sábado, 15 de outubro de 2011

A Linha Imaginária

        Tinha dias em que ela não conseguia se ohar no espelho. Se achava gorda, feia, as bochechas inchadas e as plantas dos pés doloridas, o que a impedia de andar, além da cólica.
Frustrada, dolorida, revisava como estava sua vida naquele momento, um quase namoro, uma quase família, quase amigos, uma quase vida.
O que ela esperava era realmente o cara certo pra ser feliz? Caso contrário, terminaria com o cara errado, pois temia mais que tudo a solidão? Na verdade não.
Já sentira aquela solidão que não dependia das pessoas ao seu lado. Descreveu esse sentimento como se naquele instante ninguém existisse ao seu redor, mesmo estando no meio de uma multidão.
Tentou lembrar do tempo passado: das projeções que não se confirmaram, dos sucessivos fracassos, os abusos, o momento da depressão em que chegara a pedir ao médico para que a internasse, e depois quando transaram no consultório, e depois o nojo quando ele apenas prescreveu-lhe remédios.
Certa vez um homem com quem se envolvera combinou de largar a família e ficar com ela, mas foram pegos em flagrante num motel por um detetive particular, ela foi ameaçada pela esposa traída e teve que se mudar de cidade.
Tantos erros. A ilusão de estar vivendo ao máximo, quando na verdade sua vida escoava pelo ralo; o frenesi da juventude, apaixonada, achando que fazia a coisa certa embora com a pessoa errada, sem conhecer ainda o outro lado, aquele da lei das compensações, onde a cada um é reservado o seu quinhão de acordo com o que semeou.
A Oração de São Francisco ela carregava sempre na bolsa, sabia os versos de cor. De uns tempos pra cá, dera pra frequentar a igreja na companhia de uma vizinha, que com ela vinha passar as tardes:
-Desculpe, Dona Marlene, não estava ouvindo  você bater.
-Nossa, Lica! Eu estava batendo faz é tempo...
-Sabe o que é? Eu ando meio atordoada, faz uma semana que eu não falo com o Zeca depois que a gente brigou.
-Ih, mana! Já te falei, se conselho fosse bom a gente vendia: larga desse homem que ele só vai te trazer problema.
Lica mirou a vizinha bem nos olhos e não encontrou ali o menor sinal de rancor ou desprezo, ou o que quer que  fosse. Apenas uma estranha inocência, uma chama dura que cozinhava lentamente, de quem se conformou pelo destino ter feito das mulheres vítimas do mal semeado pelos homens, cuja quase totalidade não prestava:
-Por isso quando eu era mais nova arrumei logo meu homem! Olha que tu já estás avançando nos trinta, é rápido que a beleza acaba...
-Mas não acho que seja bem isso. Falando em sofrimento, ainda tens um ramo daquele anador no teu quintal?
-Ah, LIca! Eu até tinha, mas é que o meu marido pintou de cal a parede do lado da churrasqueira, aí as folhas agora estão todas sujas de branco. Mas estás com muita dor é? Senão eu posso ir na farmácia pra comprar agora um remédio pra ti, querida.
-Não precisa se incomodar, acho que já estou boa, só preciso mesmo descansar um pouco. Muito obrigada, mais tarde eu passo lá pra gente ver a novela.
-Tem certeza? Tudo bem então...
E a vizinha virou as costas e foi embora. Mas algo de sua presença permanecia ali, de alguma forma incomodando mais que a cólica.
Naquela noite ela não conseguiu dormir, a dor de seu corpo era forte, mas era na cabeça onde mais incomodava.

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