show. Pega meu número ali com a minha assistente.

Repórter: Oh, Ziggy! Thank you!!!
        Ziggy: You're welcome...

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Tarde De Chuva

         Por um momento eu tive a sensação de que a verdade estava próxima de ser descoberta, e era possível dizer se essa impressão havia aparecido ou aconteceria várias vezes, só que não dava para saber o que era, por mais que tentasse buscar as palavras na cabeça.
Perceber a enormidade do que existe entre a vida e a morte e o eterno, descobrir que é impossível. Os homens vão sempre se ocupar das coisas práticas da vida porque são práticas, não porque é o que mais importa.
Tento então estabelecer prioridades, seguir um rumo, fazer o que se espera, agora tudo é tão simples, simples como fazer nada, como são as gotas que caem do céu. Simples como é a morte para os mortos.
Ignoro o processo, e quem o conhece dificilmente conseguiria explicá-lo. E se explicassem, talvez eu não estivesse pronto para aprender. E se aprendesse, bastaria uma pequena distração para que enfim esquecesse tudo e voltasse a viver na ignorância.
A ignorância é uma bênção.
Fazendo a mesma coisa que outros fizeram, você  descobre que é possível entender como fizeram pela experiência que fica impressa na memória, mais ou menos como erguer uma parede ou montar uma equação. O modo de observar pela janela durante a chuva o céu cinzento; as árvores, os quintais vizinhos, os muros das outras casas, roupas esquecidas num varal, um passarinho que voa perdido,  o vento arrastando as folhas, o estrondo do raio que dessa vez caiu bem próximo, é uma experiência que não se pode dividir, a menos que consigas treinar o olhar.
Em outros lugares, em outros tempos, pessoas estiveram aqui e observaram em silêncio a chuva. Das milhões de coisas que poderiam ter sentido, houve aquelas que sentiram uma pontada de tristeza e melancolia. Destas, poucas puderam descrever o que sentiam, mas alguma delas certamente deve ter visto o que vi: a lua surgindo redonda e brilhante, pela brecha de uma  nuvem, quando finalmente parou de chover.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

O Mundo É Um Moinho

   
       Nerwaldo estava na casa de sua melhor amiga. Ela deitada na cama apenas de shortinho e blusa sem sutiã, apontando-lhe os bicos dos seios duros incriminadoramente em direção à face, após revelar estórias estarrecedoras:
-Como assim, que papo é esse de pingüins e suçuaranas e formigas que estás me dizendo?
-É verdade, Nerwaldo! Essa tua mania de não aceitares as coisas como são vai fazer de ti um dia ou um babaca meloso, um merda solitário, ou quem sabe um idiota alienado!
Depois dessa frase, Nerwaldo olhou firme nos olhos da amiga, segurou a respiração como se fosse dizer alguma coisa mas desistiu, sentando-se na cama para avaliar melhor as verdades que acabara de ouvir.
Se fossem ditas pela boca de outra pessoa, nem ao menos se daria ao trabalho de escutar, mas a presença dela modificava sua atitude.
Não havia mais espaço para sarcasmos ou ironias tolas, apenas conheciam que se gostavam, e por se gostarem de uma forma diferente faziam o possível pelo outro, ainda que tivessem de dizer palavras duras, que incomodam porém são necessárias.
Nunca escondiam seus sentimentos um do outro, faziam força para serem sinceros ou então aquela relação não faria sentido, e enquanto fizesse sentido era saudável para ambos, até que ela explodiu num desabafo.
O sofrimento ou felicidade de um acabava se tornando o de ambos,  ela dissera com todas as letras, ele achou por bem calar um instante e considerar com os próprios pensamentos o que realmente achava disso tudo.
A desilusão de que por mais triste que seja, a gente deve aceitar a natureza humana do jeito que ela é sem tentar mudá-la, a não ser que se prefira mascarar a realidade. O pior de tudo é que a rotina pintava essa realidade momentênea onde vivia como se existisse  desde o começo dos tempos.
Não fazia sentido perguntar se algo podia ser diferente, porque agora tudo podia ser diferente, da mesma forma que continuaria sempre a mesma coisa.
As contingências da vida te cutucando por todos os lados, e no final a sensação reconfortante de que não podia ser de outro jeito, e realmente não poderia.
...
Havia no quarto uma vitrola ao lado da cama, herança do pai da moça. Nerwaldo escolheu então um disco na prateleira ao acaso e pôs pra tocar, enquanto ela não tirava os olhos dele, esperando ouvir o que ele teria a lhe dizer, no instante em que a música imersa nos sulcos do vinil era descoberta pela agulha, transmitida até as caixas de som, e soava como um lamento:

"Ainda é cedo amor, mal começaste a conhecer a vida,
já anuncias a hora da partida, sem saber mesmo que rumo irás tomar;
Preste atenção querida, embora eu saiba que estás resolvida,
em cada esquina cai um pouco a tua vida,
em pouco tempo não serás mais o que és;
Ouça-me bem amor, preste atenção, o mundo é um moinho, vai  triturar teus sonhos tão mesquinhos, vai reduzir as ilusões a pó;
Preste atenção querida, de cada amor tu herdarás só o cinismo,
quando notares estás à beira do abismo;
Abismo que cavastes com teus pés."

