sexta-feira, 22 de julho de 2011

Caso Fortuito

" Eles jogam este jogo como se não soubessem que o jogam; um jogo onde você também é obrigado a entrar, por mais que saiba que tudo não passa de uma farsa."



João José segurava um tufo de cabelos na mão esquerda enquanto com a direita empunhava uma arma descarregada . Espalmou o tufo de cabelos em sua própria cabeça, amarfanhando o enxerto por entre seu penteado para que não fosse percebido ali.
Olhou-o no espelho, estava aperentemente perfeito o mecanismo de explosão do artefado cabeludo, faltava apenas testá-lo: observou novamente o tambor da arma certificando-se da completa ausência de balas ali, em seguida levou-a à boca, apontando um pouco para cima, onde a tragetória de um tiro fictício atingiria em cheio o tufo de cabelos plantado no topo de seu crânio. Apertou o gatilho da arma acionando simultaneamente o da bomba, congratulando-se com o objetivo alcançado, pois haviam voado cinza e cabelos para todo o lado, além de muita fumaça, criando a ilusão de que ele havia estourado os miolos.
"Essa vai ser engraçada, quero só ver se a Serena continua serena depois dessa, he, he..." , pensou João José, rindo do próprio trocadilho idiota com o nome da namorada, ela que dentre as coisas que odiava em Fred, uma era seu insípido senso de humor. Só estavam juntos porque cada vez que ela pensava nele não deixava de se entreter com a estória incomum da origem de seu nome: Como uma das avós queria que ele se chamasse João e a outra José, e os pais adoravam Frederico, resolveram botar-lhe logo os três nomes para evitar a confusão, felizmente solucionada quando o tabelião, objetando que criatura tão pequena recebesse a trinca de nomes mais o Espíndola Parente Morgado como apodo, sugeriu aos pretimosos pais que o batizassem João José para agradar as avós, e chamassem-no Frederico, ou Fred como gostava de ser conhecido, apenas na intimidade do lar, e assim fizeram.
José Fred adentrou a casa da namorada com os apetrechos escondidos em sua mochila, mas quem encontrou deitada no sofá assistindo tevê e cutucando as unhas do pé com um espeto de churrasco, foi a irmã mais nova desta, Úrsula, que prontamente perguntou se ele tinha esquecido de como se bate numa porta, pois Serena tinha saído e ia demorar bastante, ele que fosse embora ou esperasse no quarto dela, pois ela queria ver a novela em paz.
Úrsula achava que odiava Frederico. Toda vez que ele vinha visitar Serena,
sentia o peito doer de uma dor diferente, lá dentro; não suportava imaginá-lo beijando e acariciando a irmã e as coisas que faziam trancados no quarto; achava que ele não era uma boa influência para a pobre irmã, que diziam possuir chifres maiores que os das renas de Papai Noel, pois como todo homem que se preza, José João não valia uma unha encravada, e quando Úrsula se referia a ele, mesmo em pensamento, e não eram poucas as vezes em que ele vinha-lhe à mente, tratava-o sempre por Frederico.
Gostaria que ele tivesse ódio dela, sem perceber que tal comportamento era devido sua falta de maturidade, jovem e tola demais para entender o que fosse da confusão dos próprios sentimentos em relação ao namorado da irmã.
Mas como Fred não confiasse em Úrsula, resolveu telefonar e confirmou sua suspeita: Serena já estava à caminho, podia esperar que em poucos minutos ela estaria em casa: "Então vem depressa mesmo, que eu tenho uma surpresa pra ti. Não posso falar agora o que é, amor, vem aqui que tu vais ver. Não, que besteira, não é nada de mais, só um negócio que eu quero te mostrar"
Como teria que esperar um pouco ela chegar, resolveu comer alguma coisa na cozinha antes de se preparar para a brincadeira que tinha armado, logo dirigindo-se à geladeira e de lá retirando uma vasilha com restos de frango com farofa do almoço, que pôs-se a devorar.
No entanto, a mochila com os apetrechos ele esqueceu na sala, encostada ao sofá onde Úrsula no momento espreguiçava-se, e ao notá-la largada ali, a moça não resistiu à tentação e resolveu "dar uma olhada no que esse idiota carrega nesta porcaria pra cima e pra baixo, encardida de tanto tempo que ele não lava.", pensou enquanto certificava-se de que ele estava ocupado na cozinha e não iria aparecer pelo menos pelos próximos instantes ali.
Encontrou primeiro o tufo de cabelos explosivo, achando que Frederico José era ainda muito novo para usar peruca, ainda mais amarfanhada e rombuda igual àquela; a seguir encontrou a arma, e o que passou pela sua cabeça durante o tempo em que segurou-a nas mãos, encheria centenas de páginas, se possível fosse escrever ou até falar rápido o suficiente para acompanhar a velocidade do pensamento, mesmo no caso de Úrsula, que não tinha o pensamento lá muito ligeiro. E mais tempo ficaria manuseando a arma que fascinara-a, um trinta-e-oito prateado de cano longo e coronha emborrachada, mas percebendo a tempo que Fred retornava, guardou-a logo.
Ele vinha roendo uma coxa de galinha fria praticamente sem nenhuma carne, pegou a mochila do chão aparentemente sem perceber nada, enquanto Úrsula, um tantinho nervosa, fazia cara de paisagem como se não tivesse bisbilhotado suas coisas, e foi alojar-se no quarto da namorada para preparar tudo daquela que seria "a brincadeira do ano! Ela vai ficar tão puta da vida que pode até passar uma semana sem falar comigo, he, he..." imaginou, achando graça em algo onde pouquíssimas pessoas seriam da mesma opinião, algumas possívelmente até qualificando-o como retardado sem noção, come merda, rasga dinheiro, debilóide, e expressões do gênero referindo-se a seu humor extrovertido e pouco convencional.
Serena chegou momentos depois em casa, e foi logo perguntando pelo namorado. Úrsula por instantes ficou em dúvida se contava ou não à irmã o que tinha visto na mochila de Frederico, mas não teve tempo para decidir-se, pois ele veio nesse exato momento de dentro do quarto, com o cabelo bastante estranho, ridículo para dizer a verdade, meio despenteado como ele sempre andava, com um calombo no topo que Serena não fazia idéia do que fosse, mas que sua irmã identificou como sendo aquela estranha peruca que havia visto na mochila dele junto com a arma, que ele empunhava na mão direita, enquanto fazia um cotoco com os dedos da esquerda, chamando uma de vagabunda e a outra de bocó e dizendo que ia se matar na frente delas por causa disso(?), ante o espanto de ambas que ele conseguisse falar com um cano de ferro encostado no céu da boca, sem no entanto dar a Serena e Úrsula ocasião para impedir seu ato treslocado, ao pressionar ao mesmo tempo o gatilho da arma e da bomba, ouvindo junto ao estrondo e gritos histéricos de povor e terror, um som que vinha da televisão, a música de encerramento da novela que Úrsula adorava assistir e que serena não dava a mínima importância.
Difícil explicar o porquê da brincadeira tão bem elaborada por João José Frederico Espíndola Parente Morgado ter falhado tão estupidamente, ou funcionado perfeitamente bem, já que os pensamentos fluíram-lhe em jorros através de algum buraco no alto de sua cabeça. Impossível para ele seria explicar a ambas o que haveria de engraçado naquilo tudo, já que com o tiro sua língua voara prum canto e caíra em cima de um móvel no canto da sala, entre uma coleção de brindes de lanchonete e alguns incisivos chamuscados, não parecendo muito disposta e articular palavra a quem quer que fosse.

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