quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Trabalho de Geografia

         Quando avisei a mãe que o trabalho era na casa do Gabriel, ela fez uma careta e retrucou:
- Mas na casa daquele garoto? Não tinha um grupo pior pra tu te reunires pra fazer este bendito trabalho?
Minha mãe podia até não acreditar, mas existiam grupos piores que o meu sim. Ainda mais naquela turma de segundo ano cheia de gente tosca, eu que nunca tinha estudado à tarde, mas naquele ano seria impossível continuar no turno da manhã, por causa do valor do desconto:
- Pôxa, mãe! O Gabriel é um cara bacana. Só um pouco desleixado, meio fedorento, meio desligado, mas gente boa. E a casa dele fica perto do colégio, é mais fácil pra todo mundo chegar lá.
Minha mãe tinha visto o Gabriel uma só vez na vida e tivera péssima impressão, como todas as mães que o viam pela primeira vez. Ele se vestia sempre dos pés à cabeça de preto, acho que justamente para fazer contraste com a pele muito branca, que de alguma forma ele conseguia evitar que pegasse sol, pois eu nunca tinha visto um cara tão branco.              
        Quando ele chegava atrasado para a aula então, que parava no portão e tirava um cigarro do bolso, geralmente apagado na metade, e começava a fumar soltando fumaça no rosto do porteiro? Estava sempre muito pálido, de óculos escuros, cantarolando umas músicas em inglês no meio das conversas, meio que no mundo da lua:
- Égua, ôhhh! Quero ver quando daqui a pouco vão te confundir com um vampiro desses vagabundos por aí, então eu vou achar muita graça da tua cara, ha, ha, ha, ha, ha!
Na hora marcada, só estava o Leandro me esperando no local combinado, para irmos juntos fazer o trabalho de geografia:
- Cadê o Patrick?
- Rapaz, ele perguntou se não podia colocar o nome dele que amanhã ele fala com a gente lá na sala...
Eu não usava celular, mas pelo menos o Patrick tivera a decência de avisar que estava dando o cano na gente, evitando que esperássemos ali feito dois patetas. Só isso já valia o nome dele no trabalho, o foda ia ser na hora de apresentar a parte oral, mas no outro dia a gente dava um jeito. Sempre dava.
Não imaginava que a casa do Gabriel fosse tão grande, o muro pelo menos, e quando tocamos a campainha foi ele mesmo quem veio abrir o portão. Estava meio calado, com os óculos escuros de sempre, e dois cachorros beagle corriam estabanados em volta dele, querendo encontrar uma brecha para fugir.
- Entra logo, cuidado com o Tom e o Nick, lá pra trás!
Pensei que ele estava falando com os bichos, mas era para eu e o Leandro irmos andando, o quarto dele ficava nos fundos, separado da casa principal por um caminho no jardim, que fazia tempo não era cuidado, com mato crescendo por todo lado, exceto no lugar onde pisávamos. Passamos em frente à sala e notei que dali vinha o som de música clássica, mas não havia ninguém escutando.
Por algum motivo o Leandro que tinha vindo comigo estava inquieto, agitado, parecendo com um dos cachorros, perguntando nervoso enquanto cutucava o Gabriel:
- Que cheiro é esse? Que cheiro é esse? É o que eu estou pensando? Cadê tua mãe?
Aquela amizade dos dois era desconhecida pra mim, mas resolvi me concentrar no que era o quarto dele, que entrávamos agora. Quem poderia imaginar que um cara que se vestia unicamente de preto, vivia num lugar tão colorido que mais parecia uma viagem de ácido do que um quarto. As paredes pintadas com sprays de todas as cores, mas incrivelmente coerentes; pôsters diversos, de gosto duvidoso, alguns bem antigos e outros mais recentes; muitos discos de vinil abarrotando uma estante e uns tantos outros espalhados; vestidos coloridos, chapéus, mantas, algo realmente impressionante e caótico, misturado com o aroma de incenso por sobre um outro cheiro peculiar:
- Cara, foi isso que sobrou de Woodstock? Onde a gente vai fazer o trabalho de geografia? Os teus cachorros vão entrar no grupo também? E esse cheiro eu acho que conheço, isso por acaso não seria...
O Gabriel nem esperou que eu terminasse a pergunta. Levantou de cima do cinzeiro um daqueles cigarros que ele costumava fumar só até a metade, só que esse era bem diferente de um cigarro comum:
- Toma um pega...
Se o Leandro mostrasse aquele interesse para qualquer outra coisa, com certeza teria muito sucesso na vida. Ele mal tinha estendido o basesado, e o leandro já pulava com os olhos brilhando para dar uma tragada, como se aquilo fosse o último copo d'água num deserto. Quando me ofereceu, recusei, tinha um trabalho para entregar no outro dia que valia a nota toda da avaliação, e não ia passar o resto da tarde momozando e fumando maconha. Para não dar uma de careta, disse que daria uns tapas, mas só depois que a gente terminasse com o que tínhamos ido fazer ali.
Consegui desocupar uma mesa dos refugos do dancing days, e botei minha mochila em cima, enquanto ia tirando os bagulhos, digo, o caderno e os livros lá de dentro. O leandro já estava bem à vontade, fumando deitado na cama e olhando fixamente prum pôster do Jefferson Airplane no teto, enquanto nosso anfitrião confeccionava mais um cigarro de cannabis com extremo cuidado, o que me fez pensar que ele ainda daria um excelente médico-cirurgião. E foi justamente nesse momento que entrou um furacão no quarto:
- Oi, tudo bem com vocês? Gabriel, tu vistes por onde eu larguei o enforcado? já ofereceste alguma coisa pros teus amigos? O quê que o Nick e o Tom estão fazendo bagunçando por aqui? Posso abrir a janela pra sair um pouco essa marofa? Por que o figurino da peça do teu tio está jogado no chão? Ah, tá aqui, achei! Fiquem à vontade pra estudar o trabalho de vocês, que depois eu trago um lanchinho pra matar a larica. Vem Nick, vem Tom, tchau então pra vocês, até mais tarde...
A Dona Sônia era uma figuraça. É muito difícil tentar descrevê-la aqui, e provavelmente ela já deve ter pintado o cabelo de outra cor. Depois que ela trouxe uns sandubas com refresco pra gente, tocou um pouco de violão, falou das viagens que tinha feito quando era mais ou menos da nossa idade, uma "porra-louca", leu o futuro meu e do Leandro nas cartas, e ainda me emprestou um livro do Timothy Leary, eu achei que o Gabriel tinha muita sorte de ter uma mãe tão bacana como aquela.
Do trabalho me lembro pouco, nem sei se a gente conseguiu mesmo apresentar aquela porcaria no outro dia, a maior parte das lembranças daquela tarde tinham virado fumaça. Mas daquele dia em diante, eu o Leandro e o Patrick, que tinha nos dado o cano mas que soube da estória, fazíamos de tudo para que todos nossos trabalhos fossem feitos na casa do Gabriel, que graças aos nossos esforços da época conseguiu passar no curso de medicina, após o que foi fazer um ano de residência na Jamaica.

Um comentário:

  1. Seguindo o blog, amei. Segue o meu também?
    http://openmindbook.blogspot.com/

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