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A Festa Mais Barata Do Mundo

     
        Olha só como na safadeza a gente às vezes também se dá mal:
Lorézio resolveu que que ia comemorar em grande estilo os trinta anos, idade a qual segundo ele o homem deve ou se corrigir e levar uma vida  reta dali por diante, ou enfiar de vez os dois pés na jaca e ser um safado remido, daqueles com carteirinha de sócio e o escambau.
Como permanecia safado durante muito tempo, Lorézio pôs na cabeça que aquela oportunidade seria única para mostrar ao mundo sua decisão de não ser mais um pilantra, resolvendo então convidar seus amigos para uma festa, mais precisamente um churrasco, pois assim "não gastaria muita grana", pensou.
Depois pensou mais um pouco e achou que não seria justo; afinal ele ia dar de comer e beber àqueles espertos, sabendo que não ganharia nenhum presente em troca, ainda mais que era aniversário dele, só dele, só ele podia e tinha que ganhar coisas, que injustiça!
Foi aí que teve uma grande idéia:
Falou para alguns amigos, os da rua, que ele ia arrumar muita carne, mas que eles trouxessem cada um uma garrafa de birita.
Só que pros outros amigos, os do trabalho/estudo, ele disse que arrumava as biritas, mas que eles levassem a carne e as linguiças.
No final das contas pegou vinte paus, encheu um isopor de gelo, comprou um saco de carvão e ficou esperando.
Achou que assim não só reuniria duas esferas de sua vida que não se tocavam, como mostraria para ambas que dali por diante não seria um panaca, pelo contrário: seria honesto, íntegro, honrado, verdadeiro... e no final ainda descolava uma puta festa de aniversário praticamente de graça!
Mas é como diz o ditado, espere sair do cú da galinha o ovo.
Lorézio não percebeu que seus amigos, uma parte imaginando que todo mundo ia levar uma garrafa e portanto ia "sobrar muita birita"; a outra achando que viria cada um no mínimo com um quilo de carne, estavam todos enfim pensando a mesma coisa:
"Pô, se ele falou que descola todo o resto, então birita/carne não vai faltar!"
                                                                               ...
Lorézio não imaginou que podia ter tantos amigos.
Não imaginou também que todos eles fossem tão mãos-de-vaca de arruinarem seu arranjo de aniversário, vá lá, tão bem elaborado. Pois de quase cinquenta pessoas(!) apenas duas trouxeram um litro de cachaça e um quilo de salsicha pra hot-dog.

domingo, 16 de outubro de 2011

Desilusão e Nuvens Listradas

        Quantas verdades ainda nos falta descobrir? Pode ser lágrimas de São Pedro, pode ser alguém chorando, pode ser o desacostumar do teu amor no céu. Pode ser o céu de manhã, pode ser realmente o céu, pode ser o grande amor esperando, pode ser o arauto da manhã.
Me importo com isso? Começo as frases com pronome oblíquo? Acho  que sim.
Mudam a ortografia? E o que e faço? Não me importo.
Como pode alguém se entregar pra esta vida?
Nota: cada coisa que existe ao teu redor, era pra estares gostando, se esse é o teu projeto de vida, ser feliz, estar feliz, gostar de si mesmo, atuar com os outros.
Sofro.  Buda diz que faz parte, eu continuo sofrendo. Não vou apenas esperar quem: "Aquela Que Cessa Todas as Dores", A "solidão amarga que cobre  tudo",  "Meu filho tome cuidado, quando penso no futuro, não esqueço do passado".
-Eu não te amo!
-Por que?
-Porque o Eu não existe! Existe outra coisa, o que ama falar contigo!
-Eu perfiro ficar sozinha.
-E o que restou?
-A nossa dor, nessa casa vazia...
-É a última vez?
-Não mais...
O que houve? Me Incriminas? De quem tu és mais importante? Que as crianças que morrem de diarréia por falta de saneamento? Ou as que morrem de verminoses, ou as que morrem assassinadas pelo tráfico da tua cidade, as que são baleadas por te roubarem, pois  acredite, mesmo que mudem a lei, ainda serão menores.
-Pôrra! Eu sou egoísta vazio, que de forma precária acompanha o andar dos tempos!
-Pois então, debilóide! Tu AINDA achas que o segredo do mundo é fuder os outros?
-Acho que não...
-Égua! Bicho, daqui a cem anos a vida vai ser difrerente da vida que tu vives hoje! Tenho vontade de te xingar! Porquê, a não ser que sejas um milagre da medicina, estarás vivo daqui a cem anos? Os  caras que lês já morreram há muito mais que isso! O Que estás pensando?
-Meu Deus!
-Que foi?
-Acabei de perceber: um dia eu vor morrer, e não sei quando vai ser! O que eu faço?
-Sabe  que tu faz?
-Não, o quê?
-Vai - Tomar - No - Cú!!!

