segunda-feira, 25 de julho de 2011

Francisco, o Barata

"Certa manhã, ao acordar de sonhos intranquilos,
Gregor Sansa notou que havia se transformado em um gigantesco inseto..."


Que baratas são seres insignificantes, nisso parece que todos estão em perfeito acordo. São insetos nojentos, asquerosos, repugnantes, dos quais não se pode tirar nenhum proveito, e o que é pior: essas criaturas infestam o mundo, andando por qualquer lugar sem se deterem ao maior obstáculo. E dizem alguns, caso haja uma guerra nuclear que ponha fim à vida neste planeta, as baratas serão as últimas a perecer. Mas o que será agora narrado não contém nenhum discurso contra ou a favor desses insetos e sua insignificância, e sim tratará do sentido atribuído ao que rotulamos como sendo “insignificante”; se não será tudo apenas questão de estreitas vistas; há quem dê máxima importância às menores coisas; vejamos:
Chico Capanema bebia tranquilamente com seus amigos de copo num bar situado à Rua Que Tinha Nome de Santo e, ao notar que todo mundo estava meio bêbado, aproveitava para tentar paquerar uma amiga sua, pensando que se talvez levasse um fora da moça, o que era muito provável, pelo menos poderia utilizar a embriaguez como desculpa no caso de cometer qualquer descompostura.
Só não sabia Chico que desculpa nenhuma ele teria de dar-se ao trabalho de elaborar, pois a foice da morte ceifaria sua vida naquela mesma noite, dali a alguns instantes, no momento em que ele teria a infeliz ideia de urinar na rua, ao invés de utilizar o imundo e fétido, porém seguro, banheiro do bar no qual o grupo curtia essa noite de lazer.
Pois pensemos no que aconteceu; do momento em que a ingestão de grande quantidade de fermentado de cevada produziu em Chico Capanema uma irresistível vontade de tirar água do joelho; de como ele raciocinou um pouco sobre as condições de higiene dos locais frequentados pela juventude de sua querida cidade nas noites de sábado, e ele se orgulhava de ter nascido com certa inclinação a esse tipo de devaneios; a forma como calmamente pediu licença aos amigos para levantar da cadeira: “Um instante que vou aliviar um pouco a bexiga”. Como dirigiu-se à esquina do cruzamento entre a Rua Que Tinha Nome de Santo com a Rua de Data Histórica Já Esquecida, ignorando a sugestão dos colegas de utilizar-se da latrina do bar. E as derradeiras palavras que dele escutaram: “Além do mais, vejam, a esta hora da madrugada quase não passam mais carros. Já volto...”
E essa foi a última vez que viram Capanema com vida, já que após ouvirem seus gritos, logo encontraram seu corpo completamente despedaçado. Fragmentos do que restara de seu cadáver espalhados por toda calçada numa grande maçaroca de ossos esmagados e vísceras, coitado, quase irreconhecível, não tivesse a cabeça caído intacta num canto meio afastado do restante após rolar para dentro da sarjeta, onde um pouco de seu próprio mijo, que para lá havia escorrido e se acumulado, molhava-lhe os cabelos empapados de sangue. Uma visão horripilante que fez com que todos vomitassem a cerveja consumida durante a noite nos despojos do pobre diabo, dando um toque final absurdo à construção de cena tão chocante e grotesca.
Afinal, enquanto Chico urinava em cima de um monte de jornais velhos e amassados, ficou pensando distraído em toda pequenez do ser: “Como pretendemos ser quem desejamos se somos incapazes de aceitar o que há de mais natural no mundo, à exemplo desta baratinha tão ridícula que saiu de dentro dos jornais? Com certeza tem medo de morrer por causa de um simples jato de mijo. Aliás esse instinto que preserva os animais é o que nos difere desta mísera insignificância, pois sabemos-nos racionais e superiores, e quando tudo o mais é inevitável, não temos melhor opção do que aceitar o que nos é dado irremediavelmente. Coisa patética é esta baratinha, cujo corpo asqueroso desfarelo agora numa simples pisada, esmagando sua inutilidade pastosa neste chão. Vá para o inferno, inseto, com certeza ninguém sentirá sua falta. Ai, ai, hoje eu tenho de dar um jeito de ficar com a Ritinha, da rapaziada só eu ainda não peguei essa mulher...”
Imaginou então, por escusos caminhos mentais que não convém aqui detalhar, como o fato de ter ido até a esquina urinar havia guiado seus raciocínios sobre assunto que nunca se dera conta antes. “Que boa idéia minha ter vindo mijar aqui...”
E foi então que Chico Capanema sentiu uma pessoa atrás de si, mas não teve tempo de virar para ver de quem se tratava, pois um imenso tênis de borracha, com meio metro de espessura só na sola, acertava suas pernas nesse átimo, arrancando-as violentamente, enquanto ele caía agonizante emitindo urros histéricos de dor e pavor; até que finalmente pôde divisar o feíssimo gigante vestido à maneira de um jovem, o qual ele lembrava já haver visto nalgum canto, desferindo golpes violentíssimos com o bico do tênis em seu corpo, reduzindo-o à farelos, tal qual uma barata esmagada, deixando-o da forma como seus amigos o encontram.
“Que vermezinho escandaloso este que acabo de pisar; cheio desta coisa nojenta avermelhada; vá encontrar o capeta, inseto insignificante...” Assim pensou Francisco Interior Paraense, enquanto fechava a braguilha: “Ótima ideia ter vindo aqui ao invés daquele banheiro de quinta, suspiro, de qualquer jeito aquela mulher vai ser minha hoje, he, he...”
E assim calmamente retornou à mesa, relembrando o que havia pensado sobre as coisas pequenas, quando aquele momento levou-o a refletir sobre tais assuntos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário