domingo, 24 de julho de 2011

O Décimo-Terceiro Andar (à memória de Amy Winehouse)

"Você está pensando mas você já sabe,
agora você sabe que acabou,
pensa agora em como irá chegar
ao fim do caminho que escolheu."


     A chuva caia violenta há cerca de duas horas, as nuvens persistentes davam a perceber que o temporal se prolongaria noite adentro. Pouco passava das cinco da tarde, mas já se viam as lâmpadas da iluminação pública acenderem-se por toda a cidade.
    As notas que saíam atropeladas do rádio, gotas estourando contra a vidraça do lado de fora, a impressão de alguém no corredor espiando pelo buraco da fechadura e até a própria respiração deixavam Alhisson paranóico, distanciando-o da realidade para sombrios pensamentos interiores. Sufocado entre recortes de imagens que vira durante a semana, desde que recebera os vencimentos até aquele dia, talvez dois ou três em que não fora trabalhar, permanecera naquele apartamento imundo, saindo apenas a intervalos regulares para comprar mais drogas.
    Tinha acabado de usar outra dose da substância entorpecente no envelope, e sua cabeça ficara vazia de novo. Durante o curto momento em que sentia o efeito da droga, cloridato, óxido, opiáceos, chás, o que estivesse à mão, sentia-se isolado da rudeza do mundo exterior. A sensação que tinha nessas horas era a de não estar ali, acuado pela pela chuva feito bicho, num corpo esgotado e cheio de eczemas, com a doença do vício a corrroer-lhe o cérebro devastado.
    Via-se como habitante de um plano paralelo, como personagem de desenho animado, efeito de poucos minutos, pois logo tinha de fugir dos perigos que surgiam, onde cada objeto escondia por trás de sua aparência inocente armadilhas terríveis, que buscavam aprisioná-lo à podridão daquele mundo de horrores em technicolor. Ali era impossível permanecer um minuto sossegado, simplesmente pelas coisas não serem como elas deveriam ser, desfazendo-se, derretendo e mudando a todo momento de forma, rastejando por entre seus pés como cobras, esperando apenas que se distraísse para feri-lo mortalmente.
     O rádio ligado numa estação de rock continuava a tocar uma música que Alhisson não sabia se era a mesma de momentos atrás, simplesmente porque não se lembrava nem da música de um segundo atrás, tamanha a quantidade de drogas ingeridas somente naquela semana, que rapidamente haviam deteriorado a saúde do infeliz adicto, levando-o em breve às portas da loucura ou mais brevemente ainda à morte por overdose.
     Perambulou sôfrego pelo pequeno apartamento tropeçando nos próprios pés. Vasculhou minuciosamente os poucos móveis , as roupas encardidas, sacolas e bolsas, cada armário, cada fresta onde sua débil consciência lhe indicava haver tesouros escondidos, moedas perdidas, um toco de cigarro, restos do entorpecente do dia anterior no fundo dos bolsos e sob as unhas. No seu estado mental qualquer coisa poderia adquirir o brilho do ouro reluzente, ou o seu oposto, o chumbo cinzento que tinha sido derramado pelos deuses sobre as nuvens apenas para castigar seus atos.
     Enquanto esquivava de sombras medindo cada passo, notou que suas roupas estavam sujas de excrementos; urina e fezes faziam uma fresca e enorme mancha em sua calça, tinha evacuado sem perceber. Sentia agora um torpor, a cabeça zumbindo misturava os sons que vinham de fora com o barulho do rádio.  
     Pegou o envelope amassado com o que sobrara do alucinógeno e enfiou-o na boca, mastigando e engolindo seco a mistura de papel amargo que amorteceu-lhe completamente o corpo exausto, faltando pouco para o sono vir nocauteá-lo.
     Suas forças sumiam-se, não existiam mais sons, imagens, pensamentos, Alhissom não mais existia. Suas pálpebras fechavam-se com o peso das nuvens, cada vez mais violentamente mandando as gotas de vidro contra a única janela do apartamento, para onde ele tentava olhar agora, até que ali finalmente enxergou:
    Uma enorme cama aparecera à sua frente, lençóis e travesseiros brancos, o colchão igual ao que gostara na vitrine de uma loja. Lembrou-se que as costas doíam-lhe todo dia, quando de manhã levantava da rede de fio batido onde dormia. Por isso não achou estranho que no lugar da janela aparecesse uma cama macia, onde poderia repousar seus membros fatigados.
     Experimentou então um sobressalto. Sabia agora o que deveria fazer. Livraria-se do peso que há anos carregava nos ombros, das dores, ânsias de vômito, diarréias inesperadas; a decadência acelerada do organismo combalido não mais levaria-o à cova. Então poderia retornar ao trabalho, brincaria e contaria piadas aos colegas como antigamente, ligaria para sua namorada de tantos anos e diria à ela que viesse visitá-lo, iria deixá-la surpresa com a cama nova, sinal de que começava a mudar e de que as coisas iam ser diferentes do absurdo que eram.
     Sonâmbulo, os últimos pensamentos que teimavam ficar abandonando de vez sua cabeça, deixando-a límpida como um cristal recém-lavado posto sob o sol, que no dia seguinte ele poderia novamente encher com idéias maravilhosas para sua nova vida.Espreguiçou-se num bocejo, espalmou as mãos contra o rosto para ficar mais confortável, apenas um débil sorriso aparecia na boca de dentes estragados.
      Então, daquele cubículo com apenas uma janela, sem proteção além do vidro, do velho prédio onde morava, dum décimo-terceiro andar, atirou-se feliz contra a alvura do leito.
     Os que encontraram o corpo na calçada, deitado de lado, as mãos espalmadas servindo de travesseiro ao crânio espatifado, os joelhos dobrados contra o peito, encolhido na posição fetal, ainda com um vago sorriso nos lábios partidos e uma poça de sangue que escorria em filetes acumulada no meio-fio, tiveram a mesma impressão à respeito de Alhisson:
     Dormia profundamente.

3 comentários:

  1. Oi Augusto,
    Antes de mais nada obrigado pela visita em meu blog, e quanto a a qualidade de suas músicas concordo contigo. Gostei bastante do conto que vc escreveu. Vou indica-lo!
    Parabéns!!!

    Abraços e uma boa semana p/ ti.

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  2. Cara? Me impressionei. Você realmente é muito bom com as letras. Parabens!

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