sábado, 15 de outubro de 2011

A Linha Imaginária

        Tinha dias em que ela não conseguia se ohar no espelho. Se achava gorda, feia, as bochechas inchadas e as plantas dos pés doloridas, o que a impedia de andar, além da cólica.
Frustrada, dolorida, revisava como estava sua vida naquele momento, um quase namoro, uma quase família, quase amigos, uma quase vida.
O que ela esperava era realmente o cara certo pra ser feliz? Caso contrário, terminaria com o cara errado, pois temia mais que tudo a solidão? Na verdade não.
Já sentira aquela solidão que não dependia das pessoas ao seu lado. Descreveu esse sentimento como se naquele instante ninguém existisse ao seu redor, mesmo estando no meio de uma multidão.
Tentou lembrar do tempo passado: das projeções que não se confirmaram, dos sucessivos fracassos, os abusos, o momento da depressão em que chegara a pedir ao médico para que a internasse, e depois quando transaram no consultório, e depois o nojo quando ele apenas prescreveu-lhe remédios.
Certa vez um homem com quem se envolvera combinou de largar a família e ficar com ela, mas foram pegos em flagrante num motel por um detetive particular, ela foi ameaçada pela esposa traída e teve que se mudar de cidade.
Tantos erros. A ilusão de estar vivendo ao máximo, quando na verdade sua vida escoava pelo ralo; o frenesi da juventude, apaixonada, achando que fazia a coisa certa embora com a pessoa errada, sem conhecer ainda o outro lado, aquele da lei das compensações, onde a cada um é reservado o seu quinhão de acordo com o que semeou.
A Oração de São Francisco ela carregava sempre na bolsa, sabia os versos de cor. De uns tempos pra cá, dera pra frequentar a igreja na companhia de uma vizinha, que com ela vinha passar as tardes:
-Desculpe, Dona Marlene, não estava ouvindo  você bater.
-Nossa, Lica! Eu estava batendo faz é tempo...
-Sabe o que é? Eu ando meio atordoada, faz uma semana que eu não falo com o Zeca depois que a gente brigou.
-Ih, mana! Já te falei, se conselho fosse bom a gente vendia: larga desse homem que ele só vai te trazer problema.
Lica mirou a vizinha bem nos olhos e não encontrou ali o menor sinal de rancor ou desprezo, ou o que quer que  fosse. Apenas uma estranha inocência, uma chama dura que cozinhava lentamente, de quem se conformou pelo destino ter feito das mulheres vítimas do mal semeado pelos homens, cuja quase totalidade não prestava:
-Por isso quando eu era mais nova arrumei logo meu homem! Olha que tu já estás avançando nos trinta, é rápido que a beleza acaba...
-Mas não acho que seja bem isso. Falando em sofrimento, ainda tens um ramo daquele anador no teu quintal?
-Ah, LIca! Eu até tinha, mas é que o meu marido pintou de cal a parede do lado da churrasqueira, aí as folhas agora estão todas sujas de branco. Mas estás com muita dor é? Senão eu posso ir na farmácia pra comprar agora um remédio pra ti, querida.
-Não precisa se incomodar, acho que já estou boa, só preciso mesmo descansar um pouco. Muito obrigada, mais tarde eu passo lá pra gente ver a novela.
-Tem certeza? Tudo bem então...
E a vizinha virou as costas e foi embora. Mas algo de sua presença permanecia ali, de alguma forma incomodando mais que a cólica.
Naquela noite ela não conseguiu dormir, a dor de seu corpo era forte, mas era na cabeça onde mais incomodava.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Alternativas Para Distritos Metropolitanos

Abstrair de algo é a capacidade de fazer o cérebro pensar o contrário do que ele achava que estava pensando, para dali fazer algo realmente útil com o primeiro problema que despertou sua atenção.
Longe de ser difícil, quem sabe desnecessário, mas como tudo o mais nessa vida, é um caminho longo que exige muito esforço. E por mais que se tente acreditar, no fim não há aquilo que nós chamaríamos de "recompensa", embora se um dia chegar lá, certamente mude de opinião.
-O que te assola nesse momento o espírito?
-A injustiça social, o sofrimento da humanidade, a crise no Oriente Médio...
-Não, eu falo de outra coisa, o que verdadeiramente te incomoda?
-A porcaria dessa cerveja que nunca vêm gelada mas a gente continua vindo sempre aqui.
-É disso que eu estou falando! Te preocupas mais com essa breja escrota que com os órfãos do Sudão!
-Bem, eu posso me preocupar com aqueles órfãos cheira-cola ali da esquina.
-Eu sei, mas o problema é que não fazes uma coisa nem outra. Mas por enquanto isso é bobagem, me dá teu copo aí...
Foi então que depois desta conversa absolutamente trivial que me veio numa espécie de estalo, aquilo que eu deveria fazer. Durante semanas amadureci a idéia e a cada dia ela parecia mais clara, minha atitude seguinte finalmente me parecendo a coisa mais óbvia a ser feita, apenas a continuação sem fim daquele momento de abstração, lógico, um pouco confuso.
                                                                            ...
-Então foi por isso que você começou a cozinhar?
-É, só que eu nunca levei o menor jeito.
  -E por que você continua?
-Sei lá. Segura isso aí.
-O que é isso?
-Prova logo, é um caldo que eu fiz.
Era uma espécie de sopa, amarela por causa do tucupi, só que muito mais doce:
-Putz! Têm açúcar nessa parada!
-Na verdade, é rapadura...

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

A Passagem Do Abismo

        "Sinto de repente pouco,
        Vácuo, o momento, o lugar.
        Tudo de repente é oco —
        Mesmo o meu estar a pensar."    


