terça-feira, 8 de novembro de 2011

Ácido Hermenêutico

        Da sacada podia ver a copa das mangueiras na rua formando um corredor de folhas e se estendendo por cinco blocos, juntando-se às árvores da praça para felicidade das garças.
        -Não queres comer alguma coisa?
        -Me faz mal quando estou bebendo. Mas vou pegar este sanduba aqui, valeu.
        Toda vez que tomava bebiba forte não conseguia ingerir nada sólido, sob risco de vomitar. As tripas revoltavam-se na tentativa de expulsar qualquer coisa que não fosse álcool. Talvez sofresse de gastrite ou coisa parecida, devia procurar um médico.
        -Mostra teu copo.
        -Ôopa, obrigado!
        Já estava porre e a dona da casa não parava de servir-lhe mais birita. As pessoas conversavam ao lado e pelos cantos, ele respondia automaticamente o que vinha à boca quando perguntavam, sem entender muito bem o que estava a falar ou o que diziam como resposta.
        A cabeça rodou ao tentar levantar-se, não parava de virar um copo atrás do outro. Resolveu deixá-lo em cima de um móvel e foi pegar o vento da noite encostado na sacada, olhando lá para baixo a movimentação dos transeuntes.
        Foi então que Márcia se aproximou:
        -Estás sozinho aí? Cadê teu copo?
        -Faz tempo que não bebo tanto, ele deve ter fugido de mim. Valeu aí, Marcinha, por me convidar.
        -Na verdade eu chamei o Jairo! Viestes de enxerido, seu tosco! Ha ha ha ha ha ha ha ha ha...
        Com a perda da memória recente que precede o coma confundindo aquela noite com tantas outras, entendeu que devia manter a boca fechada pelomenos nos próximos quinze minutos, sob o risco inevitável de começar a falar merda.
                                                                       ...
        Tiveram tempos atrás um ódio um do outro, embora ou justamente porque tivessem sido amantes. Dela não suportava principalmente os conselhos, que ignorava fazendo o contrário de propósito, culpando-a quando depois se fodia.
        Mas naquele momento não havia ninguém em pleno uso das faculdades mentais:
        -Pô, Marcinha, brigadão por tudo, adorei essa noite.
        -Se fosse noutra época você ficava aqui e amanhecíamos só os dois bebendo...
        Ficou na dúvida se tinha escutado ela dizer mesmo estas palavras. Não podia ser àquela altura, pensou:
        "Estou bêbado! É isso! Estou viajando e com vontade de vomitar aquele sanduíche! Vou pra casa agora e quando acordar mal lembrarei do que rolou aqui, então é só me despedir e até logo!"
        Beijou-lhe o rosto e caminhou em direção à porta que dava para o corredor, até que sentiu uma palma suave segurando-lhe o pulso:
        -Você passa a noite aqui comigo?
        Embora estivessem praticamente apenas os dois ali, era como se todos os seus amigos subitamente aparecessem em redor e presenciassem a cena, dizendo-lhe para ir embora imediatamente dali. Imaginou a cara aterrorizada da namorada que não acreditaria naquilo, se contasse o que estava prestes a fazer.
        Por que motivo não sabe. Ignorou as sugestões da própria cabeça cedendo aos instintos inflamados pelo álcool e resolveu ficar. Prometeu que no dia seguinte escutaria com mais atenção os outros, e deixaria de culpá-los depois quando fosse tarde demais.

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