quinta-feira, 21 de julho de 2011

Gentis gentes

" A grande ordem de todas as coisas é o caos girando desordenado."



Na completa escuridão reforçada pelas luzes bruxuleantes dos postes na noite úmida do cais, desembarca do seu encouraçado, Sépia dos Mares, o famigerado marinheiro Peqod, com suas botas lustrosas de sugeira da Bahia de Todos os Rios, onde dejetos da feira livre Verídico-Peso coalham as ondas barrentas e reagem quimicamente com a respiração dos bacus de esgoto, num fenômeno desconhecido de cientistas em geral, mas muito apreciado por todo tipo de turista desavisado.
Sentindo a brisa fresca impregnada de pitiú de tamoatás decompostos misturados à xepa, o marinheiro, com seu corpo rotundo marcado por picadas de insetos das longas invernadas no interior dos mais ermos interiores do Estado de Nossa Senhora do Grão, caminha bêbado com seu parco equilíbrio, mais acostumados com os balanços de um barco alcólatra que com a imobilidade nauseante da terra estática de pés quebrados.
Perscrutando em redor ansioso feito um fugitivo, Peqod se pergunta onde pode haver uma taverna aberta naquela estranha cidade, onde os restaurantes costumavam fechar as portas durante a hora das refeições; um lugar onde o absurdo não encontrara resistência ao propagar seus fios e instalar-se, feito bactérias numa placa de petri,  desenvolvendo-se a ponto de coisas absurdas de nomenclatura duvidosa ocorrerem amiudadamente até mais não poder.
"Ergo a voz, meu pobre espírito fatigado de guerras escusas, os braços pontilhados de retratos de fantásticas paisagens exotéricas, anunciando os preceitos higiênicos da aplicação de Creosoto para desinfectar a vós, pois através das narinas percebo sua presença fétida em derredor. Persiste-me a ira,logo, ao invés de atirar-me contra fantasmas inatingíveis, tal cavaleiro louco avançando contra Mós-de-Vento, respondam-me criaturas da noite, qual a baiúca aberta que tenha qualquer angú com farinha para que eu possa satisfazer a sanha autofágica do meu estômago, pois se morrer agora de fome não é sem antes aniquilá-los a vós."
Nisso, esquivo como gato malandro que foi pego roubando o peixe mais suculento da trempe do fogareiro, e que receia bordoada vingativa do dono desleixado, chega-se para perto de uma nesga de fria luz, apenas o suficiente para que sua cara de traços símios seja o menos percebida pelo interlocutor, junto ao poste ensebado que solta faíscas, acorrentado ali pelo clamor de um claustro moribundo, a procurar persuadir em linguagem furtiva e recortada, uma figura pestilenta que discorreria sobre elementos metafóricos.
"Quem é você, que aproxima-se mas não o suficiente para que possa vê-lo, que escuta minhas palavras vãs à sorrelfa; tens por acaso receio de mim qual medo traumático infundo de vir a deglutir-te?", indagou da noite Peqod.
"Zozo da Vida é minha graça; de pai Zózimo e mãe Zélia Cardoso, mas pertence-me por usocapião o 'da Vida', que é como sou mais conhecido no trapiche."
"Dê-me então seus termos, filho de mandril, pois além da ira tenho pressa de escafeder-me desta terra pútrida, que começa a afetar-me os miolos na modorra dessa placidez heráldica dum cais soporoso."
Zozo supunha a argúcia da pergunta, sentia os músculos dormentes e os nervos mortificados pela força tétrica das palavras do desconhecido a ferir com morte e paixão seus descosidos ouvidos de mercador.
Paralisado permaneceu, sentia que em seus lábios morria qualquer tentativa de desvencilhar-se da teia de incongruências tramadas em redor daquele diálogo que almejava a uma única finalidade: suas magras carnes, seus ossos e vísceras jogados nalgum canto de antemão ou dados aos numerosos peixes que por ali comiam detritos; cozido no vapor ou assado, até quem sabe frito, para saciar o estranho ao servir-lhe como pétreo alimento.
"Trago-te a nova, a má nova, o evangelho pelo avesso: o que aqui procuras não está em lugar nenhum deste mundo, são apenas efeito das privações,  da loucura e indigência de vosso imaginário, devastado como este lugar onde estamos, e da qual este verme é apenas um mísero escolho que não pretende roubar-te a atenção. Humildemente peço que escolhas outra freguesia e parta para importuná-la com vosso barco de flagelos. Já estávamos mal arranjados mesmo antes de aportares por aqui."
Peqod amaldiçoava em silêncio a perspicácia da resposta de Zozo, mas ainda tinha um artifício para lançar à presa, enchendo de promessas fluidas e encantarias torpes o espírito lorpa do biltre, a fim de confundi-lo para lavar-se nos humores fragrantes do cérebro e despojos do macilento núbio.
"Perdoe-me a rudeza, caro notável, agradabilíssimas suas palavras, mas infelizmente a maioria se perdeu no caminho para meus ouvidos, já corroídas e desusadas pela escuridão, pois lançaste-as da penumbra onde te acoitas. Rogo-te que fique parado um momento, para que eu aproximando-me possa encurtar o trajeto necessário para acorrência de vosso verbo que deleita-me as orelhas ao reverberarem todo seu majestático sentido."
Um vento sombrio varreu do chão pêlos humanos perdidos desde a aurora do mundo, que flutuando disputavam encarniçadamente espaço nos gases atmosféricos contra a acolitez macia que os urubus ousavam, ao penetrar fundo nos afogados mistérios  trasladados pelo rio, como reflexo de cores que se fixam numa chapa besuntada de nitrato de prata, nas asas negras do corvo amazônico, onde ainda hoje é possível ler a seguinte frase: "-Agora é tarde, agora é tarde."
Mas havia ainda a chance de não se ver triturado pelos esmeraldinos dentes de trinchar do plúmbeo marinheiro. Formas sinestésicas da inexistência física posterior furtavam-se a passar por sua incólume cabeça, trazendo consigo a torrente do conhecimento contumaz:
"Pare! Fique onde está! Não é necessário, sabemos, e que nem viva alma nos ouça, mas o que disse foi verdade. É triste e feia, não serve a tão altivos propósitos que madurecem em seu id, mas por profissão de fé  retiremos de nossos ombros o fardo dessa solicitude hipócrita, tão mais angustiante que o ronco de sua pança que daqui perfeitamente ouço. Quem sabe encontrarás solução deveras plausível abstendo-me de mostrar-te as veias que trago abertas e por onde navegaste, por caminhos tortos que truxeram-te, visita de má morte, para esta terra de monturos derribada."
O vidro dos olhos a arregalarem-se foi a resposta ouvida por Zozo de Peqod, pois este não abriu a boca; endireitou o olho e pensou: "Falou bonito!", virando-lhe as costas no dirigir-se ao encouraçado, desejando agora o mais rápido possível abandonar aquela paragem, cujo olor malsinado agia proficuamente feito cataplasma em seus pulmões, a encharcá-los tal qual fedegoso óleo cetácio, deveras utilizável na indústria marítima corsária. E respiraram ambos aliviados, por ocultos e divergentes motivos, encerrada a partida.

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