Viver tornava-se aparentemente mais complicado a cada dia, mas imaginava que talvez estivesse se acostumando com as coisas rápido demais, o que talvez denotava uma certa indiferença em relação à imprevisibilidade desses fenômenos.
  A experiência ia adquirindo um peso cada vez maior, e tudo fazia crer que  aumentaria até tomar conta de sua vida, e ele se visse reduzido àquele pequeno círculo de pessoas, com suas virtudes e defeitos a que habituara-se por pura preguiça, mas também para evitar o incômodo que é o contato com indivíduos a quem não temos intenção de nos aproximar.
A gente vai ficando cada vez mais estranho, mas quanto a isso o melhor é ficar calado.
Simplesmente não se é feliz, se está feliz, e tudo o mais são amenidades pra preencher o vazio, a que cada um dá o nome que quer. Qualquer ocupação, qualquer trabalho, qualquer hobby, beber muito, comer muito, virar um fanático religioso, se chapar e descolar da realidade, querer tudo sempre e mais e sempre, e o vício geral em todo tipo de coisa que eu nem imaginava que podia viciar.
A derrota de todos para a vitória de uns pouquíssimos que ninguém sabe quem são, mas parece que do céu controlam todos nossos atos, e nos ameaçam com os castigos mais perversos de que a sociedade dispõe, mas que a eles não pode atingir, pela incorporeabilidade de sua existência, pois podem estar em todo lugar mas estão em lugar nenhum, provavelmente na Europa.
Em nome dos quais se praticam todas as vilezas e sandices. Que a todo momento é conjurado quando alguém morre de bala perdida numa periferia de uma grande cidade ou uma criança de diarréia no mais perdido dos interiores.
Graças a eles é permitido o ódio mútuo. É a eles que devemos a cobiça e a ganância, a inveja e a vaidade, a corrida absurda que faz considerarmos os outros inimigos a serem batidos. E conseguimos assim, abençoados pela besta imunda que se apoderou destas mentes, criar uma existência de merda pros outros e pra nós mesmos.
Porém, existe esperança! Ficaste preocupado, não foi? Agora fique frio, a solução é simples: é só querer de verdade ser alguém melhor, com essa vontade doida que tens de tudo que existe e agora, tenta a cada minuto e a cada segundo pensar numa forma de pôr isso em prática na tua vida, testando-as instantâneamente nos teus atos, descartando as que não dão certo, prosseguindo com as outras.
Ajuda também se votares em políticos melhores na próxima eleição.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

O Cara Mais Legal Do Mundo

         Desconfiava desde sempre, mas um dia desses confirmei: conheço o cara mais legal do mundo.
-Ele é teu amigo?
-Tá tirando? Se é o cara mais legal do mundo, não tem como não ser amigo dele!
-Pô, foi mal...
O cara era muito bacana mesmo. Sabe aquele tipo de pessoa que de longe tu sacas que é sangue bom? Pois o figura era tão gente fina que a gente conversava dez minutos e tinha vontade de dar a irmã pra ele casar, só pra ter ele como parte da família.
Putz, não reclamava de nada. Ao contrário, até os problemas dele, que eram os piores possíveis, ele contava numa boa, encarava cada coisa ao seu tempo e tinha muita paciência, mas nunca precisou dizer isso.
Conhece todo tipo de música e ganha a vida assim. É um dos poucos caras que realmente têm prazer no que faz. Não toca nenhum instrumento, mas juntou numa banda os melhores instrumentistas que ele conhece, descolou um bar onde eles tocam releituras dos grande clássicos toda semana, já está agilizando num estúdio de outro brother um cd com o som dos caras, e eu aposto que se cada amigo dele comprar um, vai sair um puta sucesso.
Quando a gente foi apresentado, eu já sabia que ele tinha um rolo de muito tempo com uma flor de menina que dispensava comentários. Todo mundo que a conhecia, inclusive eu, inevitavelmente se apaixonava:
-Sacas a Marcela?
-A mãe daquele garotinho João?
-Pois é, filho dele.
Das mulheres que eu conhecera e depois tinham engravidado, a Marcela não só era a mais bonita, e continuava linda em todos os sentidos possíveis depois que nasceu o João, como agora a quando a gente via o moleque, aos cinco anos de idade e correndo feito uma peste, imaginava o trabalho que ele ia dar quando começasse a namorar, pois tinha puxado a beleza da mãe e o jeito de ser do pai.
Sempre que rolava uma barca maneira, o primeiro nome que lembravam era o dele, e por mais coisas que ele tivesse que fazer, se esforçava pra ir. Às vezes ele já estava com outro sistema na agulha, e teve uma vez, sei lá como, ele conseguiu juntar duas festas no mesmo lugar, transformando aquela noite memorável numa esbórnia só.
-Caramba! E por acaso eu conheço esse figura?
  -Se tu conheces não sei, mas saca que é aquele que vêm ali, conversando com a Marcela, e acho que eles estão caminhando na nossa direção.
-Podes crer! Eu sei quem é, muito bom saber...

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Estória Bizarra

     Tudo ali se via, tudo parecia com aquilo que você gostava: redes de pescas carboníferas, daguerreótipos esfunados, cabides de saliblablabu...
Eram muitas crianças em volta, eu não vi graça nenhuma, mas todas elas riram:
-Quem é você?
-O senhor.
-O Senhor tá no céu!
-E Tu vais pra puta que te p...
Antes que eu terminasse de falar, veio aquele trio elétrico:
-O que você falou tio?
-Vai pra puta que te p...
Pôrra, nada mais pra me encher o saco, só o pai do pentelho:
-Tú estavas falando com o meu filho?
-Não perco meu tempo com retardado, dá licença?
-Não mermão, olha pra mim!
-Retardado...
Não vi o que eu fiz, o playba jogado, o filho dele chorando, a vagaba que antes queria dar, agora fazendo o maior escândalo. E o mais impressionante é que todos, eu disse TODOS, os taxistas a fim de me dar porrada, tentaram me acuar pro canto:
-Tu estás brincando, isso é sério?
-Péra aí que a gente chamou a polícia...
Maldade o que eu fiz. O que falou por último desmaiou na calçada, depois de bater a cabeça numa pedra. O segundo arriou com um cruzado na ponta do queixo, o terceiro derrubado com uma rasteira, pro quarto perguntei:
-Que leseira é essa?
-Me desculpa, que quem queria que o pessoal que...*
(Maldade o que eu fiz)

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

O que Anima o Ser Humano?

           "Eu tenho mania de deixar tudo para depois...
            Depois a contagem das cartas a responder...
            Depois a arrumação das coisas...
            tanta, tanta coisa..."


