sábado, 7 de janeiro de 2012

Último Movimento

 
        Sentado na poltrona verde estropiada, Cupuaçú Hendrix olhava fixamente pela janela, parecendo apreensivo com as nuvens se avolumando no horizonte, o que poderia retê-lo naquele quitinete minúsculo por horas com o famigerado Spif:
        -Esse é o terceiro cigarro que fumas em menos de cinco minutos. Toma aqui um copo de café para descer melhor o câncer.
        -Valeu. Queres um?
        -Não. Já fumei mais cedo.
        -E o Capivara, será que demora?
        -Só se não cair essa chuva.
        Na verdade Cupú Hendrix não aguentaria ficar ali nem mais cinco minutos. O único probvlema é que precisava de qualquer maneira encontrar o Capivara, que era uma espécie de arranjador da rapaziada: o que você precisasse, qualquer coisa a qualquer hora, era só falar com ele.
        Mas o cara era muito difícil de ser encontrado. Geralmente era ele quem avisava onde e quando iria aparecer, isso significava que você poderia receber um telefonema ter e que se deslocar pro outro lado da cidade até um lugar sujeiríssimo no meio da madrugada, ou ainda pior: encarar uma tarde num quitinete abafado suando feito um porco junto do mefítico Spif, alguém que de uma hora para outra poderia meter uma bala em sua cabeça, como diziam que havia feito meses atrás com seu finado  amigo e parceiro de confusões, Mike Limb.
        Além do que aquele lugar era  meio tenebroso. A parede toda do  lado esquerdo de quem entrava havia sido desenhada por algum pintor de bar maluco, que misturou os bichos mais estranhos numa paisagem tão exótica que parecia saída de uma líga de ácido no meio do País das Maravilhas:
        -Então quer dizer que o cara que pintou isso já morreu?
        -Foi o que a proprietária falou quando eu disse que ia passar tinta por cima.
        -Mas esse painel é meio que assustador!
        -Mas ela disse que gostava porque tinha sido o último desenho do cara que ainda morou aqui um tempo, antes de se jogar nu pela janela, se espatifando lá embaixo igual melancia podre.
        -Mas pintando desse jeito, até imagino por que ele se jogou!
        -Pois é né, e ele vivia disso...
        Cupú tentou desviar a conversa para outros assuntos, mas parecia que Spif tinha uma idéia fixa com a indesejada das gentes, lembrando sempre casos de pessoas próximas que morreram das formas mais escabrosas possíveis. Aquilo era um pouco assustador também.
Notou então que Spif tinha alguma coisa estranha em seu jeito de ser, na voz pausada, nos movimentos contidos, no balançar lento a cabeça concordando sempre, como se fizesse um esforço para executar cada gesto com uma atitude natural, mas por dentro se contendo o quanto podia senão esfaqueava alguém ou se jogava pela janela, voava os dez andares e tingia de vermelho o chão de asfalto.

3 comentários:

  1. É uma turma da pesada (talvez) com seus pormenores e desafetos soltos pela rua da cidade,e as veias pulsam, a metrópole em chama insiste em resistir a seu povo.Como a vida deve ser.Abraço de leitor.:-BYJOTAN.

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  2. Ow, adoro essa pintura de animais na parede!!!

    Como sempre, ótimo conto. Sou da turma que pede continuações, ok? hehehe

    bjaum!

    Pri

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  3. Olá, Augusto! Sempre passando por aqui! ^^ Adoro ler seus contos, são incríveis! Nossa, sem palavras para "Último movimento"! Eu gosto muito do estilo que escreves, sem esforço para chegar ao final, sem final exato porque sempre dá para se imaginar o que acontece depois... Muito bom mesmo, parabéns! Abração! *-*

    http://geracoca-cola.blogspot.com/

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