terça-feira, 26 de julho de 2011

Roteiro de Cinema Experimental

Cena 1: (primeiro plano)Ariosto, sentado em sua escrivaninha, está compenetrado, olhando com um lápis numa das mãos e a outra enxugando o suor da testa, para o almaço que tem à sua frente. Tenso, vê as horas no mostrador do relógio de pulso, risca alguma coisa no papel em largas traçadas, utilizando de tanta violência neste gesto, que a ponta do lápis se parte. Enfurecido, Ariosto grita palavrões incompreensíveis (sua voz confunde-se com o ruído de uma música que não se sabe de onde vem), quebra o lápis em dois apenas com a mão esquerda, amassa a folha de papel e desamassa-a em seguida, pois decidiu picá-la em pedacinhos, e é o que começa a fazer até que lhe surge uma dúvida: "Não seria melhor queimá-la?"(ha, o cinema mudo). Então joga tudo no lixeiro repleto de papéis, as sobras amarfanhadas do texto maldito,porco, inútil, desprezível. Vai cuspindo essas e outra injúrias entre dentes (agora podemos entendê-lo, fala um português chiando com os "esses"), rosto vermelho, contraído de ódio.
Cena 2: Ariosto tem uma aparência horrpilante enquanto vai procurando na geladeira (um rádio espantosamente pequeno está em cima desta), em meio à restos de miojo e latas de salsicha, a garrafa de aguardente, mas não encontra-a no único lugar onde pode procurar, pois além da geladeira enferrujada e da mesa que usa como escrivaninha, só possui  uma estante, uma poltrona e uma rede puída, no apartamento de apenas uma janela onde mora. Furibundo, chutando livros, latas de cerveja e maços de cigarro vazios espalhados pelo chão, enxerga a garrafa de cachaça (close na garrafa) postada entre dois livros na estante, provavelmente exemplares de alguma enciclopédia vendida à metro (a câmera vai abrindo e vemos enfileirados na prateleira as lombadas idênticas da Enciclopédia Barsa. Corta novamente para Ariosto, que vem com o mão -sinistra- estendida pegar a cana).
Cena 3: Com o semblante mais aliviado, Ariosto tem agora a garrafa segura em suas mãos, puxa-lhe a rolha com alguma dificuldade e entorna um grande gole direto do gargalo, fazendo os exercícios faciais de praxe para ajudar o líquido a descer melhor enquanto massageia o queixo com a mão livre (direita), como se tivesse levado um soco. Olha demoradamente então para o rótulo amarelo enquanto pensa em algo. Em seguida vira a cabeça em direção ao cesto de lixo (close no cesto), onde uma baratinha passeia trôpega entre os restos da literatura chinfrim que foram descartados, reforçando a sensação de abandono/desleixo com o ambiente.
Cena 4: (volta para Ariosto, abrindo...) Ele caminha devagar e pára  ao lado da lixeira. Os movimentos agora são graves e ponderados, como se tivesse tomado uma decisão irrevogável. Destapa novamente a garrafa, dá mais um gole (este um pouco menor) e começa a derramar o líquido inflamável sobre o papel amarrotado, espantando a baratinha, que escorrega para o fundo, meio embriagada. Depois derrama o restante sobre os papéis em branco e por fim em toda a mesa. Perscruta os bolsos em busca de fósforos, onde não os encontra, mira então na direção da cozinha e vai apanhá-los (aqui a câmera pode ser posicionada por trás da caixa e do maço de cigarros sobre a pia de resina imitando mármore, enquanto ele se aproxima. Por essa perspectiva vemos que usa no dedo anular uma aliança, ao pegar o cigarro e a caixa antes de retornar ao quarto-sala-escritório).
Cena 5: (aqui a câmera pode focar de qualquer lugar: da estante, de cima da pia, ao lado do rádio pequeno mas barulhento; o importante é enquadrar Ariosto em pé, de frente para a mesa de onde pingam gotas de  cachaça) Seu semblante agora é diferente, calmo, resignado, como se o que estivesse prestes a fazer fosse apenas uma obrigação ordenada por algum superior, a que ele não tivesse nenhum interesse  vinculado. Com a mão (direita) retira um cigarro do maço (filtro vermelho), leva-o à boca e com o gesto calculado risca um fósforo. Acende-o, tomando o cuidado de manter o palito aceso, dá uma boa tragada, depois solta a fumaça pela boca e nariz ao mesmo tempo. Olha pela última vez os escritos do que imaginava uma carreira de sucesso, em sua mão o  fósforo negro retorcido com a chama quase no fim, e solta-o sobre a escrivaninha, iniciando a combustão.
Última Cena: As chamas crescem e começam a ganhar corpo. Ariosto continua fumando seu cigarro, olhando impassível enquanto seus poemas, contos, artigos, o projeto inacabado de um romance, tudo o que ninguém jamais viria a ler, queimam na sua frente, entre fumaça e cinzas que tomam completamente o pequeno recinto (efeitos especias). Uma sombra de melancolia perpassa sua fisionomia, os olhos tristes, como se tivesse lembrado de alguma coisa que deveria salvar do fogo, mas que já não é mais possível. (Nesse momento a câmera começa a dar voltas ao redor de Ariosto e da mesa em chamas, a princípio devagar, depois cada vez mais rapidamente, até que alcança uma velocidade espantosa e sai voando pela única janela em direção ao céu, enquanto acompanhamos seu apartamento, o dos vizinhos ao lado, o prédio inteiro, vários prédios ficando para trás, a imagem distanciando-se cada vez mais alta e mais longe entre as nuvens, a cidade inteira, o estado, o país, o continente, até que tudo some,  mergulhado num profundo infinito azul.)

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