        Estava ali na sua frente e não podia acreditar. Sempre se deparava com situações como esta, existir era uma sucessão de fenômenos aleatórios, uma forma de vida que adimitia o mínimo de objetivos, pois na verdade nunca encontrava meios de dispô-los organizadamente em sua cabeça.
Por isso algumas vezes quando encontrava-se cara a cara com um fato, não conseguia ao menos perceber que estava diante de um fato. Como naquele dia convencional deparou posto e colocado diante de seus olhos, mas que obrigava-o a forçar a imaginação para tentar descrevê-lo.
-Meu Deus! O que será isso?
Procurou no dicionário sinônimos, verbos, substantivos, adjetivos, mas nada encontrou ali que pudesse explicá-lo. Depois uma gramática empoeirada, o livro de um certo pensador, uma imagem, um filme, uma música...
Aprendemos que as coisas nunca são como se quer, nos acostumamos com as maiores safadezas e nos preparamos achando que o pior está por vir. Mas o que fazer se um dia o melhor chega?
Olha, olha, procura daqui e dali, toma forma mas não diz à que veio, apenas está lá como sempre esteve, uma mancha na parede, um teste psicológico, uma loucura branda e macia, a areia da praia à noite depois que saiu a lua e choveu e quase que o sol nasceu de novo:
-Por que só agora?
-Se pudesses perguntar apenas uma vez, seria essa mesma tua pergunta?
-Não, claro que não! Seria...
E finalmente encontrou a resposta.

domingo, 9 de outubro de 2011

Camarilha Pagã Destrambelhada

     Manhã clara, eles terminaram as provas cedo e resolveram bundear por aí:
-Por que a gente não vai conhecer o Museu De Arte? Hoje não paga entrada...
Dita a palavra-chave, caminharam os três em direção à Cidade Velha, discutindo se começavam ou não a beber antes do meio-dia, quando ainda não tinham comido nada, ficando decidido que primeiro a Arte, então forrariam o bucho, depois quem sabe rolasse uma pinga.
Chegaram, o Gleguer entrando na moral, depois o Beavis e o Chuvisco logo atrás, sem perceberem um cara fardado que correu de uma pilastra e barrou-lhes a passagem, chamando pelo radinho o pessoal da segurança.
-Qual é meu amigo, queres deixar a gente entrar? Tá escrito ali na frente que terça-feira não paga!
-Não sou teu amigo! E tu devias perguntar isso pra mim, tu não me viu te chamando lá na frente, tu és retardado? O Museu tá fechado hoje, vocês podem ir embora se não quiserem que eu tire vocês daqui à força!
-Mas tem gente entrando, olha ali...
-Segurança! Segurança!
Correram bastante, o Beavis na frente porque era o mais alto e tinha as pernas mais longas. Enquanto ele dobrava a esquina, o Chuvisco ainda não tinha conseguido nem atravessar a rua, e o Gleguer corria descontrolado, chamando palavrão por entre os carros deixados no estacionamento natural das cidades, que são as calçadas:
-E agora, José?
O Chuvisco odiava o próprio nome, e o Gleguer só disse aquilo porque no fundo era mau e sabia onde machucava, mas depois resolveram não esquentar. Quando finalmente todos concordaram em tomar uma birita e ficar jogando porrinha, nem bem tinha acabado de soar a undécima hora, como numa daquelas iluminações divinas, começou a chover.
Olharam em volta um lugar que servisse de abrigo e tivesse cadeiras, logicamente se refugiando na Igreja que ficava em frente à praça, como normalmente costumam ficar a maioria das igrejas, o contrário não sendo verdadeiro, paradoxalmente.
Os três dirigiram-se penitenciosos e compungidos,  não até o altar, onde poderiam ser fulminados, mas pela entrada lateral, onde deram de cara com um Cristo Morto De Cera, numa caixa de vidro com uma fenda na altura do peito, coberto de notas de cinco, dez, e algumas de cinquenta, além de moedas de todos os valores.
Olharam-se, contritos...
Difícil saber qual dos três ou se os três pensaram a mesma coisa, talvez ao mesmo tempo; ou se foi uma dessas idéias que na verdade não pertencem a ninguém, apenas ficam suspensas no ar, esperando o mínimo para condensar-se e cair em nossas cabeças. O certo é que menos de dez minutos e um arame de caderno depois, aliviaram Nosso Senhor em quase cem pilas, em notas de cinco e de dez, além de algumas moedas.
Mas nada acontece sem propósito e não se furta uma igreja impune, nenhuma delas, o remorso bate e ameaça levar o mau cristão direto pro inferno, vaporizado por um raio mortífero, tal a vileza do fim a que destinavam o modesto butim, no que a mente nada modesta, no caso a do Beavis, comovido com semelhante baixeza de ideais e sentimentos, no maior e mais redentor conselho capaz de purificá-los do pecado cometido, sugeriu:
-E se a gente usar só metade do dinheiro e com o resto a gente faz caridade?
Assim uma metade da grana foi pra lanches e birita, a outra metade a galera comprou umas bolachas com Refri e deu pros mendigos jogados em frente a Igreja, mas eles ficaram putos: disseram que não queriam comida, que da próxima vez o merdinha que quiser fazer caridade só pra não se sentir um grandessíssimo dum feladaputa, melhor trazer o dinheiro em espécie, pôrra!

sábado, 8 de outubro de 2011

Sindicalismo Punk

        -Sério cara? Que massa!
Tava explicando para aquele garoto que além de mim, só existiam mais oito punks na cidade, e que a gente se reunia todos os finais de semana num local secreto, pra botar os assuntos em dia, dividir estórias e tal.
Muita coisa falam a nosso respeito, a maioria errada. Por exemplo, nem todo punk vive apenas pra feder e encher a cara, ninguém precisa ser punk ou o que seja pra fazer isso.
Me visto de preto, ok, mas as freiras também, então isso também não significa nada, qualquer babaca pode se vestir de preto.
Deixa eu ver que mais que falam, que a gente não sabe se comunicar e por isso só usa frases curtas; que nossa memória é uma merda e outras coisas de que não me recordo no momento.
-Mas você odeia os Skin-Heads, não odeia?
-Égua, doido! Tu não entendeste que na verdade eu odeio todo esse sistema?
-Então todos os seres humanos?
-Claro! Por acaso não está todo mundo no sistema? É igual a matrix, cara, só que eu mandei o careca enfiar no cú as pílulas...
Era complicado eu tendo que explicar toda a filosofia profunda por trás do movimento, gastando saliva e aquela besta ali parecia que não estava entendendo nada, como prova do poder da burguesia, que corrompe os cérebros e nubla as visões de felicidade do único sistema justo possível na terra: o Sindicalismo Punk.
Fiquei meio que pensando com minhas correntes, chapado, o fedor começando a incomodar; quando eu vejo esse tosco do meu lado desembrulha um papel e tira de dentro um guardanapinho, desses de lanchonete, com maconha dichavada:
-Pôrra! Não acredito que tu vais bolar um baseado bem aqui do meu lado!
Falei pro imbecil sair dali se não quisesse tomar umas correntadas, que se ele fosse fumar essa merda e estragar o corpo dele, que fumasse bem longe de mim, pois eu não ia proibir ninguém de fazer a idiotice que quisesse, sou contra a intolerância, a repressão, o fascismo e a hipocrisia.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Teste De Momento


        Sabe quando você está ali sentado, na sua, quando parece que nada vai acontecer e o mundo dá uma volta ao seu redor?
Foi mais ou menos assim:
A gente tinha ido assistir aquele filme que estava passando no Cine Pulga, com aquela atriz que da última vez ganhou o oscar porque soube mostrar a bunda, por sinal magnífica, mostrando aos jurados que fazia apenas pela personagem a cena da curra, extremamente necessária para compor o drama interno da personagem na sua fixação pela figura masculina.
Chegamos e a fila estava muito grande, mas para para nossa enorme surpresa, naquele dia o teatro ao lado ia ter uma apresentação de "Doce Sangue De Nossas Almas: Tragédia Nua e Crua", que eu na verdade achei espetacular, pois a menina assassinada no final, putaqueopariu, entreguei o final, mas vão assistir a peça, era gostosíssima.
Enfim, fui apaixonado por ela em outros tempos, e depois ela me chamou pro camarim, pois não só ela me reconheceu, como me convidou a seguir junto com os outros atores pruma festa que tava rolando num barco, e sem saber por que dizer não, garrafa de um lado, Kali do outro, lá fomos nós, e o barco no outro dia ia pra outro estado, apresentar a mesma peça:
-Vai comigo, a gente dorme junto e tu trabalha na peça!
-Se fosse só pra ficar contigo, eu faria isso todo dia, mas eu tenho minha vida aqui...
      -Olha pra mim! Eu nunca pedi prum cara ficar assim comigo, por favor, você não prefere levar outra vida?
-Eu não sei o que dizer...
-...

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

A Incrível Estória De Seu Benjamim

      Estávamos sentados nos bancos de frente para a praia, debaixo da sombra do castanheiro, com uma garrafa de 51 e um saco de cajus para tira-gosto, numa posição onde podíamos também ver as pessoas que desciam para atravessar o canal em direção à areia, alguém comentando que mais tarde quando a maré baixasse ele levaria todo mundo no mangue, outro dizendo que ia pegar não sei que rabeta. Mas eu acho que todo mundo já estava muito chapado àquela altura: nem bem a garrafa ia pela metade, tinha gente querendo fazer outra coleta:
-Ô Mão-de-Sogra, chega aí e toma uma com a gente!
-Ôpa, é pra já!
-Tens uma intéra pra outra?
-Égua, sabia que vinha facada! Quanto falta?
Quando conheci o Seu Benjamim, perguntei pro Redisco, que na verdade se chama Pedro Carlos, o motivo do apelido Mão-de-Sogra:
-Tu ja viste uma mão de sogra? Pois olha pra ele!
Como ele deu por encerrada a explicação, também não perguntei mais nada. Mas era um cara gente fina, sempre que eu passava por ele ou estava bêbado ou tentando ficar, o que não era difícil, pois de todos ali era pra mim quem mais se virava. Não tinha serviço por mais tosco que fosse que ele recusasse.  Fazia coisas às vezes a troco de nada, só pela amizade:
-Taí pra mais uma! Sabe de onde é esse dinheiro? A mulher do Francisco me encomendou vinte caranguejos!
E vivia sempre pegando caranguejos, subindo em coqueiros, carregando areia ou pedras, tirando toras no mato, capinando, remendando redes, pescando com elas, tirando turú, catando sarnambí, fazendo carvão,  servindo de caseiro e o que mais pintasse.
Uma vez ele apareceu perguntando quem podia ajudar ele num negócio leve, três metros de pedras pruma casa que ele ia construir. Estava ficando sem um puto então me ofereci pro serviço, mas Seu Benjamim me olhou como se não acreditasse muito:
-Já carregaste pedras na vida?
-Bom, eu acho que já, quer dizer, depende da pedra...
-Depende da pedra? Então carrega aquela ali pra eu ver.
-Qual, essa dali do lado de lá do pau?
-Não, a outra de trás, aquela com um matinho.
Disse isso e deu um sorriso: era uma pedra enorme, pontuda e cheia de cracas.
Eu já passara por ela várias vezes quando ia atravessar o canal a pé, como naquela hora de maré seca. Falei que era impossível, aquela pedra devia ser muito pesada, além do que estava presa no lodo, e se ele não queria me dar o serviço pelo menos não ficasse de palhaçada, zoando com a minha cara, pois se nem ele se garantia com aquela uma.
Ele levantou a cabeça com uma certa tristeza no olhar, soltou a respiração, enxugou o copo de cachaça num só longo gole, botou a camisa nos ombros e foi cobrindo os cem metros que o separavam da pedra.
E não só conseguiu carregá-la, como veio trazendo-a nos ombros, ela que pesava em torno de oitenta quilos, cheia de lama e areia e bichos, largando-a depois aos meus pés.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Volta Pro Mundo

     
        -É preciso não olhar pra trás...
Vinha descendo a rua na direção da escadinha, eram duas da tarde e as poucas pessoas que caminhavam, procurando qualquer sombra possível, tinham testas franzidas, ao invés de abrirem bem os olhos para aproveitar o espetáculo que é estar aqui e vivo:
-De alguma forma, o futuro virá e  tudo será diferente...
Não sabia que futuro seria esse, e de novo queria achar que as coisas passariam a ser diferentes, mas sempre acabava reepetindo as mesmas merdas de sempre, com as mesmas pessoas de sempre, restringindo a si e aos outros, envenenando-se e tornando-se mau, piorando a cada dia em que insistia que podia enganar-se para sempre.
Continuou andando, distraído, enquanto ao seu lado passava um rapaz apressado, aparentando ter a mesma idade, que talvez por ser feriado caminhava também distraído, também com a cabeça baixa por causa do sol, mas que na hora de atravessar em direção à calçada do Banco Central, não viu o carro que subia a toda velocidade, e acertou-lhe de uma forma tão violenta que foi possível ouvir o som dos ossos se quebrando.
O motorista desceu e parecia meio embriagado, ou simplesmente atordoado pela porrada, sentou no meio fio e começou a chorar com as mãos no rosto: o rapaz estava obviamente morto e não havia mais nada que se pudesse fazer.
Por curiosidade, pelo choque daquele corpo ali estendido, alguém que um minuto atrás passara-lhe ao lado, cheio dessa energia que anima nossas vontades, mas que não pode controlar o mundo, foi-se aproximando, e assustou-se com a semelhança entre ele e o cadáver.
Sem que percebesse, um garoto de aproximadamente dez anos de idade parou ao lado, também ficou olhando a cena, e começou a falar um monte dessas besteiras de criança, mas depois se virou e encarou sério e perguntou:
-É teu parente?
-Não, não conheço, ele só passou pelo meu lado...
-Mas viu como ele se parece com o senhor? O que o senhor faz da vida?
E em menos de um minuto, sem saber o motivo, viu-se ali resumindo toda sua vida, o que fazia, seus problemas e mais o que achou importante para um garoto que provavelmente não faria a mínima idéia do que ele estava falando. Foi então que algo incrível aconteceu:
-Tio, deixa eu te dizer uma coisa. Se isso que acabaste de falar é verdade, saiba que esse homem estendido aí na frente era exatamente da tua idade, não tinha nem a metade do que tu tens, mas tava feliz da vida, porquê tinha  acabado de ser contratado prum emprego melhor e ia contar isso agora pra namorada, ali na escadinha de frente pro rio. Além do que ele também é meu irmão...

terça-feira, 4 de outubro de 2011

A Luta Dos Robôs Laranja

         O sol ilumina o desenho na parede: uma espécie de cenário amazônico, desses que é mais comum em bar, com uns bichos estranhos misturados, uma onça do lado de uma garça em cima de uma pedra que olhando melhor é um jabuti, eu acho.
       O mais estranho é que tem no canto esquerdo superior uma coruja de um palmo, cinzenta, com grandes olhos amarelos com furinhos vermelhos no centro. Essa coruja vigia de certa forma meus movimentos, neste cubículo, há quase três anos.
       Às vezes me incomodo de ver aquele bicho agourento ali. Mais de uma vez tive a certeza de vê-la mudar de lugar. O único pedido da senhoria era que nâo puséssemos tinta sobre o desenho, que ocupava todo o lado esquerdo da parede. Quem o fizera havia morrido tragicamente, quando morava ali, se jogando pela única janela, e se espatifou no asfalto dez andares abaixo, completamente nú.
     Logo que mudei, pensei em cobrir com cartazes ou coisa parecida aquela pintura, mas por preguiça acabei me acostumando e deixei ficar do jeito que estava. Quando apoiva os cotovelos na janela e olhava pra baixo, sempre pensava na estória do pintor suicida, mas de alguma forma é difícil desviar o olhar, as pessoas ficam acenado lá embaixo, querendo me dizer alguma coisa, e eu tenho que me debruçar bem pra poder ouvir.
     O sol nessa época costuma se pôr rapidamente, minha vista fica um tanto quanto embaralhada, dou um pulo e me sento na borda da janela como sempre faço, e fico olhando o desenho na parede, os bichos todos, mas por um momento eu pude ver perfeitamente quando um deles levantou a asa negra.
     Podia ser o efeito que a minha sombra provocava sobre o desenho, mas fiquei movimentando as mãos, tentando agarrar aquela coruja, a cor agora completamente vermelha escapando por certos furinhos, preenchendo aqueles olhos, derramando-se no chão, o sol cada vez mais rápido:
     -Pára cara! O que tu vais fazer!
     Eu não sei quem é esse camarada que entra arrombando a porta, é alguém que veio falar comigo, com certeza, pois vejo ele se afastando muito rápido da janela, gritando meu nome por vários segundos, com os olhos muito vermelhos, e eu tenho certeza que por trás desse grito tinha muita coisa que ele queria me dizer.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Como É Bom Morrer No Mar

        Deitados na cama, suados, nus, ela olhava pela janela a árvore imensa, o céu azul mudando de cores por causa do finzinho da tarde. Deviam ser umas cinco, seis horas, e eu ali sem conseguir pensar em nada, nem ao menos juntar duas palavras para descrever o que estava sentindo.
Ela virou-se com um sorriso, mostrou a língua, eu lhe dei um beijo e novamente veio aquela coisa a que eu ainda não tinha dado nome, e lamentei por não ter nascido poeta.
Joana segurou meu rosto com as duas mãos, me olhou por alguns segundos, sentou-se sobre as pernas cruzadas e me perguntou, meio brincando, meio sério:
-O que foi?
-Nada, por que?
-Olhastes de um jeito tão estranho, parece que eu pude ver através dos teus olhos.
-E o que foi que você viu?
-Não sei, esse brilho estranho, eu diria que por um momento vi tua alma...
Novamente a sensação inominada me invadia, como se houvesse disparado um gatilho e agora não fosse possível voltar atrás. Ainda assim não podia explicar, se pudesse teria o maior prazer em contar àquela mulher tanta coisa que se agitava na minha cabeça, qualquer coisa como uma lembrança boa, distante, imaterial, embora ela estivesse ali na minha frente, ao alcance da minha mão que estiquei para tocá-la, encostando a ponta dos dedos em seu seio, descendo até os pelos do púbis, uma agonia, uma alegria, uma tristeza:
-E se eu dissesse que não sei o que é amor?
-Mas a gente não se ama, por quê me dirias isso?
-E se eu dissesse que não tenho nenhuma resposta, e como você só pergunto das coisas sem nada esperar, e que sempre soube viver com isso, mas agora parece que finalmente fiz a pergunta certa, e como consequência acabei perdendo a única certeza que tinha, e que isto me causa um enorme desconforto e agonia, como se só isso importasse?
-E alguma vez já tinhas sentido isso antes?
-Não sei. Parece que sim, quer dizer, há muito tempo que não, mas foi numa época em que eu não tinha medo de nada e achava que só eu importava no mundo, mas agora é como se eu tivesse caído no meio do oceano e tivesse desaprendido a nadar...
Calamos. Ela tentava enxergar dentro dos meus olhos o que nem eu conseguira entender, descruzou as pernas e deitou novamente ao meu lado, desta vez passando suavemente a mão pelo meu corpo, como se quisesse me consolar. Então subitamente estremeceu, apoiou o cotovelo no travesseiro e me encarou: naquele momento descobria a sorte de ser poeta, pois a única pergunta que me fez era a resposta para todas as outras perguntas, e continha no fundo aquilo que foi, é e sempre será; o que os homens vêm sentindo desde o começo dos tempos, e que a cada dia morre um pouco com cada um:
-Agora acreditas?

domingo, 2 de outubro de 2011

Eles Não Sabem O Que Fazem

-Como se pode fazer o que se quer com todos esses problemas?
Disse isso para si mesmo em voz alta. Estivera nos últimos tempos pensando no rumo que as coisas haviam tomado. Dez anos passaram, mas parecia que tudo o que acontecera tinha sido exatamente no dia anterior, como se após todo esse tempo ele estivesse apenas dormindo e só agora ao olhar em volta se desse conta e começasse  a acordar.
Tinha em cima da cômoda uma carteira de cigarros amassada, pegou-a e viu que dentro dela os cigarros já tinham mofado. Ainda guardava cigarros em casa, embora tivesse parado de fumar, mas naquele momento a vontade retornara. Talvez fosse assim pelo resto de sua vida, a cada vez que o nervosismo viesse, junto retornaria aquela vontade de fumar, que na verdade já não era tão grande assim que o fizesse tragar um cigarro mofado.
Pegou a garrafa de vodka ao lado da cama e tomou um grande gole, enchendo bem a boca antes de botar o líquido para dentro. Odiava vodka, o gosto dava vontade de vomitar, parecia que estava bebendo perfume barato, mas era o tipo de álcool que se conservava por mais tempo, outro tipo de bebida ficava simplesmente intragável de um dia pro outro, ainda mais para quem tinha, primeiro por preguiça e depois por hábito, o costume de beber direto na boca da garrafa.
-Cara, ainda são três da tarde e já estás tomando esta porcaria?
O amigo estava de pé ao lado dele, e agora olhava como se estivesse com pena, mas logo em seguida mudou de expressão e deu uma risada, depois continuou:
-Desculpa cara, mas se eu bebesse como tu, acho que não tinha mais fígado!
Ele não se importou com o comentário imbecil, aliás parecia agora que tudo o que fizera durante todo aquele tempo fora cercar-se de imbecis. Pensou em tomar mais um gole, mas o primeiro ainda não havia sentado direito. E exatamente nesse instante teve um pensamento tão forte que afastou todos os outros, e fez com que pegasse um dos cigarros mofados e pusesse no canto da boca, fazendo um gesto para que o outro lhe passasse os fósforos de cima da mesa:
-Talvez eu não tenha mais fígado mesmo. Nem coração, cérebro ou pulmões. Talvez meu corpo esteja vazio e por dentro desta casca só exista o que existia cem anos atrás e que vai existir daqui a um milhão! Ou seja, nada...